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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Alvorecer ou declínio do Concílio?

Os rios cársticos correm debaixo da terra, mas mais cedo ou mais tarde retornam à luz. Foi o que ocorreu no sábado, 16, em Firenze, no encontro que reuniu 350 pessoas de toda a Itália, indivíduos cristãos e representantes de grupos, paróquias, comunidades de base. O rio cárstico do mundo que se reconhece em uma Igreja mais conciliar e mais sinodal voltou à luz. Uma Igreja que não se reduz aos movimentos, à hierarquia, à religião civil que – apontando a natureza como referência para a ética – busca reencontrar uma centralidade na sociedade como instituição, apontando mais para a relevância social do que para a força do Evangelho.
O relato é de Christian Albini, publicado no blog Sperare per tutti, do jornal La Stampa, 19-05-2009.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A iniciativa teve um porte nacional, apesar de a informação ter sido difundida em grande parte pelo boca a boca informal, por causa do mal estar que uma parte do povo de Deus sente, "o sofrimento de justamente não ver o Evangelho do Reino, anunciado por Jesus aos pobres, aos pecadores, aos que jazem sob o domínio do mal, no centro da atenção comum, enquanto cresce exageradamente a pregação da Lei". "Gostaria, no entanto, que ficasse claro que esse encontro não é contra ninguém, mas é por algo", explicou Pe. Paolo Giannoni, oblato camaldolense e um dos principais promotores da iniciativa. Do seu ermo em Mosciano, na Toscana, ele indica que "ninguém está excluído desse caminho. A atitude é inclusiva, de abertura, e afirma uma Igreja que, como a veste de Jesus, toda tecida em uma parte, é unida, mas não uniforme".
"Uniformizá-la significaria perder a sua grande riqueza. Diante de um método que há anos vem se afirmando numa via excludente, queremos uma abertura que diga claramente que o Senhor nos chamou para edificar não uma Igreja que condena, mas uma Igreja que manifeste a misericórdia do Pai, que viva na liberdade do Espírito, que saiba sofrer e se alegrar com toda mulher e com todo homem que lhe é dado encontrar".
A intenção, enfim, era dar alento, voz e esperança àqueles fiéis que não se reconhecem plenamente nas orientações do atual período eclesial. Havia os "filhos" de Dossetti, de Turoldo, de Balducci: estudiosos como Alberto Melloni; padres que conjugam o serviço aos últimos e o aprofundamento da Palavra como Giovanni Nicolini; teólogos como Giuseppe Ruggieri e Serena Noceti; padres operários; realidades locais e nacionais de todo o tipo como "Noi siamo Chiesa", "Pax Christi", "Il chicco di senape" de Turim, "Il gallo" de Gênova, grupos de fiéis homossexuais e muitos outros... Chegaram mensagens de Luigi Bettazzi e Camillo De Piaz, entre os últimos protagonistas do período conciliar. Pessoas e ambientes com uma história muitas vezes importante se encontraram. Os dois troncos principais eram o do dissenso católico e o do catolicismo democrático, nem sempre capaz de colaborar ao longo dos anos.
Enrico Peyretti e Ugo Rosenberg de Turim iniciaram com um reconhecimento das cerca de 40 contribuições que foram enviadas em vista do encontro, fazendo emergir cinco pontos centrais: a mudez do laicato, a mundanização da sociedade e da Igreja, o esquecimento do Concílio, o analfabetismo bíblico e o déficit de gratuidade e pobreza no agir eclesial. Foi retomada também a pergunta de Helder Câmara que eu havia proposto no texto enviado por mim: "Se os bispos são os sucessores dos apóstolos, onde estão os sucessores dos profetas e dos doutores?", interrogação que expressa o desejo de uma Igreja una, mas não uniforme, marcada pela riqueza da variedade. Como é a Igreja narrada pela Bíblia.
As duas relações principais foram as de Paolo Giannoni e Giuseppe Ruggieri.
O primeiro deteve-se na força do Evangelho proclamado por Jesus, que assumiu todas as realidades humanas, "tocou" os corpos para infundir a cura, se sentou à mesa com os pecadores, tornando o mistério do amor trinitário visível aos nossos olhos e palpável às nossas mãos. Um amor que contém dentro de si o outro e que constitui a forma da Igreja. Cristo não exclui ninguém, mas assume tudo e todos. Isso tem diversas consequências para a vida da Igreja, entre as quais o fato de estarmos todos em busca, em crescimento, e a necessidade de um "convir".
Giuseppe Ruggieri, pelo contrário, expôs os elementos de uma Igreja da fraternidade e da amizade, conduzida não por uma doutrina, mas por algumas experiências fundamentais: a liturgia como fonte da liberdade da Igreja e como base da sua sinodalidade (na "Sacrosanctum concilium", a liturgia é apresentada tanto como dom de Deus, como participação); o chamado da Igreja a seguir Jesus pobre no anúncio do Evangelho (pelo qual o Evangelho basta a si mesmo, sem necessidade de sustentações temporais); enfim, a misericórdia contínua do Pai como fundamento da Igreja (a qual subsiste só sobre o fundamento da graça e não dos próprios méritos) e o anúncio aos homens e às mulheres (uma Igreja sem pecado, então, é ilusão e até o fim dos tempos ela leva consigo a cizânia. Por isso, só é possível voltar-se aos outros com a ternura e a misericórdia recebidas de Deus).
A proposta final de Ruggieri foi a de um fórum permanente dos cristãos, um evento de Igreja que seja a atuação da sinodalidade tão evocada.
Nas breves intervenções que se sucederam durante a tarde, a necessidade de um encontro desse tipo e o desejo de seguir adiante foram uma constante. Além do fórum, falou-se sobre um conselho de leigos, de Internet, de coordenação e expressões semelhantes. Em algumas prevaleceu a denúncia, a invectiva (nascidas muitas vezes de feridas profundas), mas o que é verdadeiramente decisivo são as perspectivas futuras, para que o encontro de Firenze não seja um fogo de palha. Perder-se nas condenações significaria replicar o estilo que não é aceito por parte da hierarquia e seria um exercício leviano, além de estar em contradição com o pedido de uma comunidade cristã verdadeiramente acolhedora. Não por acaso, Giannoni convidou que fossem recolhidas as razões de todos e afirmou que, em uma ocasião do gênero, teria sido significativo se bispos e lefebvrianos também tivessem participado.
A necessidade de mais liberdade, de ter mais voz, de busca, de contribuir com a missão da Igreja requerem uma tradução em um percurso e em uma idealização que faça surgir essa opinião pública hoje ausente na Igreja. Não para transformar a comunidade cristã em um parlamento ou em uma organização, mas para dar espaço à ação do Espírito que sopra sobre todos os discípulos do Senhor, e não só sobre estes.
Os temas colocados sobre a mesa foram muitos: os últimos, a paz, a laicidade, a imigração, as mulheres na Igreja... Todos importantes, mas se estivemos reunidos para fazer uma experiência de Igreja (antes que política ou cultural), que não é possível nos contextos "oficiais", então o objeto de estarmos reunidos foi, antes de tudo, a Igreja, o modo de concebê-la e de vivê-la na fé, que se reflete na aproximação a outros temas e nas escolhas operativas dos fiéis. Aprofundar e praticar uma outra face de Igreja é tornar operante a própria fé, como disse Ruggieri, isto é, uma fé que saiba desenvolver a energia nas coisas em que se acredita. De fato, entre as breves intervenções da tarde, achei particularmente incisiva a de Serena Noceti, que, com grande capacidade sintética e força conceitual, indicou na eclesiologia a direção para a qual prosseguir a partir dos textos conciliares. Sem ignorar os fortes momentos de oração, como pediu Gianni Geraci.
A meu ver, ao se dar seguimento ao encontro de Firenze, será decisiva a dimensão da comunicação. Há um abismo a ser ultrapassado, é preciso manter a lâmpada alta, para que ilumine. Mesmo que positivo e enriquecedor, foi um momento para os "adeptos aos trabalhos". Havia pessoas de grande valor e estatura, mas a idade média elevada era índice do pertencimento a mundos que os 30 anos de "freio de mão" sobre o Concílio esvaziaram e destruíram, empurrando para a periferia do espaço eclesial. É tempo de fazer crescer uma nova geração. Eis porque é decisivo trabalhar a comunicação.
Se houver, como se projetou, outros encontros (um ou dois por ano, talvez alternando entre o norte e o sul da Itália), a comunicação se torna indispensável para ampliar o envolvimento e a participação. O dia 16 de maio não deveria ser repetido, mas deveria ser um ponto de partida para criar momentos de Igreja inclusivos e abertos, para fazer crescer vozes que saibam verdadeiramente fazer-se ouvir, para fazer crescer uma consciência conciliar. Senão, o risco é criar um círculo fechado, elitista, em que só se fala para dentro.
Agora há duas eventualidades (e uma grande responsabilidade) para os promotores: o encontro de Firenze pode ser um alvorecer ou um declínio para o Concílio na Itália, o canto do cisne de uma geração, ou o início de uma nova história. A minha sugestão é que se use a Internet para manter o contato entre os participantes, recolhendo ideias sobre os passos futuros e mantendo assim o estilo de acolhida de cada contribuição que caracterizou a preparação desse encontro.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Igreja mergulha em longo processo neoconservador

