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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O novo Primaz do Brasil e mais um movimento no tabuleiro

“A nomeação de Dom Murilo Krieger, como arcebispo de Salvador e novo Primaz, é mais um movimento que visa não só as eleições da CNBB, mas talvez a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil”. A afirmação é do historiador Sérgio Ricardo Coutinho em artigo que reproduzimos na íntegra.

Sérgio Ricardo Coutinho é mestre em História pela UnB; professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura em Brasília; professor de História da Igreja Antiga no Curso de especialização em História do Cristianismo Antigo na UnB; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil).

Eis o artigo.

Qual a importância do “Bispo Primaz” na condução da Igreja de um determinado território? De que modo contribui para a colegialidade-sinodalidade de toda a Igreja daquela mesma região?

Estas perguntas surgem no momento em que recebemos mais uma notícia no “movimento do bispo” no tabuleiro de xadrez da Igreja no Brasil: a nomeação de Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger como bispo “Primaz”.

Na tradição do primeiro milênio da História da Igreja, o primeiro Bispo entre os Bispos de uma província, de uma região, de um patriarcado, garante a unidade das Igrejas locais a estes diversos níveis e a canonicidade do funcionamento sinodal. Na concepção antiga da Igreja, a sinodalidade e a primazia a diversos níveis são dois conceitos interdependentes.

Já antes do primeiro concílio ecumênico de Nicéia (325), quando o cristianismo esteve suficientemente espalhado pelo território do Império Romano, cada cidade era a sede de um bispo. O bispo da capital da província, a metrópole (a cidade-mãe), começou então a assumir determinadas prerrogativas sobre os bispos da própria circunscrição civil: ele presidia o órgão colegiado formado por todos os bispos da região (o sínodo provincial), que provia a eleição dos titulares das sedes vacantes e podia também julgar a depor os bispos indignos.

Esse bispo da capital, cuja autoridade estendia-se, de formas diversas, não só sobre a própria eparquia (diocese), mas também sobre toda a província, tinha o nome de metropolita. O historiador da Igreja antiga, Eusébio de Cesaréia, falava dos Bispos que se reuniam por “províncias”, em Sínodos por causa de diversas controvérsias como, por exemplo, a definição da data da Páscoa.

No entanto, na eclesiologia das Igrejas ortodoxas é conhecido o axioma latino “primus inter pares” para definir o papel do Bispo de Roma. Sem dúvida no âmbito sacramental não existe nada, na Igreja, que seja hierarquicamente superior ao episcopado; pelo que todos os Bispos são “pares” no episcopado, e o “primus” entre eles é apenas “primus inter pares”. Mas o termo “primus”, nos diversos níveis da organização das Igrejas, não deixa de ter significado teológico e canônico na tradição da Igreja indivisa. De fato também os Patriarcas orientais, bem como os Metropolitas das Províncias Eclesiásticas possuem direitos que os outros Bispos não têm, e isto, obviamente, não provém diretamente do poder de ordem, mas de iure canonico.

Em 25 de fevereiro de 1551, o papa Júlio III erigiu o Bispado de São Salvador da Bahia, desmembrando-o integralmente do Arcebispado de Funchal. Em 1676, São Salvador adquiriu status de arcebispado, tendo como dioceses sufragâneas Rio de Janeiro, Olinda, São Tomé e Angola, as duas últimas no continente africano. Seu titular passou a chamar-se também “Primaz do Brasil”.

No século XVIII, a figura mais destacada, sem dúvida nenhuma, do arcebispado da Bahia foi D. Sebastião Monteiro da Vide. De sólida formação jurídica, planejou inicialmente a realização de um concílio provincial. Dada, porém, a ausência do bispo do Rio de Janeiro, contentou-se com um sínodo diocesano onde se promulgaram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Essa foi a única legislação eclesiástica elaborada no Brasil durante o período colonial e as mesmas ganhavam relevância porque a sociedade brasileira colonial era essencialmente sacral e as leis da Igreja eram oficialmente reconhecidas pelo Estado e tinham vigência plena [n.1].

No período da proclamação da República (1889), havia no Brasil apenas uma arquidiocese e onze dioceses para uma população de aproximadamente treze milhões de habitantes. Com a liberdade religiosa concedida pela Constituição de 1891, era possível criar novas circunscri¬ções eclesiásticas.