Entrevista especial com João Batista Libânio


Recentemente, teólogos e teólogas alemães, suíços e austríacos, lançaram um manifesto propondo reformas para a Igreja em 2011. A convite da IHU On-Line, o teólogo João Batista Libânio leu o documento e analisou as propostas, concedendo por e-mail a entrevista a seguir. Resumindo, ele é enfático: “A tônica do projeto do Papa e a do manifesto divergem”.
Com a experiência de quem presenciou “nítidos momentos no processo eclesiástico” da Igreja nas últimas décadas, Libanio ressalta que o manifesto “alude ao fato de que em 2010 ‘tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição’”. A constatação do êxodo cristão, entretanto, “não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica”, assinala.
Para ele, Roma reforça a autoridade sobre as igrejas locais porque elas a solicitam. “A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte”, lamenta.
Libânio também comenta a nomeação de bispos brasileiros para integrarem a Cúria Romana e diz que as atuais nomeações “respondem ao atual perfil de Roma. (...) Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico”.
João Batista Libânio é padre jesuíta, escritor e teólogo. É doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de inúmeros livros, dentre os quais Teologia da revelação a partir da Modernidade (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua reação ao manifesto que propõe reformas para a Igreja em 2011, elaborado por teólogos alemães, suíços e austríacos?
João Batista Libânio – Impressiona, logo à primeira vista, o conjunto de assinaturas de teólogos da mais alta competência e responsabilidade. Portanto, não subscreveriam nenhum manifesto superficial, imprudente. Concordemos ou não com as proposições, ele merece séria consideração e detida atenção.
Parte do inegável mal-estar que afetou não só a Igreja Católica alemã e de alguns países por causa do escândalo da pedofilia, mas de toda a Igreja por ver-se nele a ponta de um iceberg de maior amplitude: a falta de liberdade e de transparência no interior da Igreja devido ao cerceamento das instâncias de poder eclesiástico. Por isso, o manifesto bate forte na tecla das estruturas de governo da Igreja Católica.
IHU On-Line – A partir da sua trajetória sacerdotal, o senhor também concorda que a Igreja precisa ser reformada? Quais seriam as reformas urgentes?
João Batista Libânio – Os anos me permitem perceber três nítidos momentos no processo eclesiástico das últimas décadas. Ainda conheci estruturas hieráticas no pontificado de Pio XII, que lançava a imagem do poder eclesiástico onisciente e onipotente. Roma pronunciava-se sobre os mais diversos assuntos e com a consciência de dizer verdades inquestionáveis. Não se percebia sinal de dúvida ou perplexidade. Isso acontecia com duplo efeito. Positivamente, oferecia aos católicos fieis enorme segurança sobre temas desde a astronomia até a intimidade da vida conjugal. Para aqueles que já tinham recebido o impacto da modernidade liberal, democrática, marcada pela subjetividade, autonomia das pessoas, consciência história, práxis transformadora, tais declarações romanas produziam enormes dificuldades e mal-estar.
Veio então João XXIII. Convoca o Concílio Vaticano II que inicia, com certa coragem, o diálogo da Igreja com a modernidade. Usando a imagem da música “andante ma non troppo”, a Igreja caminha em direção ao repensamento doutrinal e pastoral, provocado pelos questionamentos teóricos e práticos levantados nos últimos séculos. No entanto, o tempo de aggiornamento não durou muito. Já no próprio Pontificado de Paulo VI, a partir de 1968, despontam sinais de contenção e retrocesso. E depois a Igreja Católica mergulha em longo processo neoconservador que dura até hoje. As inovações iniciadas no Vaticano II se interromperam e outras não surgiram, exceto em um ou outro gesto ousado de João Paulo II, como a Oração pela Paz em Assis com os líderes das diferentes religiões do mundo. Ainda que o clima geral não fala de abertura, entretanto percebe-se-lhe a necessidade.
IHU On-Line – O manifesto também propõe uma reconversão da Igreja. O que o senhor entende por esta proposta?
João Batista Libânio – A Igreja tem a enorme graça de pôr como referência última, principal, insuperável a pessoa de Jesus Cristo. E quanto mais se conhece o Jesus histórico, mais se percebe a força revolucionária de sua pessoa. Ele não deixa nenhuma estrutura esclerosar-se, sem que lhe seja acicate de mudança. Menciono de passagem o maravilhoso livro de J. Pagola, Jesus: aproximação histórica (Petrópolis: Vozes, 2010), que nos descreve e narra um Jesus colado à realidade no projeto maior de devolver às pessoas a dignidade.
Diante dessa figura de Jesus, muitas estruturas eclesiásticas sofrem terrível crítica. A partir dele, cabe falar de contínua reconversão da Igreja. Basta comparar a figura de Jesus andarilho, de Pedro pescador e crucificado em Roma com certas aparências poderosas clericais para ver a gigantesca distância e a força crítica de Jesus. Santo Inácio de Loyola apostava na força de conversão da contemplação dos mistérios de Jesus. Isso vale em nível pessoal, comunitário e eclesiástico. Em confronto com a pessoa de Jesus, a Igreja se vê questionada continuamente a assumir formas de humildade, simplicidade, pobreza, abandonando o luxo, o esplendor, a arrogância triunfante.
IHU On-Line – O manifesto diz ainda que somente através de uma comunicação aberta a Igreja pode reconquistar confiança. Em que consistiria uma comunicação aberta com a sociedade?
João Batista Libânio – Só existe comunicação aberta se se abrem canais de entrada e saída. De entrada nos recônditos dos segredos, nas manipulações e jogadas maquiavélicas, nas tramas urdidas na noite do anonimato. Existe limite difícil de ser traçado do direito ao sigilo de consciência, de reputação das pessoas e comunicação transparente. Portanto, não se trata de questão fácil. Entre os extremos da cultura Big Brother – da total e perversa transparência – e dos sigilos cabalísticos de verdades a que os fiéis têm direito de conhecer, existe um meio termo de clareza e de possibilidade de acesso. O canal de saída refere-se à liberdade de expressão das pessoas no interior da Igreja a respeito da vida da Igreja. No embate da discussão encontram-se melhores caminhos que na proibição da mesma.
IHU On-Line – É possível a Igreja romper com tradições, se renovar sem perder seus princípios básicos?
João Batista Libânio – Não se trata nem de romper nem de engessar a Tradição, ou mais corretamente as tradições. Na polêmica com Mgr. Lefebvre, que defendia a literalidade da Tradição e das tradições, Paulo VI insistia na necessidade de interpretá-la (s). Eis a questão! Os princípios permanecem no nível universal, abstrato. Importa ver como eles são entendidos nas situações concretas. E aí está o problema. O trabalho interpretativo tem exigências. Implica esforço da inteligência de captar três coisas. O significado da questão no contexto primeiro em que ela foi formulada e respondida. Esta mesma questão como se entende hoje. E, então, como o significado de ontem se reinterpreta para hoje. Por exemplo, a usura, cobrar mais do que se emprestava, até o nascimento do capitalismo se considerava roubo, portanto eticamente condenável. Hoje, ela se chama juros e ninguém os considera imorais. Então, como se fez a transposição de um princípio ético no pré-capitalismo para o capitalismo?
Numa economia estável sem circulação monetária parecia injusto receber mais do que se emprestava. Nisso consistia a injustiça. Numa sociedade em que o dinheiro se tornou fonte de renda, se considera injustiça só quando as taxas de juros superam de muito a força de rentabilidade. Recebe o nome de agiotagem. Mas cobrar taxas razoáveis não contradiz o princípio ético pré-capitalista no significado, embora materialmente pareça opor-se a ele (usura). Problemas semelhantes se levantam em muitos campos.
IHU On-Line – O documento também chama a atenção para a necessidade de reconhecer a liberdade de consciência individual, referindo-se também a opção sexual dos indivíduos. Entretanto, observa que “a alta consideração da Igreja pelo matrimônio e pela força de vida sem matrimônio está fora de discussão”. Parece algo contraditório?
João Batista Libânio – A consideração anterior que fiz no campo das finanças vale no campo da sexualidade. Os ensinamentos morais da Igreja sobre o matrimônio permanecem válidos na linha dos princípios. E cabe perguntar-nos pelo seu significado profundo que diz respeito à dignidade humana, ao respeito das relações afetivas. Que significam o respeito e a dignidade nas relações humanas na união homoafetiva? Não se responde em abstrato, mas a partir das experiências que se fazem no concreto da vida. Tanto nas relações matrimoniais como nas homoafetivas existem tanto dignidade, respeito como o oposto. E as considerações éticas descem ao concreto de tais relações para aí interpretar o princípio fundamental da dignidade humana, do respeito entre as pessoas, o projeto de amor de Deus.