A Bula Ad universas orbis ecclesias (27/4/1892), do Papa Leão XIII, deu início a uma reorganização da Igreja no Brasil. Surgiram duas províncias eclesiásticas: a do Norte ou Setentrional, com sede na Bahia, e a do Sul ou Meridional, com sede no Rio de Janeiro, tendo cada uma dessas províncias sete bispados sufragâneos (subordinados ao ar¬cebispo metropolitano).

No entanto, foram os últimos 45 anos que os ocupantes da Sede Primacial do Brasil começaram a ter um papel mais contundente, muitas vezes mais como “primus” que como “primus inter pares”. Em função de conflitos pessoais entre o cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, e seu bispo auxiliar, Dom Helder Camara, o Núncio Apostólico, Dom Armando Lombardi, encarregou-se de fazer os contatos com o Vaticano para conseguir o melhor lugar possível para o seu amigo pessoal. Logo chegou a notícia de que provavelmente Dom Hélder iria para Salvador, onde seria nomeado Administrador Apostólico. Mas o cardeal Dom Augusto Álvaro da Silva, embora já estivesse à frente da arquidiocese de Salvador havia quarenta anos (desde 1924), reagiu contra essa articulação do Núncio, por achar que passaria a ter uma função apenas honorífica.

Mas não teve jeito. Enquanto Dom Helder fora nomeado para a Arquidiocese de Olinda-Recife, seu amigo próximo, outro do grupo dos “Bispos Nordestinos”, foi para Salvador: Dom Eugênio de Araújo Salles. Ficou como Administrador Apostólico até 1968 e, depois, como cardeal-arcebispo e Primaz do Brasil até 1971.

Quando do golpe de 1964, Dom Eugênio Sales se colocou na ala minoritária em relação ao posicionamento da grande maioria do episcopado brasileiro que deu apoio incondicional ao movimento dos militares. Além dos que rejeitavam totalmente o golpe, Dom Eugênio buscou a “neutralidade e expectativa”, “sem comprometer-se nem com vencedores nem com vencidos”, como declarou ainda no início de abril de 1964. Este também era o posicionamento de Dom Helder Camara.

Dada a gravidade da situação política, Dom Helder e Dom Eugênio conseguiram um encontro confidencial com o articulador e condutor da “revolução” Marechal Castelo Branco onde foram pedir a atenção para as arbitrariedades, injustiças e violências por conta do expurgo que estava sendo praticado pelas Forças Armadas contra as pessoas consideradas suspeitas de comunismo [n.2].

Dom Avelar Brandão Vilela foi arcebispo de Teresina (PI) entre 1955 a 1971. Foi transferido a São Salvador da Bahia como Primaz do Brasil em 25/03/1971, onde ficou até 1986. Foi eleito cardeal pelo Papa Paulo VI em 05/03/1973. Oscar Beozzo descreve suas várias atividades: “Vice-Presidente da CNBB (1965); Delegado junto ao CELAM; Membro da Comissão Representativa; Presidente da Comissão de Ação Social; Presidente da Comissão de Opinião Pública; Presidente da Comissão Nacional do Clero; Presidente do SCAI; Vice-Presidente do CELAM (1966-1967); Presidente do CELAM pelo falecimento de Dom Manuel Larrain do Chile (1966-1967), Presidente eleito (1968-1969; 1969-1970 e 1971-1972), um dos presidentes da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (1968); Presidente da Comissão Organizadora da Assembléia Geral de Medellín, Colômbia (1976); Membro da Sagrada Congregação para a causa dos santos; Membro da Sangrada Congregação para a Educação Católica; Vice-Presidente da COGECAL (Conselho Geral da Pontifícia Comissão para América Latina); Grão Chanceler da Universidade Católica de Salvador” [n.3].

Durante o Governo Militar, Dom Avelar procurou estabelecer diálogo entre os bispos e os militares e, por sua diplomacia, tornou-se na CNBB o principal elo das relações entre a Igreja e o Estado [n.4]. Assumiu a tarefa de negociar, esclarecer os fatos, manter o diálogo com a cúpula governista naquilo que fosse necessário, desde a regulamentação dos contratos de repasse de verbas para manter alguns projetos sociais, como o do MEB, até mesmo a solução de algum conflito quando padres, bispos e religiosos eram acusados ou presos como suspeitos de atos subversivos pelos militares.

Um fato soou como punição a Dom Avelar por parte do governo militar. No ano de 1973, quando o Arcebispo já era o Primaz do Brasil, foi indicado em Pernambuco para receber a medalha de mérito pernambucano na qualidade de Bispo de Petrolina, ao tempo em que em Salvador foi escolhido para receber o título de Cidadão Honorário. Aqueles dois eventos que aconteceria em locais diferentes foram automaticamente suspensos pelos governadores dos seus respectivos Estados logo após uma entrevista de Dom Avelar, onde ele defendia o respeito aos diretos fundamentais do ser humano e aos princípios éticos sobre os quais deve reger a consciência coletiva [n.5].