IHU On-Line – O que significam os casos de pedofilia na Igreja?
João Batista Libânio – Revelam a face pecadora dos homens e mulheres de Igreja em todos os níveis: do simples fiel até pessoas da alta hierarquia. Em face do pecado, cabem, em primeiro lugar, a conversão e o perdão de Deus. Quando o direito de outras pessoas é lesado, como no caso da pedofilia que fere gravemente a criança envolvida, entram fatores de reparação desde a econômica até a judicial. Nada justifica o ocultamento, mas importa tomar as medidas concretas para evitar outros casos, sanear o acontecido, reparar o estrago feito.
Evidentemente, não tem sentido entrar no sensacionalismo da mídia. Está em jogo algo sério demais para ser simplesmente assunto de folha policial em ocasião para jogar pedras na Igreja. Não se pensa em acabar com a família, embora nela aconteça a imensa maioria dos casos de pedofilia. A mesma mídia que divulga, “escandalizada” casos de pedofilia, termina sendo uma das causas importantes da decadência moral da sociedade com a enxurrada de programas de banalização do amor, de sexualização das crianças, de exibicionismo e voyeurismo sexual, da perda de senso de responsabilidade social. A luta contra a pedofilia exige programa complexo de purificação das fantasias, de presença maior de educação sadia, de melhoria de cultura veiculada pela mídia.
IHU On-Line – Quais são as perspectivas e os desafios da Igreja para esta segunda década do século XXI?
João Batista Libânio – Distingamos os níveis. No momento, em nível das estruturas internas da Igreja não se veem perspectivas animadoras. Durante o longo pontificado de João Paulo II, a Igreja Católica viveu o paradoxo, de um lado, de rasgos de abertura na prática do diálogo inter-religioso, na defesa dos direitos humanos, na oposição a toda guerra enfrentando, inclusive, as pretensões americanas, na proximidade com o mundo dos pobres e, de outro, de enrijecimento doutrinal e disciplinar interno. No horizonte, não se percebe que a Igreja enfrentará os novos desafios da cultura contemporânea por meio de mudanças internas, como fez, em parte, logo depois do Concílio Vaticano II. Falta o clima de abertura, de otimismo e de profetismo para lançar-se em transformações profundas. Em termo de hierarquia, reina antes momento de silêncio, de prudência sem muita inspiração e lanço de coragem inovadora. A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte.
No universo dos leigos há sinais de esperança nas comunidades de base, na crescente participação consciente e ativa das mulheres, no maior desejo de espiritualidade e teologia, na vitalidade de novos ministérios, na criatividade litúrgica, no acesso amplo às Escrituras pela via da leitura orante. Em algumas igrejas particulares a Assembleia do povo de Deus anuncia algo de novo, desde que a clericalização não a prejudique.
IHU On-Line – O senhor concorda com a tese de que o Vaticano está enquadrando a Igreja no Brasil?
João Batista Libânio – Cícero chamou a história “mestra da vida”. Lancemos um olhar para os últimos séculos a fim de entender a relação entre o Vaticano e as igrejas locais. Gregório VII, no século XI, deu a decisiva guinada da autonomia das igrejas locais para crescente poder de Roma. Ele pautou o governo pontifício pelo dictatus papae, que ressuda centralismo, autoritarismo desmedido. Esse longo processo de quase mil anos marcou uma linha de comportamento em que Roma exerce imensa influência sobre as Igrejas particulares ou regionais. O Concílio Vaticano II, com a colegialidade, tentou diminuir tal tendência, mas com pouco resultado. Faz parte, portanto, da consciência comum eclesiástica a dependência em relação a Roma. E a dialética de dependência de uma parte pede o exercício de domínio da outra.
A criança que pergunta a mãe que meia vai usar pede uma mãe cada vez mais absorvente que termina ditando-lhe tudo. Assim na Igreja. Roma responde com autoridade e a reforça porque as próprias igrejas locais a solicitam e ficam à espera. A liberdade se entende como relação entre duas liberdades. Não há liberdade de um lado só. Que o diga Erich Fromm no magistral livro Medo da liberdade. As análises que lá faz, baseadas em sua experiência do nazismo, valem para toda relação de submissão e de autoritarismo, onde ela se dê. No dia, porém, em que as igrejas locais tomarem maior consciência de outra eclesiologia, então a Igreja de Roma também lentamente afinar-se-á com ela. O processo se institui de ambas as partes simultaneamente em mútua relação e influência.
Quanto mais a Igreja do Brasil marcar a originalidade, a liberdade, a autonomia, tanto mais Roma a reconhecerá. Se ela, porém, está a esperar para cada palavra que disser um sorriso aprobatório de Roma, a liberdade se encurtará e a autonomia se dissolverá. Quem age sob o olhar de um outro, termina condicionando-se de tal modo que perde a própria identidade.
IHU On-Line – Como avalia a notícia de três nomeações de bispos brasileiros para ocupar cargos importantes na Cúria Romana? O que isto significa? Terá algum impacto na CNBB?
João Batista Libânio – A nomeação dos membros da Cúria Romana obedece ao difícil jogo de interesses e preocupações. Não creio que o caráter nacional, no caso, o fato de ser brasileiro, seja predominante. Entram em questão outros critérios de linha teológica, ideológica, de indicações de pessoas influentes, de vinculação a movimentos de igreja, de serviço prestado. Em termos modernos, falamos de “perfil”. As firmas, as instituições contratam ou dispensam funcionários dando como razão o fato de corresponderem ou não ao seu perfil. Analogamemte vale no caso da Igreja. Julgo que os bispos brasileiros escolhidos para cargos romanos respondem ao atual perfil de Roma. Coincide que vários brasileiros corresponderam a tal retrato e então foram escolhidos. Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico.
IHU On-Line – Como vê a atual internacionalização da Cúria Romana? Como propõe o manifesto, a sociedade deveria ajudar a escolher os representantes?
João Batista Libânio – A internacionalização traz vantagens. Mas não decide por si mesma. Acontece que a cor internacional desaparece facilmente por homogeneização ideológica por força da instituição. Se cada nação levasse para dentro da Cúria Romana a própria originalidade e a conservasse em contínuo diálogo com a predominante cultura europeia e romana, então a internacionalização causaria outro efeito.
Bispos latino-americanos, africanos ou asiáticos que arribam a Roma se romanizam a ponto de não se distinguir muito dos outros. Outra coisa significaria se as igrejas locais se fizessem presentes em Roma por meio de seus representantes, escolhendo-os e eles fazendo-se porta-voz delas. Mais: se elas mesmas decidissem na escolha dos ministros que as servem ou vetassem aqueles que não as satisfizessem. Assim evitaríamos casos desastrosos que tivemos de bispos, párocos ou pessoas em outras funções que durante décadas exerceram funções com detrimento da vida eclesial em vez de construí-la e os fieis tiveram de suportá-los calados e sem poder de mudança. Certos aspectos da sociedade democrática não contradizem, teologalmente falando, a maneira de designar membros da hierarquia. A escolha pode ser democrática, embora a conferição se faça pela graça do sacramento.
IHU On-Line – O que significa, para a Igreja brasileira, a nomeação de Dom Odilo Scherer no Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização?
João Batista Libânio – Como disse acima, os critérios de escolha das pessoas respondem antes ao perfil buscado pelo Vaticano para determinada função e ao peso de influências indicativas que à origem nacional. E o perfil se define pela combinação do histórico do bispo em questão e as conveniências da Instituição. Para alguém que está fora desse jogo fica muito difícil fazer juízo objetivo sobre as indicações. No início de cada governo no mundo da política, assistimos ao delicado jogo da escolha das pessoas para os cargos. Nem todos os indicados e escolhidos respondem ao desejo do presidente ou do papa, no caso da Igreja, mas entram na lista para cumprir uma série de acordos necessários para o governo. A política eclesiástica não escapa totalmente dessa regra.
IHU On-Line – Está em curso a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil?
João Batista Libânio – Teríamos que conhecer de antemão o programa do Papa. Os papas, em geral, não fazem discursos programáticos, mas dogmáticos. E supõe-se arguta análise para perceber sob as afirmações doutrinais que tipo de prática de governo subjaz. Aventuraria dizer que Bento XVI atribui relevância especial à qualidade da pertença à Igreja e não se impressiona tanto com a diminuição estatística. O manifesto dos teólogos alude ao fato de que em 2010 “tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição”. Enquanto percebo, tal constatação não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica.
No projeto de Igreja em curso, a fidelidade, a exatidão doutrinal e a coerência prática disciplinar merecem relevo preponderante mesmo que à custa de êxodo de católicos.
O manifesto pondera a questão do isolamento da Igreja em relação à sociedade. Tal fato, porém, não se entende na percepção pontifícia de modo negativo, enquanto fechamento, mas como exigência de coerência com a própria mensagem a despeito da incompreensão por parte da mentalidade moderna.
Outra coisa, como parece supor o manifesto, tal aspecto implicaria incongruência com o projeto salvífico de Jesus. A questão teológica se desloca. Até onde tal programa eclesiástico afasta-se do reino anunciado por Jesus? Acusação grave que precisa ser bem pensada e discutida de ambos os lados. A tônica do projeto do Papa e a do manifesto são divergentes. No primeiro caso, volta-se para a Igreja e quer mantê-la na sua atual estrutura e, a partir daí, cumprir melhor sua função. No outro, propõe-se o projeto de Jesus e se pergunta como adequar as estruturas da Igreja a ele. Pontos divergentes que geram leituras diferenciadas. Só o diálogo mostra o limite e a positividade de cada perspectiva. O manifesto acentua: primeiro a liberdade individual e de consciência e a partir dela a fidelidade. A atual disciplina eclesiástica: primeiro a fidelidade à doutrina e à prática e aí dentro a liberdade.
O mesmo vale de outros pontos acentuados pelo manifesto: participação dos fiéis, comunidade de partilha, reconciliação dos pecadores e celebração ativa, enquanto o projeto eclesiástico em curso entende tais demandas a partir dos quadros jurídicos traçados para a participação, para a vida de comunidade, para a reconciliação e celebração e não à sua revelia ou à exigência da sua mudança. Nessa tensão consiste, segundo minha leitura, a divergência maior entre o manifesto e o que está em curso atualmente no seio da Igreja Católica.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Alberigo o Concílio dentro da história

O jornal Corriere della Sera, 05-05-2009, publicou uma síntese do prefácio escrito pelo cardeal alemão Karl Lehmann, bispo de Mainz, para o livro "Transizione epocale. Studi sul Concilio Vaticano II" [Transição epocal. Estudos sobre o Concílio Vaticano II, em tradução livre] (Editora Il Mulino), que recolhe os ensaios de pesquisas dedicadas pelo historiador Giuseppe Alberigo (1926-2007) aos fatos e às deliberações conciliares. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
Giuseppe Alberigo chegou aos estudos sobre o Concílio de dentro do Vaticano II em uma posição totalmente particular: com o seu mestre Hubert Jedin e alguns outros, foi um dos poucos especialistas presentes em Roma entre 1962 e 1965 que tinham um conhecimento efetivo do desenvolvimento histórico dos concílios e da sua peculiaridade na história da Igreja. Alberigo seguiu e defendeu, com opiniões, memórias, apontamentos, a atividade do cardeal de Bolonha e moderador do Concílio, Giacomo Lercaro. Sobretudo, participou daquele fermento de pensamento sobre o qual o Concílio apoiou a sua intensa atividade e a profundidade da atualização. E ele teve também um papel específico na difícil discussão sobre a colegialidade episcopal.
Porém, além de viver o Concílio, Alberigo se tornou rapidamente um estudioso desse evento, que se dedicou à edição de um instrumento cujo valor fica claro ao folhear as imitações que o seguiram: a "Synopsis historica" da constituição "Lumen Gentium", de fato, não é só um trabalho de excelente fineza filológica que alinha as versões do "De Ecclesia succedutesi" da preparação do documento à sua votação final em 1964. Ela fornece, além disso, as pegadas de um modo de pensar o Concílio e fornece aquele princípio histórico e hermenêutico que se coloca em toda a sua originalidade na discussão sobre a aplicação, recepção, superação e rejeição do Concílio, tão clara naquele momento (1973).
Turbulenta como a recepção de todo grande concílio, a fase pós-Vaticano II também via as atitudes de desvalorização do Concílio de todo o tipo sobreporem-se: uma banalização "aplicativa" que esmiuçava o concílio em "loghia", um medo intimidante diante da prepotência do despertar da vida cristã, uma rejeição arrogante do que a ação do Espírito na Igreja vinha suscitando, um desprezo pela cansativa pesquisa de fidelidade ao Evangelho em nome de preferências teológicas excêntricas.
A sua resposta de estudioso amadureceu em torno do sínodo de 1985, por ocasião do qual emergiu claramente a distância entre uma fidelidade nominalista ao Concílio e a fidelidade ao evento de graça do qual os bispos, junto com João Paulo II, confessaram posteriormente o caráter de novo Pentecostes que o Papa João XIII havia sonhado. Nasce, pouco depois daquele sínodo ao qual Alberigo havia dedicado um dos fascículos da [revista] Concilium, editada por ele, o projeto de uma história do Vaticano II: o projeto de uma aquisição do Concílio à história.
Porque o Vaticano II, como todo grande concílio, chegou a produzir certamente um decreto cujos gêneros literários são variados: mas o processo que levou a esses atos não foi uma banal estrutura sob a qual se construiu o edifício da decisão, mas foi ele mesmo ato e história, e é disso que o historiador deve se ocupar. O evento conciliar, enfim, não se coloca em uma posição preliminar e subalterna, mas entra na área de interesse do historiador: e é sobre isso que se baseia toda hermenêutica do texto, que não só encontra, no processo redacional, pistas necessárias para uma interpretação autêntica, mas sobretudo encontra nessa epifania de comunhão e de catolicidade que é o Concílio o próprio estatuto e os próprios antídotos contra os sofismas astutos e as manipulações involuntárias.
Essa articulação entre evento e decisão, portanto, constitui talvez a maior contribuição que Alberigo deixou para a história, para a história da Igreja e também da Igreja católica: contribuição que justamente continua sendo inacessível a quem não tenha um marcado sentido histórico e imagine a colocação da Igreja na história como um detalhe mudo. Um docetismo eclesiológico como esse era estranho a Alberigo, justamente porque a sua ideia sobre o fato de que o cristianismo é feito de história encontrava, em muitos momentos do percurso da Igreja no tempo e de modo particular na história dos concílios, os próprios fundamentos críticos.
Assim, enquanto os aniversários se sucedem, os comentários assumem um o lugar do outro, e uma nova edição crítica afina o conhecimento do texto, o Concílio continua lá: interrogando e iluminando a Igreja, a teologia, a história. Outros concílios, não menos vibrantes e decisivos, tinham que se contentar com uma historiografia polêmica ou deviam ser medidos com hermenêuticas denigratórias muito pesadas. O fato de que o Vaticano II tenha tido à disposição um historiador do valor de Alberigo faz parte da história desse Concílio, mas também do futuro da Igreja.
Para ler mais:
• Giuseppe Alberigo, historiador do Vaticano II
• A Bíblia critica a Igreja, segundo Karl Lehmann
• 'Ratzinger deveria fazer um Concílio Vaticano III', afirma Zizola
• ‘Os católicos alemães esperam uma valorização do Concílio Vaticano II’
• Quem ainda tem medo do Concílio?
• Sínodo dos Bispos atualizou o Concílio Vaticano II. Entrevista especial com Johan Konings

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Impacto do Concílio Vaticano II e da Teologia Latino-Americana na América Central

“O Kairós tem duas características: surge inesperadamente, onde ninguém esperava; o kairós vem depois de um ‘tempo ruim’, um tempo negativo, um tempo de retrocesso”. A afirmação é de Pablo Richard, teólogo e biblista chileno, em artigo publicado no sítio da Adital, 17-05-2011. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.
Primeiras Jornadas Teológicas da América Central e do Caribe, 26 a 29 de abril de 2011.
I: Conceito bíblico de “Kairós”
Existe um conceito bíblico muito importante: “kairós”, que significa “tempo oportuno”, “tempo de graça”.
Tem duas características: surge inesperadamente, onde ninguém esperava; o kairós vem depois de um “tempo ruim”, um tempo negativo, um tempo de retrocesso.
II: O kairós, o tempo bom, o tempo de graça, foi inaugurado em 1962 pelo Concílio Vaticano II, pelas Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, pela Teologia da Libertação, pelas Comunidades de Base e muitos outros movimentos sociais de inspiração cristã, que constituem esse tempo oportuno que Deus criou para a Igreja Universal e especialmente latino-americana e caribenha. O Papa iniciador deste tempo oportuno foi João XXIII, talvez o maior profeta que a Igreja teve no século XX.
III: O tempo ruim e negativo anterior ao kairós atual:
Entre o Concílio Vaticano II (1962-1965) e o final do Concílio de Trento (aproximadamente no ano de 1563) se passaram 400 anos. Este tempo em geral foi um tempo negativo e de retrocesso. O Concílio de Trento foi a resposta à Reforma da Igreja proposta por Lutero. Foi um concílio de contra-reforma, que reconstruiu toda a Igreja para que nunca mais houvesse uma reforma.
Um fato significativo foi a proibição de traduções da Bíblia nas línguas vernaculares. Podemos dizer que a Igreja viveu 400 anos sem Bíblia. O Vaticano II rompeu esta tradição (com a Constituição Dei Verbum) e foi o kairós do movimento bíblico em todo o Povo de Deus. Outras reformas tornaram realidade esse tempo novo: criação de um novo modelo de Igreja (Igreja luz dos Povos e Igreja que assume o gozo e a esperança dos povos). Outras reformas se deram no campo da liturgia, da missão e do ecumenismo.
III: O Kairós, esse tempo bom que Deus nos ofereceu, tem limites, não é eterno, pode se esgotar, inclusive pode provocar crises irreversíveis.
O esgotamento deste tempo bom gerou dois modelos de Igreja (não duas Igrejas, mas duas maneiras de ser Igreja).
Uma Igreja Povo de Deus, na qual esse tempo bom, esse kairós de Deus, tem a possibilidade de seguir existindo. Este é o modelo de Igreja que os pobres necessitam para sobreviver.
Uma Igreja de Cristandade, que necessita do poder e do dinheiro para sobreviver. Uma Igreja onde o Kairós de Deus tem muitas dificuldades para perdurar.
Nota indispensável: os dois modelos de Igreja que apenas descrevemos não são duas Igrejas que vivem separadas e confrontadas entre si. Os modelos se entrecruzam, há sinais da presença de Deus na Igreja da Cristandade e sinais de cristandade na Igreja dos pobres.
Um grande teólogo do Opus Dei me dizia certa vez: “Pablo, tu és o teólogo mais radical e mais ortodoxo que já conheci”. Isso ilustra o que acabo de dizer.
IV: A Igreja Povo de Deus, por sua própria identidade, é a Igreja onde esse tempo bom, esse kairós de Deus, tem a maior possibilidade de se consolidar.
Sinais da presença desse kairós, desse tempo bom de Deus, na Igreja dos pobres. Posso apenas enumerá-los:
1: A opção pelos pobres e contra a pobreza.
O termo “pobre” com toda a sua complexidade: os oprimidos, os que vivem na rua, os doentes de HIV/Aids, os desprezados por sua raça ou cor, os marginalizados por suas opções sexuais diferentes, as mulheres e maltratados, pobres que muitas vezes são “invisíveis”.
2: As Comunidades Eclesiais de Base, onde se une Oração, Palavra de Deus e Solidariedade.
3: A Leitura Popular de Bíblia, feita com liberdade, autonomia. A Leitura Orante da Bíblia, que transforma o texto em Palavra de Deus. Neste tempo de crise da Igreja, a leitura popular é o mais significativo e seguro que podemos fazer.
4: Teologia da Libertação com 40 anos ou mais de desenvolvimento.
5: Uma Igreja autóctone, onde a força da inculturação vem dos próprios indígenas, afro-americanos, e de outras tantas culturas e religiões.
6: Vida religiosa inserida em ambientes marginalizados e desprezados.
7: Os novos ministérios, onde desapareçam as divisões entre leigos e clérigos. Dessacralização e des-sacerdotalização dos novos ministérios. Assumir a atitude de Jesus frente ao Templo judaico e seus sacerdotes. Na Igreja originária não há sacerdotes, mas “presbíteros” (anciões, mestres).
A inclusão da mulher em todos os ministérios e responsabilidades da Igreja. As mulheres, mas tampouco os homens, não devem ser ordenados como “sacerdotes”. As mulheres devem ser integradas como mestras, sábias, teólogas, isto é, assumir todas as funções que tem o presbiterado.
“Nunca mais uma Igreja sem mulheres”
Novos ministérios próprios de uma Igreja Povo de Deus: Camponeses Delegados da Palavra de Deus, Catequistas, Diáconos (homens e mulheres), diáconos indígenas (atualmente proibidos em San Cristóbal de las Casas, no México), oradores (que organizam a oração da comunidade), curadores e muitos outros.
A igreja dos pobres estará no futuro quase inteiramente nas mãos dos leigos e leigas.
8: Uma Igreja que tem seus próprios centros de formação, tanto na América Latina como no Caribe. Sem formação dos ministros das comunidades a Igreja dos pobres não tem futuro.
9: Uma Igreja de profetas e mártires, tanto mulheres como homens.
10: Estratégia fundamental da Igreja Povo de Deus: evitar as contradições desnecessárias e crescer aí onde está sua força.
Uma Igreja com esperança, que sabe que depois de cada crise, é possível reconstruir o tempo bom de Deus.
V: A Igreja de Cristandade
Um modelo de Igreja onde o Kairós que Deus nos outorgou desde o começo do Concílio Vaticano II começa a se esgotar e cair em uma crise que pode ser irreversível.
A Igreja de Cristandade, que vive graças ao dinheiro e o poder, é uma Igreja que perdeu os pobres. Uma Igreja que atrai e concentra o maior número de Presbíteros a serviço dos que têm dinheiro. Algumas de suas Igrejas celebram mais de 12 missas cada fim de semana. Uma Igreja que afirma que “finalmente a Igreja os leva em conta”. Quando era o tempo bom de Deus se sentiam abandonados pela Igreja. Uma Igreja que vive do “rito”, da “Doutrina” e da “religião” de que gostam e onde se prega o que querem ouvir, uma Igreja que espiritualiza os Evangelhos para não ofender os seus fiéis.
Os Movimentos religiosos a serviço da Igreja de Cristandade: Opus Dei, Legionários de Cristo, Arautos do Evangelho, Comunidades do Sodalício. São os novos exércitos a serviço do Papa, para defender a Igreja da Teologia da Libertação.
Temos uma Igreja do medo: os leigos têm medo dos padres, os padres têm medo dos bispos, os bispos têm medo da cúria romana e a cúria tem medo da Teologia da Libertação.
A Igreja da Cristandade não é uma Igreja que vive no mundo, mas dentro do mundo da Igreja.
Para terminar:
Citação de uma conferência de nosso Mestre José Comblin, em El Salvador, na celebração dos 30 anos de martírio de Mons. Romero.
É um testemunho crítico e cheio de esperança:
“As perguntas de ontem me deram a impressão de que em muitas pessoas há um certo desconcerto em relação à situação atual da Igreja. Ou seja, uma sensação de insegurança. Como dizia Santa Teresa, por ‘não saber nada a respeito, que nada provoque temor’. Quando era jovem eu conheci algo semelhante e, talvez, pior. Era o pontificado de Pio XII. Ele havia condenado todos os teólogos importantes, havia condenado todos os movimentos sociais importantes, por exemplo, a experiência dos padres operários na França, Bélgica e outros países. Aí nós, jovens seminaristas e depois jovens sacerdotes, estávamos mais que desconcertados, perguntando-nos: mas, ainda há futuro? Eu me lembro que naquela época tinha lido uma biografia de um autor austríaco do papa Pio XII. E aí contava algumas palavras que havia escrito o Pe. Liber, jesuíta, professor de História da Igreja na Gregoriana. O Pe. Liber era confessor do Papa. Sabia tudo o que passava na cabeça de Pio XII e então dizia: ‘Hoje a situação da Igreja católica é igual a um castelo medieval, cercado de água, levantaram a ponte e jogaram as chaves na água. Já não há como sair (risos). Ou seja, a Igreja está cortada do mundo, não tem mais nenhuma possibilidade de entrar’. Isso foi dito pelo confessor do Papa, que tinha motivos para saber essas coisas. Depois disso veio João XXIII e aí, todos os que haviam sido perseguidos, de repente são as luzes no Concílio e de repente todas as proibições são levantadas. Aí renasceu a esperança. Digo isto para que não se perturbem. Algo virá. Algo virá que não se sabe o que, mas algo sempre acontece.”