Na seqüência de Dom Avelar Brandão teremos, de fato, dois homens de “Cúria”: Dom Lucas Moreira Neves e Dom Geraldo Magela Agnelo.

Convocado por Paulo VI, Dom Lucas foi vice-presidente do Conselho para os Leigos (1974-79) e secretário da Congregação para os Bispos e do Colégio dos Cardeais (1979-87). Ainda na Cúria Romana, foi também consultor do Consilium de Laicis (1971-74); membro do Comitê para a Família (1971-76); membro do Conselho do Sínodo dos Bispos (1976-77); membro da Comissão “Justiça e Paz” (1976-81); consultor da Congregação para a Doutrina da Fé (1978-87); membro da Pontifícia Comissão para a Pastoral da Migração e do Turismo (1980-87); membro da Pontifícia Comissão para a América Latina (1980-87) e membro do Comitê para os Congressos Eucarísticos Internacionais (1982). Em 9 de julho de 1987 foi nomeado arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil. No ano seguinte eleito cardeal.

Participou diretamente das discussões sobre a Teologia da Libertação e que culminou numa reunião de diálogo entre os bispos brasileiros e o papa João Paulo II, conforme Oscar Beozzo descreve: “A culminação deste processo de diálogo [entre a Cúria Romana e a CNBB após a divulgação do documento “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação” – 1984] foi o encontro de três dias (13 a 15 de março de 1986) entre o papa e os responsáveis dos dicastérios romanos, a presidência da CNBB, os cinco cardeais do Brasil e os bispos presidentes dos 14 regionais da CNBB, num total de 21 bispos, para uma avaliação das visitas ‘ad limina’, cumpridas pelos bispos do Brasil durante o ano de 1985 e início de 1986; para uma verificação dos principais problemas pastorais enfrentados pela Igreja no Brasil e um balanço das relações entre Santa Sé e a Igreja do Brasil. Proc edimento novo e inédito que permitiu que muitos pontos de tensão e mal-entendidos fossem aclarados diante do próprio papa ou nos intervalos das reuniões ou ainda em refeições tomadas com o papa, como a que reuniu, na última noite, D. Ivo Lorscheiter, D. Aloísio Lorscheider e D. Paulo Evaristo Arns, que haviam aceito intermediar o impasse em que se encontrava a coleção ‘Teologia e Libertação’, cuja publicação fora interrompida por ordem do cardeal Ratzinger em janeiro de 1986. No mesmo jantar, tomaram parte os que faziam restrições à coleção: os cardeais Dom Eugênio Sales e Ratzinger e o bispo brasileiro Dom Lucas Moreira Neves, secretário da Congregação dos Bispos” [n.6].

Apesar deste “diálogo”, o “movimento dos bispos” visava um xeque-mate na Igreja do Brasil: a conquista da presidência da CNBB. O “jogo de xadrez”, pacientemente planejado pelo para João Paulo II nos dez anos anteriores (1984-1994), ao substituir bispos de linha progressista por outros de perfil mais moderado-conservador, proporcionou a vitória de Dom Lucas: o cardeal-arcebispo de Salvador quebrou a longa hegemonia dos progressistas. Com ele, sem voltar às costas para o social, a prioridade era a evangelização (no sentido doutrinal e magisterial) e a defesa intransigente dos valores da família, com tudo o que isso envolve: condenação do uso de métodos contraceptivos e do aborto, mesmo em caso de estupro, e administração restrita de sacramentos como a comunhão a casais de segunda união. No entanto, em 1998, Dom Lucas é convocado para retornar à Roma e trabalhar como prefeito da C ongregação para os Bispos.

Nas eleições de 1999 da CNBB, Dom Jayme Chemello, bispo de Pelotas (RS), candidato dos progressistas e foi reconduzido à presidência da entidade depois de tê-la exercido interinamente por nove meses. Deste modo, ficava assim adiado, pelo menos até as próximas eleições, em 2003, o projeto papal de confiar o pastoreio de seu rebanho brasileiro à porção do clero mais preocupada em “salvar almas” que em “lutar contra as injustiças” – ou, ao menos, capaz de isolar a chamada “Igreja da caminhada”.

De fato, veio mesmo em 2003 o retorno do grupo mais conservador, quando novamente um cardeal-arcebispo de Salvador, e (não custa lembrar) Primaz do Brasil, chega novamente à presidência da CNBB. Depois de mais de oito anos como Secretário da Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos (16/09/1991 a 12/01/1999), Dom Geraldo Magela Agnelo toma posse da arquidiocese de Salvador em março de 1999. No Consistório de fevereiro de 2001, eleito cardeal.

No entanto, o que se viu foi muito mais a atuação do secretário-geral, na época Dom Odilo Pedro Scherer, que propriamente de seu presidente. O objetivo talvez tenha sido a de implantar os novos Estatutos da CNBB para asseguara a direção das atividades da Conferência aos bispos e diminuindo a interferência dos assessores, e isto deveria ficar mesmo à cargo do secretário-geral.

Pois bem, em 2007, nova vitória da ala moderada-progressista da CNBB com Dom Geraldo Lyrio Rocha.
A nomeação de Dom Murilo Krieger, como arcebispo de Salvador e novo Primaz, é, ao nosso ver, mais um movimento que visa não só as eleições da CNBB, mas talvez a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil (cf. artigos “As Visitas Ad limina” e “Brasileiros na Cúria Romana e seus desdobramentos” de minha autoria, todos publicados aqui no IHU). Porém, fica a expectativa de algum sinal de vida dos demais bispos para que possa se realizar a colegialidade-sinodalidade do “primus i nter pares”.

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Notas:

1 - CEHILA. História da Igreja no Brasil, São Paulo: Paulinas, 1992 (4ªed.), tomo II/1, p. 177.
2 - PILETTI, N. & PAXEDES, W. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia, São Paulo: Ática, 1997, pp. 290-291 e 296-297.
3 - BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965), São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 410-411.
4- PRANDINI, Fernando. PETRUCI, Vitor A. DALI, Frei Romeu (orgs). As relações Igreja Estado no Brasil: durante o governo do Marechal Costa e Silva (1967-1970). Vol. II (Coleção Igreja-Estado), São Paulo: Edições Loyola, 1986, pp.43-44.
5 - Id. Ibid., Vol. III (Coleção Igreja-Estado), pp. 63-65.
6 - BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 250. Os grifos em negrito são nossos.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39976 17/1/2011

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

UMA REVOLUÇÃO AINDA POR FAZER

Leonardo Boff
2011-01-14
Toda mudança de paradigma civilizatório é precedida por uma revolução na cosmologia (visão do universo e da vida). O mundo atual surgiu com a extraordinária revolução que Copérnico e Galileo Galilei introduziram ao comprovarem que a Terra não era um centro estável, mas que girava ao redor do sol. Isso gerou enorme crise nas mentes e na Igreja, pois parecia que tudo perdia centralidade e valor. Mas lentamente impôs-se a nova cosmologia que fundamentalmente perdura até hoje nas escolas, nos negócios e na leitura do curso geral das coisas. Manteve-se, porém, o antropocentrismo, a idéia de que o ser humano continua sendo o centro de tudo e as coisas são destinadas ao seu bel-prazer. Se a Terra não é estável –pensava-se – o universo, pelo menos, é estável. Seria como uma incomensurável bolha dentro da qual se moveriam os astros celestes e todas as demais coisas.
Eis que esta cosmologia começou a ser superada quando em 1924 um astrônomo amador Edwin Hubble comprovou que o universo não é estável. Constatou que todas as galáxias bem como todos os corpos celestes estão se afastando uns dos outros. O universo, portanto, não é estacionário como ainda acreditava Einstein. Está se expandindo em todas as direções. Seu estado natural é a evolução e não a estabilidade.
Esta constatação sugere que tudo tenha começado a partir de um ponto extremamente denso de matéria e energia que, de repente, explodiu (big bang) dando origem ao atual universo em expansão. Isso foi proposto em 1927 pelo padre belga, o astrônomo George Lemaître, o que foi considerado esclarecedor por Einstein e assumido como teoria comum. Em 1965 Arno Penzias e Robert Wilson demonstraram que, de todas as partes do universo, nos chega uma radiação mínima, de três graus Kelvin, que seria o derradeiro eco da explosão inicial. Analisando o espectro da luz das estrelas mais distantes, a comunidade científica concluiu que esta explosão teria ocorrido há 13,7 bilhões de anos. Eis a idade do universo e a nossa própria, pois um dia estávamos, virtualmente, todos juntos lá naquele ínfimo ponto flamejante.
Ao expandir-se, o universo se auto-organiza, se auto-cria e gera complexidades cada vez maiores e ordens cada vez mais altas. É convicção de notáveis cientistas que, alcançado certo grau de complexidade, em qualquer parte, a vida emerge como imperativo cósmico. Assim também a consciência e a inteligência. Todos nós, com a nossa capacidade de amar e de inventar, não estamos fora da dinâmica geral do universo em cosmogênese. Somos partes deste imenso todo. Uma energia de fundo insondável e sem margens – abismo alimentador de tudo - sustenta e perpassa todas as coisas, ativando as energias fundamentais sem as quais nada existe do que existe.
A partir desta nova cosmologia, nossa vida, a Terra e todos os seres, nossas instituições, a ciência, a técnica, a educação, as artes, as filosofias e as religiões devem ser resignificadas. Tudo e todos são emergências deste universo em evolução, dependem de suas condições iniciais e devem ser compreendidas no interior deste universo vivo, inteligente, auto-organizativo e ascendente rumo a ordens ainda mais altas.
Esta revolução não provocou ainda uma crise semelhante a do século XVI, pois não penetrou suficientemente nas mentes da maioria da humanidade, nem da inteligentzia, muito menos dos empresários e dos governantes. Mas ela está presente no pensamento ecológico, sistêmico, holístico e em muitos educadores, fundando o paradigma da nova era, o ecozóico.
Por que é urgente que se incorpore esta revolução paradigmática? Porque é ela que nos fornecerá a base teórica necessária para resolvemos os atuais problemas do sistema-Terra em processo acelerado de degradação. Ela nos permite ver nossa interdependência e mutualidade com todos os seres. Formamos junto com a Terra viva a grande comunidade cósmica e vital. Somos a expressão consciente do processo cósmico e somos responsáveis por esta porção dele, a Terra, sem a qual tudo o que estamos dizendo seria impossível. Porque não nos sentimos parte da Terra, a estamos destruindo. O futuro do século XXI e de todas as COPs dependerá da assunção ou não desta nova cosmologia. Na verdade só ela nos poderá salvar
Leonardo Boff e Mark Hathway escreveram “The Tao of Liberation:exploring the ecology of transformation”,N.Y.2010.