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Continuidade e ruptura os dois rostos do Concílio Vaticano II

Enrico Morini


“Pergunto-me se a tradição, também no interior da Igreja, é um fato unívoco ou se não é acima de tudo uma pluralidade de tradições em sua mais que milenar diacronia. Agora, na minha pessoal, mas convencida hermenêutica do Vaticano II, o Concílio foi ao mesmo tempo, intencionalmente, tanto continuidade como ruptura”, escreve o historiador italiano Enrico Morini, em artigo publicado no sítio Chiesa, 21-06-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Estimado Sandro Magister,
tomo a liberdade de intervir no ajustado debate sobre a hermenêutica do Concílio Vaticano II. Me animei pelo fato de que este debate assumiu recentemente uma conotação ligada à minha cidade e à minha Igreja, enquanto estão envolvidos tanto indiretamente a “Escola de Bolonha” – representada pelo falecido Giuseppe Alberigo e por Alberto Melloni, expoentes da tese chamada da “ruptura” – como diretamente o frei também bolonhês Giovanni Cavalcoli, OP, quem, em sua defesa da tese da “continuidade”, parece desviar-se de uma posição intermediária – que recentemente em Bolonha foi confirmada por dom Agostino Marchetto –, patrocinando uma aliança com os “adversários tradicionalistas continuístas” (como Roberto de Mattei) para enfrentar o “neo-modernismo dos anticontinuístas”.
Não tenho títulos particulares para entrar neste acalorado debate: não sou teólogo, nem tenho veleidades de assumir esse papel. Por vocação, sou antes de tudo um historiador. Admito previamente que, apesar de ser bolonhês – por nascimento, formação, residência e docência – e de ardorosa “fé dossettiana” – dom Giuseppe Dossetti foi meu pai espiritual e meu ponto de referência religioso –, não tenho nenhum vínculo, nem científico nem acadêmico, com a “Escola bolonhesa” de Alberigo.
Dito isto, venho para dar-lhes a conhecer minhas reflexões no tocante à hermenêutica do Concílio. Ruptura ou continuidade? Em relação a que coisa, talvez à tradição católica? Pergunto-me se a tradição, também no interior da Igreja, é um fato unívoco ou se não é acima de tudo uma pluralidade de tradições em sua mais que milenar diacronia. Agora, na minha pessoal, mas convencida hermenêutica do Vaticano II, o Concílio foi ao mesmo tempo, intencionalmente, tanto continuidade como ruptura.
Antes de tudo, isso aparece, me parece, tanto na vontade de seu beato promotor João XXIII como na vontade dos Padres que constituíram a chamada maioria conciliar, na perspectiva da mais absoluta continuidade com a tradição do primeiro milênio, segundo uma periodização não puramente matemática mas essencial, ao ser o primeiro milênio da história da Igreja e da Igreja dos sete Concílios ainda indivisa. A auspiciada atualização finalizou precisamente nesta recuperação, neste retorno a uma época certamente preocupante, mas feliz, porque está nutrida de comunhão recíproca entre as Igrejas. Não estamos propondo, entenda-se bem, a recuperação – como lamentavelmente muitos a entenderam – de uma “ecclesiae primitivae forma”, o que é pura abstração, um mito historiagráfico dos traços gerais extremamente nebulosos e, portanto, inadequados para fundar, ou refundar, uma práxis eclesial e, talvez, precisamente por isto, convertidos em um inconsistente modelo para muitas heresias e, ainda hoje, para diferentes heterodoxias eclesiológicas.
A teoria e a práxis eclesial do primeiro milênio são tudo menos uma abstração e um mito, da forma como estão documentadas pelos escritos dos Padres da Igreja e pelas deliberações dos primeiros Concílios. É muito significativo que o anúncio do Vaticano II tenha sido percebido no começo, em alguns setores – entre os quais figura nada menos que o grande Atenágoras, que também caiu naquilo que foi definido como um “equívoco ecumênico” –, como expressamente concluído na recomposição da unidade entre os cristãos: em suma, um Concílio de união. Ainda mais significativo – também para além do valor altamente simbólico do gesto – é o fato de que o Concílio tenha terminado seus trabalhos, no dia 7 de dezembro de 1965, com o deslocamento epocal “da memória e do meio da Igreja” das recíprocas excomunhões trocadas em 1054 entre o patriarca de Constantinopla e os legados romanos (a extraordinária coragem eclesiológica deste evento foi apresentada magistralmente pelo cardeal Joseph Ratzinger em um artigo na revista Istina, em 1975).
Esta recuperação, por parte da Igreja católica, da tradição do primeiro milênio comportou de fato uma ruptura implícita – peço desculpas pela excessiva esquematização – com a tradição católica do segundo milênio. Não é verdade, me parece, que na tradição da Igreja não haja rupturas. Já houvera um hiato, precisamente na passagem do primeiro para o segundo milênio, com o giro impresso pelos reformadores “loreno-alsacianos” (o que era o caso do papa Leão IX e de dois dos três legados enviados a Constantinopla no fatídico ano 1054, o cardeal Umberto e Stefano de Lorena, futuro Papa), razão pela qual é chamada de reforma “gregoriana”, por uma aproximação eminentemente filosófica às verdades teológicas e pelo interesse desbordante pelo aspecto canônico (já lamentado por Dante Alighieri), em detrimento da Escritura e dos Padres da Igreja, próprios do pleno período medieval. Sem falar, um pouco mais tarde, da Reforma tridentina, com sua “dogmatização” rígida – indo inclusive além dos pressupostos da Igreja medieval – nem do “sequestro” da Escritura aos fiéis simples, até a apoteose da “monarquia” pontifícia no Vaticano I, relegando ainda mais para o fundo o perfil da Igreja indivisa do primeiro milênio. Não será preciso se surpreender: exatamente porque a Igreja é um organismo vivo, sua tradição está sujeita à evolução, mas também à involução.
Que tenha sido verdadeiramente este retorno a intenção mais profunda do Vaticano II pode ser coligido com vários exemplos. O mais imediato se situa no âmbito eclesiológico, onde o ensino do Concílio sobre a colegialidade episcopal é inequívoca. Ora, a colegialidade dos bispos é justamente uma característica própria da eclesiologia do primeiro milênio, também no Ocidente, onde estava perfeitamente conjugada com o primado romano. Um fato revelador: no primeiro milênio todos os pronunciamentos dogmáticos romanos que os legados papais levavam ao Oriente aos Concílios ecumênicos – referidos às questões que neles se debatiam – foram precedidos por um pronunciamento sinodal de todos os bispos pertencentes à jurisdição supra-episcopal de Roma. Pois bem, se é verdade que o maior inimigo do Concílio foi o pós-concílio – com as fugas para frente de alguns pastores de almas e de grupos de fiéis, que em nome do “espírito do Concílio” introduziram algumas práxis subversivas precisamente frente à tradição da Igreja indivisa ou que ao menos estão pedindo com insistência a introdução – me parece poder afirmar que na eclesiologia aconteceu exatamente o contrário: as normas aplicativas foram gravemente reducionistas em relação à resolução conciliar, enquanto o caráter puramente consultivo atribuído ao sínodo dos bispos não extrai as consequências obrigatórias plenas do ensinamento do Vaticano II sobre a colegialidade episcopal. E, além disso – sempre mantendo-nos no âmbito da estrutura da Igreja –, a restauração do diaconato como grau permanente da Ordem Sagrada não foi também uma recuperação da tradição do primeiro milênio?
O segundo âmbito, no qual a continuidade da reforma conciliar com o primeiro milênio é ainda mais evidente – enquanto perceptível por todos – é o litúrgico, mesmo que paradoxalmente se trata de uma amostra privilegiada dos críticos do Vaticano II para acusar o Concílio de ruptura com a tradição. O critério hermenêutico que assumo me permite afirmar exatamente o contrário, sempre sobre a base do postulado de uma pluralidade diacrônica de tradições. Também neste caso houve uma ruptura evidente com a liturgia pré-conciliar – que era notoriamente, com intervenções sucessivas, uma criação tridentina –, mas precisamente com a finalidade de recuperar a grande tradição do primeiro milênio, o da Igreja indivisa. Talvez não tenhamos bem presente que o novo Missal criticado contém a fantástica recuperação de orações extraídas dos mais antigos sacramentários – que remontam precisamente ao primeiro milênio: o Leoniano, o Gelasiano e o Gregoriano, e, para o Advento, do patrimônio eucológico do antigo Rolo de Ravena, tesouros que permaneceram em grande parte fora do Missal tridentino. O mesmo vale para a recuperação, no contexto de uma oportuna pluralidade de orações eucarísticas, da antiga anáfora de Hipólito e de outros fragmentos da tradição hispânica. Neste sentido, o Missal “conciliar” é muito mais “tradicional” do que o anterior.
Escrevo isto, colocando como corolário duas observações, que talvez não serão compartilhadas pelos “progressistas”. A primeira é que, se olharmos o estado atual do rito “ordinário” da Igreja romana, precisamente esta continuidade com a tradição do primeiro milênio, implícita na reforma conciliar, foi parcialmente obscurecida por outros desenvolvimentos no pós-concílio: por um lado, em nível de base, se produziu o mal entendido de que o Concílio promoveu uma desordenada espontaneidade litúrgica e, por outro lado, a autoridade competente procedeu à promulgação de textos criados para a ocasião – referidos a novas anáforas e a novas orações de coleta –, visivelmente alheias, por sua linguagem infelizmente atualizadora e modernamente existencial, ao estilo eucológico do primeiro milênio, profundamente inspirado no pensamento e na terminologia dos Padres da Igreja.
A segunda observação é que o motu próprio “Summorum Pontificum” – que, como se sabe, autoriza a prática do Missal tridentino como rito “extraordinário” – documento considerado por muitos como uma regressão em relação ao Concílio, para mim, pelo contrário, tem o valor indubitável de restabelecer na Igreja latina esse pluralismo litúrgico próprio, uma vez mais, do primeiro milênio. Mesmo que se trata de uma pluralidade ritual marcada pelas variações dos tempos, não pelo do espaço geográfico, essa pluralidade tem o valor de introduzir também na Igreja Católica – de forma pacífica e indolor – essa presença “vetero-ritualista”, que é um patrimônio, embora também adquirido de forma violenta e traumática, da tradição ortodoxa.
Mas me sinto em condições de compartilhar com a “Escolha bolonhesa” a possibilidade, ou antes a oportunidade, de uma leitura “adicionadora” do Concílio, coerente com seus princípios inspiradores (a expressão é de Alberto Melloni), que permite, ou antes sugere, ao supremo magistério assumir hoje decisões que o Vaticano II, no clima histórico do momento, não pôde levar em consideração. Este princípio inspirador – que considero ser a hermenêutica correta do Concílio – é precisamente a recuperação da tradição do primeiro milênio, como implicitamente destacou o cardeal Ratzinger quando escreveu – em uma passagem que o atual pontífice nunca contradisse explicitamente – que na fisionomia de uma Igreja finalmente reunificada não é necessário impor aos ortodoxos nada mais que aquilo que eles creram no primeiro milênio de comunhão.
Por isso, não está de maneira alguma no “espírito do Concílio” introduzir na Igreja inovações desconsideradas, na doutrina e na práxis teológica, como seriam o sacerdócio feminino ou os aberrantes desenvolvimentos na ética e na bioética. Mas estaria perfeitamente no “espírito do Concílio” – sempre para exemplificar – eliminar do “Credo” o acréscimo unilateral, injustificado e ofensivo do “Filioque” (sem que isto implique uma negação da tradicional doutrina dos Padres latinos – também eles do primeiro milênio – relativa ao fato de que o Espírito Santo também procede do Filho, como de um único princípio com o Pai). Este acréscimo representa infelizmente o fruto mais evidente, pelo fortíssimo significado simbólico, desse processo de franco-germanização teológica e cultural da Igreja romana – iniciado pelos Papas de língua francesa do final do primeiro milênio e pelos Papas alemães do começo do segundo milênio – denunciado em termos certamente exasperantes, mas não inteiramente infundados, pelo falecido teólogo grego conservador Ioannis Romanidis. E, portanto, não subsiste apenas este acréscimo, mas ele foi retomado também em textos de composição “pós-conciliar” e, também – sei bem disso –, é ainda hoje vergonhosamente imposta a uma bela e florescente Igreja oriental unida a Roma, ou seja, à Igreja greco-católica ucraniana.
Em síntese, para concluir com uma fórmula sintética estas minhas considerações pessoais: ao promover a renovação da Igreja o Concílio não tentou introduzir algo novo – como respectivamente desejam e temem progressistas e conservadores –, mas retornar àquilo que se havia perdido.
Enrico Morini
Bolonha, 13 de junho de 2011.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=44599
Para ler mais:
• ''Bento XVI dinamitou todas as pontes com a modernidade''
• Os frutos do Concílio
• Um Vaticano II sem rótulos
• Recepção do Vaticano II em discussão
• Duas missas para uma única Igreja
• Os grandes desiludidos com Bento XVI
• Os desiludidos falaram. O Vaticano responde
• Abril, o mês cruel da Igreja para as relações com os tradicionalistas
• As duas grandes rupturas depois do Concílio Vaticano II, segundo papa Ratzinger
• O Papa e a interpretação do Concílio. Artigo de Joseph A. Komonchak
• Igreja mergulha em longo processo neoconservador. Entrevista especial com João Batista Libânio
• Alvorecer ou declínio do Concílio?
• O Concílio: doutrina e interpretações
• Para onde vai a Igreja, hoje? Revista IHU On-Line nº 320
• ''Um outro concílio? Só se for em Manila ou no Rio, não em Roma'' Entrevista especial com John W. O'Malley
• Impacto do Concílio Vaticano II e da Teologia Latino-Americana na América Central
• Dez motivos para lembrar o Concílio Vaticano II O retrocesso contra o Concílio Vaticano II

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O Vaticano II 50 anos depois

José Comblin
(+ 27-03-2011)


O Concílio Vaticano II permanecerá na história como uma tentativa de reformar a Igreja no final de uma época história de 15 séculos. Seu único defeito foi que chegou demasiado tarde. Três anos após sua conclusão, tinha início a maior revolução cultural do Ocidente.
A análise é do teólogo José Comblin, falecido em março deste ano, em artigo publicado na revista Adista Documenti, nº. 68, 24-09-2011. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.

O Vaticano II, 50 anos depois
1. Antes do Concílio
A maioria dos bispos que chegou ao Concílio Vaticano II não entendia porque tinha sido convocada. Os bispos, como os funcionários da Cúria, pensavam que o papa sozinho pudesse decidir tudo e que não fosse necessário convocar um Concílio. Mas, havia uma minoria profundamente consciente dos problemas existentes no povo católico, sobretudo nos países intelectual e pastoralmente mais desenvolvidos, onde se havia vivenciado episódios dramáticos de contraposição entre as preocupações dos sacerdotes mais abertos ao mundo contemporâneo e a administração vaticana. Todos aqueles que procuravam uma presença da Igreja no mundo contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento das ciências, da tecnologia e da nova economia, como também pelo espírito democrático, eram reprimidos. Havia, no entanto, uma elite de bispos e cardeais cônscios das reformas necessárias e decididos a acolher a ocasião oferecida por João XXIII.
As comissões preparatórias eram claramente conservadoras e é por isso que, na abertura do Concílio, as perspectivas dos teólogos e dos peritos trazidos pelos bispos mais conscientes eram antes pessimistas. Mas, houve o discurso de abertura de João XXIII, que rompia decididamente com a tradição dos papas anteriores. João XXIII anunciou que o Concílio não se reunira para pronunciar novas condenações de heresias, como de costume. Tratava-se de apresentar ao mundo outra imagem de Igreja que a tornasse mais compreensível aos contemporâneos. A maior parte dos bispos não compreendeu nada e pensou que o papa não tivesse dito nada, porque não havia mencionado nenhuma heresia. Para o papa não se tratava de aumentar o número dos dogmas, mas de falar a mundo moderno numa linguagem que este pudesse compreender. Uma minoria iluminada entendeu a mensagem e sentiu ter obtido o apoio do papa na luta contra a Cúria.
Mas, a Cúria romana tinha uma estratégia. Existia um modo de anular o Concílio. As comissões preparatórias haviam preparado documentos sobre todas as questões anunciadas: Todos estes documentos eram conservadores e não permitiam nenhuma mudança real na pastoral. Teriam sido consignados às comissões conciliares que os teriam aprovado e o Concílio teria terminado em poucas semanas com documentos inofensivos que não teriam modificado nada. O importante eram traçar listas de comissões com bispos conservadores e explicar ao Concílio que a coisa mais prática era aceitar as listas já preparadas pela Cúria.
O primeiro a descobrir tal estratégia foi dom Manuel Larrain, bispo de Talca, no Chile, e presidente da Celam. Junto com dom Helder Câmara – eram amigos íntimos, habituados a trabalhar juntos – foram avisar os líderes do episcopado reformador. (...) Tratava-se de rejeitar as listas preparadas pela Cúria e solicitar que as comissões fossem eleitas pelo próprio Concílio. O cardeal Döpfner de Munique, Liénart de Lille, Sünens de Malinas, Montini de Milão e alguns outros tomaram a palavra e solicitaram que fosse o próprio Concílio que nomeasse os membros das comissões, proposta que foi aprovada por aclamação.
A conclusão foi que as novas comissões rejeitaram todos os documentos elaborados pelas comissões preparatórias: uma afirmação do episcopado referente à Cúria romana. O papa ficou satisfeito. (...).
A maioria conciliar que o grupo líder conseguiu garantir não queria uma ruptura e por isso sempre deu importância à minoria conservadora, embora pequena, que representava os interesses da Cúria e se identificava com ela. Portanto, muitos textos resultaram ambíguos, porque a um parágrafo reformista seguia um conservador que dizia o contrário. De um lado se anunciavam novos temas e do outro se dava espaço àqueles velhos da tradição dos papas Pio. Tal ambiguidade prejudicou muito a aplicação do Concílio.
A minoria conciliar e a Cúria não se converteram. Ainda hoje se opõem ao Vaticano II, encontrando argumentos nos próprios textos conciliares conservadores. Quando João Paulo II citava os textos do Vaticano II, eram aqueles mais conservadores, como se os outros não existissem. Por exemplo, na Constituição Lúmen Gentium, é claro que o acento é posto sobre o papel dado ao povo de Deus. Todavia, quando se trata da hierarquia, o povo de Deus desaparece e tudo continua como sempre. Em 1985, por solicitação do cardeal Ratzinger, o termo povo de Deus foi eliminado do vocabulário do Vaticano. Desde então, nenhum documento romano faz referência ao povo de Deus, que era o tema central da Constituição conciliar. (...)
Tal situação teve muita importância na evolução subsequente do Vaticano II na Igreja. Desde o início, houve um partido ao qual sempre se deu importância e poder e que lutou contra todas as novidades. Nas eleições pontifícias que, como sempre, são manipuladas por alguns grupos, o problema do Vaticano II tem sido decisivo e tem sido eleitos papas dos quais se conheciam as reservas sobre os documentos conciliares em tudo o que tinham de novo. O atual papa ainda pode viver dez anos e mais. Depois dele podemos prever que seja novamente eleito um papa pouco empenhado com o Concílio, para usar um eufemismo, porque os grupos que sustentam esta posição são muito fortes na Cúria e no colégio dos cardeais, e não há sinais que as futuras nomeações possam produzir uma mudança de direção. As últimas nomeações na Cúria são eloquentes.
2. De 1965 a 1968
A história da recepção do Vaticano II foi determinada por um acontecimento totalmente imprevisto. 1968 é a data símbolo da maior revolução cultural na história do Ocidente, mais do que a revolução francesa ou a russa, porque atinge a totalidade dos valores da vida e todas as estruturas sociais. A partir de 1968 houve muito mais do que um protesto estudantil. Houve o início de um novo sistema de valores e de uma nova interpretação da vida humana.
O Vaticano II respondera às interrogações e aos desafios da sociedade ocidental em 1962. (...). A sociedade européia destruída pela guerra tinha sido reconstruída e a Igreja ocupava um lugar relevante na sociedade. (...). Na realidade, perdera contato com a classe operária, mas esta já estava se reduzindo numericamente por via da evolução da economia para os serviços. O número dos católicos praticantes estava diminuindo, mas não de modo a chamar a atenção. (...). Os problemas eram estruturais e não tocavam os dogmas nem a moral tradicional.
Em 1968 entrava improvisamente em andamento uma revolução total que abraçava todos os dogmas e toda a moral tradicional, bem como todas as estruturas institucionais da Igreja e de toda a sociedade. (...). O Vaticano II respondera aos problemas de 1962, mas nada tinha a responder aos desafios de 1968. Em 1968 teria sido um Concílio conservador apavorado pelas radicais transformações culturais que tinham início.
(...). 1968 significa uma mudança de toda a política, da educação, dos valores morais, da organização da vida e da economia. (...).
a) 1968 significou uma crítica radical perante todas as instituições estáveis e de todos os sistemas de autoridade. Era a contestação global de toda a sociedade organizada tradicional. (...). A Igreja católica era o modelo típico de um sistema institucional radicalmente autoritário. Por isso, foi imediata e vigorosamente atacada e denunciada. As mudanças conciliares, tão tímidas, não podiam convencer a nova geração. O Vaticano II era totalmente inofensivo se confrontado com a revolução cultural iniciada em 1968.
b) Em 1968 teve início uma luta contra todos os sistemas de pensamento, as assim ditas “grandes narrações”. (...) Não se aceita nenhum sistema que tenha a pretensão de ser “a verdade”. E isso investe contra os dogmas e o código moral da Igreja católica, e toda a sua pretensão de “magistério”. O Vaticano II não podia sequer imaginar tal situação. Não houvera nenhuma crítica de nenhum dogma e jamais fora posto em discussão seu inteiro sistema de pensamento. Ora, a nova geração contestava todo o sistema doutrinal da Igreja católica, porque tal sistema não permitia o livre exercício do pensamento. (...).
c) Simultaneamente, ocorreu a explosão da revolução feminista. A descoberta da pílula que permitia evitar a fecundação e, portanto, facilitava a limitação da natalidade provocou um entusiasmo universal entre as mulheres. (...) Os episcopados dos países socialmente desenvolvidos e os teólogos consultados pelo papa entendiam que não houvesse nada na moral cristã que pudesse condenar o uso da pílula. Mas, o papa se deixou impressionar pelo setor mais conservador, embora minoritário, e publicou a encíclica Humanae vitae. Foi como uma bomba. Houve imensa revolta entre as mulheres católicas, as quais não aplicaram a proibição papal e aprenderam a desobedecer. (...). Muitos bispos ficaram abalados, mas não podiam fazer nada porque o Concílio absolutamente não havia tocado a questão do exercício do primado do papa. O papa decide por si, também contra todos. Era este o caso: o papa havia decidido contra os bispos, os teólogos, o clero, os leigos informados. Desafortunadamente, isso foi obra de Paulo VI que, pelos muitos méritos havidos na história do Concílio, aparecia como homem de abertura. (...). Para muitos, a Humanae vitae era como um desmentido do Vaticano II: nada mudara!
d) Até então, o consumo tinha sido orientado pelos costumes. Havia um consumo moderado e limitado. O consumo dependia da regularidade da vida: refeições regulares e tradicionais, festas tradicionais com despesas tradicionais, segundo um ritmo de vida no qual o trabalho ocupava o lugar central. A partir dos anos 60, o trabalho deixa de ser o centro da vida. A partir de então, no centro está a procura do dinheiro para poder pagar as férias, os fins de semana, as festas que se multiplicam indefinidamente e o consumo festivo. O trabalho é o que permite o consumo. (...). As próprias estruturas sociais estimulam o consumo e todos os que não podem consumir se sentem rejeitados pela sociedade. (...)
e) (...) Uma nova moral avalia as pessoas com base no dinheiro acumulado e na ostentação de riqueza. A partir disso, os donos do capital fazem o que querem e como querem. Até a queda do comunismo na URSS, o magistério estava empenhado contra isso e dava pouca atenção ao crescimento rápido de uma nova forma de capitalismo. (...). Na prática, a Igreja se esquece da Gaudium et Spes e aceita a evolução incontrolada do capitalismo. A doutrina social da Igreja perde todo o significado profético porque não se aplica em nada a casos concretos. Na prática o magistério aceita o novo capitalismo. (...).