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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Vaticano perde o monopólio da Teologia e esta ciência ganha espaço em centros acadêmicos laicos

09/01/2011 - El País


Juan G. Bedoya

A teologia, a disciplina acadêmica que já foi considerada a imperatriz das ciências, hoje parece encerrada em uma capela de catequistas que repetem o que o Vaticano decide a cada momento. É só uma aparência. Grandes pensadores cristãos produzem sua obra abrigados em centros universitários laicos, ou publicam em editoras livres do controle eclesiástico. Um exemplo é o teólogo suíço Hans Küng, especialista no Concílio Vaticano 2º junto com Joseph Ratzinger (hoje papa Bento 16). Execrado sem contemplações por Roma, que lhe retirou inclusive a categoria de "teólogo católico", Küng continua sendo uma referência mundial. No próximo mês de janeiro será investido doutor "honoris causa" pela Universidade à Distância (Uned), por proposta de sua Faculdade de Filosofia.
Na Espanha já funcionam uma dezena de centros superiores onde a teologia ou as ciências das religiões não têm qualquer odor eclesiástico. São cátedras criadas sem interferência religiosa e dirigidas por professores das próprias universidades. Entre outras, contam com centros desse tipo as Universidades Complutense e Carlos 3º (Madri), a Pablo de Olavide (Sevilha), Pompeu Fabra de Barcelona, Universidade de Valência e a cátedra de filosofia da religião e história das religiões na própria Uned.
A perda do tradicional monopólio teológico da hierarquia católica foi pacífica. Ninguém discute mais a competência do Estado para criar faculdades de teologia, muito menos a existência de universidades católicas com o mesmo fim. Nem sempre foi assim. A sabedoria popular, a mais afetada pelas ferozes guerras de religião que assolaram a Europa durante séculos, cunhou a expressão "E se armou a de Deus é Cristo" [um grande alvoroço] para representar as consequências das disputas teológicas sobre se Jesus de Nazaré era filho de Deus e não um simples Messias.
Velhas lembranças da Inquisição, entre outras. Agora a Igreja de Roma tem um núcleo irrenunciável de doutrina e o guarda a sete chaves, sem discussão, mas sem violência. Para fora, entretanto, florescem teólogos que escapam da caverna, livres de ameaças de tortura ou fogueira. São poucos, mas costumam ter o favor do público. É a atração da dissidência.
Entre os que na Espanha pagaram pela ousadia de ser livres destacam-se nos últimos anos José María Díez-Alegría, José María Castillo, Benjamín Forcano, José Antonio Pagola, Juan Masiá e Juan Antonio Estrada, afastados da docência através de processos tortuosos. O último caso é o do teólogo franciscano José Arregi, obrigado a abandonar a congregação de Francisco de Assis para evitar males maiores a seus superiores.
"Humiliter se subiecti" - submeteu-se humildemente. Essa era a fórmula de submissão dos censurados por Roma. Persiste. O Vaticano 2º suprimiu em 1965 o Santo Ofício da Inquisição, mas ressurgiu com força, agora com o nome de Congregação para a Doutrina da Fé. Também há uma latinada para enunciar a nova intransigência. "Roma locuta, causa finita" - uma vez que Roma tenha se pronunciado, o assunto fica decidido. É difícil encontrar outra instituição que trate de modo tão desdenhoso os que defendem outros pontos de vista em suas fileiras.
O Vaticano 2º proclamou que haviam terminado os métodos do Santo Ofício - cruéis, muitas vezes criminosos, com dezenas de milhares de pessoas queimadas vivas ou assassinadas por outros meios -, diante do escândalo de que três dos principais papas do século passado tivessem sido molestados pelo inquisidor de turno como suspeitos de heresia ou desvios pastorais. Foram Bento 15, João 23 e Paulo 6º. Grandes teólogos do famoso concílio também sofreram o indizível nas garras do Santo Ofício. Décadas mais tarde, observaram com estupor que um dos melhores peritos do Vaticano 2º, o alemão Joseph Ratzinger, iria ressuscitar algumas das práticas inquisitoriais repudiadas em 1965.
Foi o cardeal austríaco Franz König quem deu o alarme, e expressou bem alto sua perplexidade. Ele o fez quando Ratzinger caiu sobre o teólogo jesuíta belga Jacques Dupuis por "desvios doutrinários" no livro "Para uma Teologia Cristã do Pluralismo Religioso". Em uma disputa com Ratzinger muito instigada nos meios católicos, o grande König saiu à forra. "Minha função não consiste em aconselhar à congregação doutrinal, mas não posso permanecer em silêncio porque meu coração se parte quando vejo causar um dano tão evidente ao bem comum da Igreja de Deus. A congregação tem perfeito direito de salvaguardar a fé - embora ainda o fizesse melhor se a promovesse. No presente caso, entretanto, é um sinal de que estão se ampliando a desconfiança e a suspeita sobre um autor que tem as melhores intenções e que adquiriu grandes méritos em seu serviço à Igreja Católica", escreveu em um depoimento intitulado "Em Defesa do P. Dupuis".
König, um dos grandes aberturistas do Vaticano 2º, tinha motivos para se dizer escandalizado. Não só estavam pisoteando a proclamação conciliar da liberdade religiosa e de consciência, como a ideia de que se devia proteger o trabalho dos teólogos. König chegou a lembrar a Ratzinger o discurso de Paulo 6º à Cúria Romana em pleno concílio: "Temos de aceitar com humildade a crítica, com reflexão e também com reconhecimento" .
Ratzinger mantinha então a mesma ideia. Escreveu em 1968: "Ainda acima do papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer primeiro, se for necessário inclusive contra o que diga a autoridade eclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores que sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais que a comodidade de sua própria carreira".
Essas palavras foram levadas pelo vento assim que Ratzinger ascendeu em 1981 à presidência da Congregação Doutrinal, convertida pouco a pouco em férrea polícia da fé. Desde então, a teologia é tratada como criada do magistério episcopal.
Obediência e unidade são as palavras que justificam tudo. E também a vontade de Deus. Mas os teólogos não fazem caso. Seguem nisso o Evangelho, mais que a seus superiores. É o que afirma Hans Küng, companheiro e amigo de Ratzinger quando coincidiram como docentes na Universidade de Tubingen, na Alemanha. "Jesus tampouco obedeceu às cegas. Já com 12 anos, no templo, demonstrou que não obedecia cegamente a seus pais."
A verdade os fará livres, proclama Jesus. É em nome dessa liberdade que o teólogo Küng se rebelou. "Não poderia seguir outro caminho, não só pela liberdade, que sempre me foi querida, como pela verdade, que está acima de minha liberdade. Se o tivesse feito, teria vendido minha alma pelo poder na Igreja."
Durante séculos a Igreja romana se opôs à tradução dos textos sagrados para as línguas de cada povo. Quando Lutero publicou a Bíblia em alemão, o papa intensificou suas exigências de que levassem a Roma a cabeça do monge agostiniano. Com as ideias de Jesus nas mãos do povo, Roma não poderia justificar seu poder terreno, nem suas pompas e vaidades, nem o afã de dominação ou a marginalização da mulher. Por isso, como afirma Küng, "parece que Jesus goza de maior estima fora da Igreja do que dentro dela". Acrescenta: "Nunca se pergunta o que Jesus teria feito ou dito; tal pergunta torna-se nesse contexto tão estranha que a maioria as julgaria pouco menos que absurda".
Foi o que destacou bem alto o teólogo José María Díez-Alegría, expulso da Universidade Pontifícia Gregoriana em Roma e refugiado em uma das barracas do Pozo del Tío Raimundo, junto ao mítico José María Llanos. "Jesus entrou em Jerusalém no lombo de um burrico. Papas viajam coroados com a tiara pontifícia."