3. A reação da Igreja foi aquela que se podia temer
Os papas e muitos bispos aceitaram o argumento dos conservadores de que os problemas da Igreja derivavam do Vaticano II. Vários teólogos que haviam defendido e promovido os documentos conciliares mudaram de idéia e adotaram a tese dos conservadores, como o próprio papa atual. Diziam que o Concílio fora “mal interpretado”. Por isso, João Paulo II convocou um sínodo extraordinário em 1985, por ocasião dos 20 anos da conclusão do Concílio, para lutar contra as falsas interpretações e dar uma interpretação correta. Na prática, a nova interpretação, a “correta”, consistia em suprimir tudo aquilo que de novo havia nos documentos do Vaticano II. Um sinal fortemente simbólico foi a condenação da expressão “povo de Deus”. (...). Praticamente, aconteceu como após a Revolução francesa: fechar as portas e as janelas para cortar a comunicação com o mundo exterior e reforçar a disciplina para evitar fugas. Mas, em vão. O problema é que a Igreja já não tem mais uma imensa reserva de camponeses pobres. Na América Latina os pobres vão com os evangélicos.
Desde então, na linguagem oficial se faz referência ao Concílio, mas sua mensagem é ignorada. O Concílio permanece na memória e nos princípios das minorias sensíveis à evolução do mundo, que extrai dele argumentos para solicitar mudanças e respostas aos desafios do mundo atual. Os jovens, incluindo os novos sacerdotes, não sabem o que foi o Concílio, que não reveste para eles nenhum interesse. Estão mais interessados no catolicismo anterior ao Vaticano II, com suas seguranças, sua beleza litúrgica e a justificação de um autoritarismo clerical que os protege dos problemas.
A reação da Igreja tem sido aquele do retorno à disciplina precedente, cujo símbolo é dado pelo novo Código de direito canônico (...). O novo Código fecha as portas a todas as mudanças que poderiam inspirar-se no Vaticano II. Torna o Vaticano II historicamente inoperante.
No mundo, a prioridade dada à luta contra o comunismo – um comunismo já em plena decadência – induziu a Igreja a aceitar silenciosamente (os silêncios da Doutrina social da Igreja, dizia padre Calvez) o capitalismo desenfreado que emergiu nos anos 70. Na América Latina o Vaticano apoiou as ditaduras militares e condenou todos os movimentos de transformação social em nome da luta contra o comunismo. Desde a época do governo de Reagan, a aliança com os Estados Unidos permaneceu firme até a guerra contra o Iraque, que abriu por um momento os olhos do papa. De tal modo, a Igreja se aliava com os poderosos do mundo e se condenava a ignorar o mundo dos pobres em sua pastoral real.
Na América Latina a reação a Igreja à revolução cultural ocorrida no mundo desenvolvido foi muito dolorosa. Destruiu algo de novo que estava nascendo. Na América Latina, o Vaticano II significou uma mudança real. (...). O Celam, com a aprovação de Paulo VI, convocou a Assembléia de Medellín, a qual mudou a orientação da Igreja para que tirasse do Concílio conclusões práticas. Decidiu optar pelos pobres e empenhar-se por uma mudança social radical, legitimou as comunidades eclesiais de base e a formação dos leigos com base na Bíblia e na ação política. (...). Em várias regiões, Medellín não foi aceita nem aplicada. Mas, houve regiões importantes nas quais Medellín modificou a Igreja e se tornou a aplicação real do Vaticano II.
Tudo isso foi sistematicamente atacado em Roma com argumentos oferecidos por setores reacionários da América Latina. Desde 1972, a campanha contra a Conferência de Medellín foi dirigida por Alfonso López Trujillo. Malgrado isso, em Puebla, em 1979, Medellín se salvou. Mas, sob o pontificado de João Paulo II a pressão cresceu. Os argumentos romanos, as nomeações episcopais, a repressão contra os bispos mais empenhado0s na linha de Medellín tiveram efeito. A condenação da teologia da libertação em 1984 acabaria dando o golpe final. A carta do papa à Conferência episcopal brasileira do ano subsequente limitou um pouco o alcance da condenação, mas a teologia da libertação ainda representa hoje algo de suspeito.
4. O que resta do Vaticano II
Hoje, as reformas realizadas pelo Vaticano II nos parecem muito tímidas, totalmente inadequadas e insuficientes. Será preciso andar muito além, porque o mundo mudou mais nos últimos 50 anos do que nos 2.000 anos precedentes. Do Vaticano II devem permanecer, como base para as reformas futuras:
• O retorno à Bíblia como referência permanente da vida eclesial acima de todas as elaborações doutrinas ulteriores, dos dogmas e da teologia.
• A afirmação do povo de Deus como participante ativo na vida da Igreja, tanto no testemunho da fé como na organização da comunidade, com total definição jurídica dos direitos e dos instrumentos necessários no caso de opressão da parte da autoridade.
• A afirmação da Igreja dos pobres.
• A afirmação da Igreja como serviço ao mundo, fora de toda busca de poder.
• A afirmação de um ecumenismo de participação mais íntima entre as Igrejas cristãs.
• A afirmação do encontro entre todas as religiões e pensamentos não religiosos.
• Uma reforma litúrgica que use símbolos e palavras compreensíveis pelos homens e pelas mulheres contemporâneas. (...).
5. As condições da humanidade atual em estado de radical transformação.
a). Como entender a fé? A partir da modernidade, muitos cristãos perderam a fé ou pensaram tê-la perdido porque têm uma idéia errônea da fé. (...).
O objeto da fé é Jesus Cristo, a vida de Jesus Cristo. É dar a própria adesão a esta vida e adotá-la como norma, porque tem um valor absoluto, porque esta vida é a verdade, porque é assim que devemos ser homem ou mulher. Não é uma evidência que não permita dúvidas. É uma percepção de verdade que jamais suprime uma franja de dúvida, porque é sempre um ato voluntário e porque esta verdade não se vê. O crente não se sente obrigado a crer. É um ato de dom da própria vida, a escolha de um caminho. Não há evidência do fato de que Jesus vive e está conosco, porém sente-se sua presença como um apelo repetido, malgrado todas as dúvidas. (...).
Hoje o papa condena como relativismo fenômenos próprios do ser humano, que hoje não pode mais entender o modo tradicional de conhecer os objetos da religião. Estes não fazem parte de sua experiência de vida. (...). Tal condição do ser humano de hoje pressupõe uma profunda revisão da teologia da fé, a qual já está ocorrendo, mas não se divulga, com a conseqüência que milhões de adolescentes perdem sempre mais a fé, por não lhes ser explicado o que ela é.
b) A religião. Os nossos contemporâneos abandonam os atos litúrgicos oficiais da Igreja porque os consideram enfadonhos. A missa habitual é enfadonha, salvo em algumas circunstâncias especiais nas quais comparecem milhares de pessoas. (...) Quando a liturgia era um latim, era melhor porque não se entendia. Uma vez que se compreende, se capta seu estilo insuportável. É usada uma linguagem pomposa, formal, do tipo “humildemente pedimos”: ninguém fala assim. “Unimos as nossas vozes às dos anjos”: fórmula convencional que não responde a nada na vida. Há centenas de fórmulas semelhantes. (...).
c) A moral. Nossos contemporâneos não aceitam códigos morais, o fato que se lhes imponham ou se proíbam condutas porque estão no código. Eles querem entender o valor dos preceitos ou das proibições. Ou seja, estão descobrindo a consciência moral que permite captar o valor dos atos. (...). Antes a base da moral cristã era a obediência à autoridade. Era preciso fazê-lo ou não fazê-lo, porque a Igreja o ordenava ou proibia. Por isso tantas vezes os leigos perguntavam: isto se pode fazer? Se o sacerdote dizia que sim, o problema moral estava resolvido. Pois bem, isso pertence ao passado.
d) A comunidade. O cristianismo é comunitário. Mas, as formas tradicionais de comunidade tendem a debilitar-se. A própria família perdeu muito de sua importância porque os seus membros se encontram mais raramente. A paróquia atual perdeu o sentido de comunidade. Mas, estão aparecendo muitas novas formas de pequenas comunidades baseadas na livre escolha. Tais comunidades terão a capacidade de celebrar a eucaristia, o que pressupõe uma pessoa adaptada a presidi-la em cada grupo de umas cinqüenta pessoas. Não existe nenhuma dificuldade doutrinal para isso, porque nos primeiros séculos a situação era esta e não havia problemas. Isso é fundamental, porque uma comunidade que não se reúne na eucaristia não é realmente uma comunidade cristã. Os sacerdotes de tempo integral estarão em torno ao bispo de cada cidade importante para evangelizar todos os setores da sociedade urbana.
É claro que não sabemos quando e como se chegará a isso. É pouco provável que um Concílio que reúna unicamente bispos possa encontrar as respostas aos desafios da época. As respostas não virão da hierarquia, nem do clero, mas dos leigos que vivem o evangelho em meio a um mundo que compreendem. Por isso, devemos estimular a formação de grupos de leigos empenhados ao mesmo tempo com o evangelho e com a sociedade humana na qual atuam.
O Vaticano II permanecerá na história como uma tentativa de reformar a Igreja no final de uma época história de 15 séculos. Seu único defeito foi que chegou demasiado tarde. Três anos após sua conclusão, tinha início a maior revolução cultural do Ocidente. Os seus detratores o acusaram de todos os problemas que emergiram desta revolução cultural, e, com isso, o mataram. Mas, o Vaticano II permanece como um sinal profético. Em meio a uma Igreja prisioneira de um passado que não sabe superar, representa uma voz profética. Não conseguiu reformar a Igreja como teria desejado, mas foi um convite a olhar em frente. Ainda há potentes movimentos que pregam o retorno ao passado. Devemos protestar. Quando pessoas que nada entendem da evolução do mundo contemporâneo querem refugiar-se num passado sem abertura ao futuro, devemos denunciar. Para nós, o Vaticano II é Medellín. Também quiseram matar Medellín. Mas, Medellín permanece como a luz que nos mostra o caminho.
Uma última reflexão: O futuro da Igreja católica está nascendo na Ásia e na África. Será muito diverso. Aos jovens será preciso dizer: aprendei o chinês!
Para ler mais:
• Comblin: pedagogo, profeta e santo. Entrevista especial com D. Sebastião Soares e D. Luiz Cappio
• Os pobres e a libertação. Artigo inédito de José Comblin
• Obrigado, Padre José Comblin
• Comblin. Um ''Jacques Ellul católico''
• Impacto do Concílio Vaticano II e da Teologia Latino-Americana na América Central
• Vaticano II e Zizola: uma resposta à convocação papal ao jornalismo
• Congresso Continental de Teologia: novas perguntas para alimentar a esperança. Entrevista especial com María del Socorro Martínez, Pablo Bonavía e Roberto Urbina
• Vaticano II: uma mina ainda por explorar. Entrevista com Kurt Koch
• A liberdade cristã: um dos núcleos da teologia de José Comblin
• Comblin e a reinvenção da igreja
• O método do mestre José Comblin