Não houve um só aspecto da vida em que a Igreja não se considerasse com direito a impor seu ditame. Monarcas autocráticos, os papas praticaram durante séculos a doutrina de Gregório 7º em "Dictatus Papae", de 1075: só o pontífice romano pode usar insígnias imperiais, "unicamente do papa beijam os pés todos os príncipes", só a ele compete depor imperadores, suas sentenças não devem ser reformadas por ninguém, enquanto ele pode reformar as de todos.
O último desses imperadores (ou assim se acreditava) foi Pio 12, soberano entre 1939 e 1958. Obcecado pelo protocolo tradicional, os funcionários deviam ajoelhar-se quando o papa começava a falar, dirigir-se a ele ajoelhados e sair do aposento andando para trás.
São lembranças do brasileiro Leonardo Boff, forçado a abandonar a ordem franciscana. "Minha experiência de 20 anos de relação com o poder doutrinário é esta: é cruel e impiedoso. Não esquece nada, não perdoa nada, exige tudo. E para alcançar seu fim toma o tempo necessário e escolhe os meios oportunos."
Boff nunca esquecerá que inclusive tentaram queimar seus livros. Depois de muitas disputas, silêncios e humilhações, chegou o dia em que teve "a sensação de ter chegado diante de um muro". Então abandonou também o sacerdócio. "Há momentos em que uma pessoa, para ser fiel a si mesma, tem de mudar. O próprio Jesus foi morto por dizer que nem tudo é lícito neste mundo. Nem tudo é lícito na Igreja. Existem limites intransponíveis: a dignidade e a liberdade da pessoa. Deixei o ministério sacerdotal, não a Igreja. Afastei-me da ordem franciscana, não do sonho terno e fraterno de são Francisco de Assis. A Igreja hierárquica não possui o monopólio dos valores evangélicos, nem a ordem franciscana é a única herdeira do Sol de Assis."
O hoje papa Bento 16 foi professor de Boff em Munique, Alemanha, e inclusive lhe deu de seu bolso o dinheiro para que pudesse publicar a tese de doutorado porque a considerava uma grande contribuição teológica. "Ratzinger é uma pessoa muito complexa e ao mesmo tempo muito negativa para a Igreja. É um homem muito influenciado pela teologia agostiniana, com uma visão pessimista do ser humano. Não é um homem que ilumine o caminho, mas que o obscurece, impedindo transitar por ele. Duvido que creia no ser humano, e portanto também duvido que confiasse em mim. Por isso me condenou."
"Gestapo eclesiástica", "máquina de estrangular", "camarilha indecente e ignorante"... Esses são alguns qualificativos contra a Inquisição romana na boca do dominicano francês Yves Congar. Afastado do ensino, mandado ao exílio, humilhado, Congar chegou a se sentir destruído, à beira do suicídio. "Desproveram-me de tudo aquilo em que acreditei e a que me entreguei", disse. Mas resistiu e venceu. Como compensação aos anos de silenciamento e em reconhecimento a sua profundidade teológica (um dos grandes inspiradores do Vaticano 2º), João Paulo 2º o fez cardeal em 1994. De Congar é esta frase: "Pode-se condenar uma solução, mas não se pode condenar um problema".
O jesuíta Juan Masiá, expulso da cátedra de bioética na Universidade Pontifícia de Comillas, afirma que a Igreja Católica fala de direitos humanos para fora, mas não os respeita dentro. "Renunciar ao espírito inquisitorial é uma questão pendente. Quando impera um sistema de pensar - na realidade, de não pensar - estritamente regulamentado pelos cânones da ortodoxia, quem quiser subir em sua ordenação não terá outro recurso além de calar-se. A perfeita ortodoxia levada ao extremo daria destaque ao silêncio e notabilidade à repetição de papagaio; uma aprovação por pouco a quem insinuar timidamente perguntas proibidas. E certamente uma suspensão a toda divergência, por mais fiel, responsável, inteligente, meditada e ponderada que seja."

Fonte: El País, 09 / janeiro / 2011-01-09
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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A Igreja abandonou as classes populares'', afirma José Comblin

6 de janeiro de 2011

José Comblin, um dos criadores da Teologia da Libertação, afirmou que a eleição de João Paulo II e de Bento XVI foi manejada pelo Opus Dei "praticando a chantagem, intimidando os cardeais", e que na América Latina o Papa "é mais divino do que Deus". Comblin, belga que vive no Brasil e acaba de visitar o Chile, país em que esteve exilado em 1972, durante o governo da Unidade Popular, explicou ainda que os teólogos da libertação têm hoje mais de 80 anos e "não apareceu uma nova geração" que desse continuidade a esse pensamento.
A reportagem é do sítio Religión Digital, 05-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"A repressão foi muito forte, terrível, e a ditadura do Papa aqui na América Latina é total e global. Aqui, pode-se criticar Deus, mas não o Papa. O Papa é mais divino do que Deus", asseverou o teólogo.
Segundo Comblin, a Igreja Católica "abandonou as classes populares, salvo os velhos e algumas relíquias do passado".
"Hoje, as universidades e os colégios católicos são para a burguesia. O porvir da América Latina é ser um continente evangélico protestante, salvo sua classe alta. Assim, a Opus Dei e os Legionários de Cristo e todas essas associações que existem de ultradireita vão crescendo nesse setor", opinou, em declarações no Chile à revista El Periodista.
"Onde há um ou dois bispos da Opus Dei no episcopado, intimidam a todos os demais. Os outros ficam calados e só um fala. Esse é um problema de psicologia típico de ditaduras", defendeu.
Segundo Comblin, "foi a Opus el que elegeu João Paulo II e o atual, praticando a chantagem, intimidando os cardeais. O próximo Papa será igual porque a Opus tem um poder muito forte".
O teólogo, de 87 anos, defende que Deus está "em La Victoria e em La Legua (dois bairros populares de Santiago) e na prisão, mas de Roma desapareceu há muito tempo".
"Agora, sempre fica mais claro que o problema é o Papa, ou seja, a função do Papa, uma ditadura implacável com muitas formas de doçura e amabilidade, mas implacável", defendeu.
Comblin defendeu que "o porvir do cristianismo está na China, Coreia, Filipinas, Indonésia. Estima-se que só na China há 130 milhões de cristãos martirizados, porque estão praticamente perseguidos".
O teólogo criticou a eventual canonização de João Paulo II porque seu papado "foi catastrófico".
"Todos os que fizeram sua carreira com ele puderam ser cardeais, apesar de sua mediocridade pessoal. Não mereciam nada, mas ele os promoveu. Claro que agora querem canonizá-lo! Uma vez que canonizaram Escrivá, todo mundo sabe que se pode ser santo sem ter virtude alguma", destacou.
Sobre a Opus Dei e os Legionários de Cristo, Comblin afirmou que "têm a confiança da Cúria Romana e depois representam a plena liberdade dada a personalidades que são como os grandes Rockefeller, os conquistadores".
"Como Escrivá de Balaguer, que era um capitalista, o homem que vai triunfar, que vai desfrutar o mundo, que vai ganhar, ser rico, poderoso e que é capaz de criar pessoas totalmente subordinadas, soldados com mentalidade de soldado, esses são todos homens deformados psicologicamente, como são os futuros ditadores", detalhou.
Depois de recordar que do mexicano Marcial Maciel, dos Legionários de Cristo, foi descoberta uma vida paralela e uma fortuna de 50 bilhões de dólares, afirmou que "sua chantagem, sua palavra e sua exigência chegaram aos milionários".
"Hoje, os que trabalharam com ele, seus colaboradores, todos dizem e afirmam que não sabiam nada da vida paralela (de Maciel). Como? Trabalham 40 anos com ele e não sabem de nada, que ele tem uma família, três filhos, que praticou a pedofilia com as crianças, alunos de sua formação, de seus colégios, que tinha um mundo de amantes. Não sabiam de tudo isso? Supõe-se, então, que eles são cúmplices e também têm uma vida paralela", concluiu.