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

40 Anos da Teologia da Libertação

09.11.11

Benjamín Forcano
Sacerdote e teólogo da Igreja Católica Romana
Adital
Tradução: ADITAL


Há 40 anos começava uma nova maneira de fazer teologia, que tem influído notavelmente na sociedade e na Igreja. Aos 40 anos, uns a dão com acabada; outros, a felicitam pela tarefa desenvolvida e pelos desafios que apresenta com vistas ao futuro.
Porém, a Teologia da Libertação (TdL) não começou nos anos 70. Em 1492 acontece o chamado ‘descobrimento' da América Latina; e, em 1511, um frei dominicano, Antonio de Montesinos, em nome de sua comunidade e ante as autoridades da Isla La Española (hoje República Dominicana), disse, com referência aos indígenas e ao tratamento que estes recebiam: "Por acaso, não são homens?”. Foi a primeira pergunta de uma história de libertação, como muito bem explicou o professor Reyes Mate, em conferência sobre esse tema. Podemos, então, dizer que a história da TdL começou há 500 anos, em 11 de dezembro de 1511.
Sem dúvida, não faltaram cristãos que desde sempre e a partir da experiência de sua fé, viam a teologia subordinada a uns ditames colonizadores opressivos. Porém, sua experiência não era formulada em novas categorias teológicas e tampouco se tornou pública na sociedade.
A partir dos anos 60, grandes expectativas de mudança vão se gerando no mundo; porém, os cristãos pareciam carecer de criatividade e não incidir nessa mudança com alternativas próprias de transformação.
É por essa época que Gustavo Gutiérrez lança uma contribuição teológica nova a partir do contexto latino-americano: "Como apresentar Deus num mundo bipolar formado por ricos e pobres, onde, por lógica, sua relação é de injustiça e de exclusão; e como a fé é capaz de provocar mudanças radicais? Essas mudanças exigem que os pobres, os excluídos, os discriminados deixem de sê-lo, o que não é possível sem a transformação do sistema.
Se os cristãos temos como base e medida o Evangelho, encontramos nele uma declaração, que soa como um Manifesto, na parábola do Bom Samaritano. Nela se fazem presentes todos os esquemas de vãs teologias e se marca o estilo a seguir. Pergunta Jesus: "Qual dos três personagens te parece que foi o próximo do homem que havia sido vítima dos salteadores?”.
- "O que teve compaixão dele”.
- "Perfeito; vai e faz o mesmo”. (Lc 10, 30-37).
Sentir compaixão e atuar em consequência é prévio para quem quer fazer TdL. Antes do que uma reflexão fria e abstrata, a TdL é uma vivência, uma prática de amor dentro da qual brota naturalmente uma maneira nova de fazer teologia.
Obviamente, a TdL não acaba em si mesma; não se detém em dar explicações sobre o que acontece; mas, avança para realizar práticas de mudança e libertação. Explicar a realidade contraditória existente e deixá-la como está não é teologia libertadora. A realidade, injustamente interpretada e configurada, necessita ser mudada para ser conformada com o projeto de Deus, que Jesus chamava reino de Deus e que se constrói na base da igualdade, da justiça, da fraternidade e da liberdade.
Viver a libertação em mudanças e práticas libertadoras é um imperativo para o cristão que quer ser fiel ao Deus libertador.
Para a mudança da realidade, os cristãos têm que contar com uma análise dessa realidade tecida em torno ao binômio riqueza-pobreza, Norte-Sul, e que demonstrará que essa situação não é fruto da casualidade, nem da vontade dos deuses; mas do egoísmo e da cobiça dos homens; do domínio que os mais fortes estabelecem sobre os mais débeis e necessitados.
Essa análise é necessária para descobrir as causas reais da opressão e seus sujeitos responsáveis e evitar o idealismo. O marxismo, não como filosofia ou visão global da realidade, mas como ciência, pode ajudar muito ao conhecimento dessas causas e de suas funestas consequências. Vale enquanto sua análise se mostre verídica em assinalar a gênese e os efeitos do capitalismo. Nunca os teólogos da libertação assumiram o marxismo como visão filosófica da realidade nem o utilizaram acriticamente.
Precisamente porque a TdL aponta à mudança da opressão e da injustiça, tem sido, caluniosamente, atacada. Essa teologia reclama para a Igreja inteira o lugar próprio que lhe destina sua fé desde o seguimento de Jesus: ser pobre; viver com os pobres e comprometer-se com sua libertação.
Essa recolocação da Igreja é perigosa para os opressores e para uma Igreja-Poder, acostumada a viver em aliança com os poderosos. Nada acontece nessa teologia que não traduza com fidelidade a mensagem radical de Jesus e seu Evangelho. Porém, os "questionados” pela TdL e seu domínio e "meios gigantescos” se encarregaram de divulgar que a TdL era heterodoxa por sua marxistização; por sua separação do magistério eclesiástico; por seu fomento da guerrilha; por seu conceito meramente temporal da salvação; pela redução do Jesus histórico a um líder terreno...
Posteriormente, não poucos vinham associando a sorte da TdL ao socialismo real. A queda deste, fez-lhe acreditar que a TdL também cairia. Duplo engano: porque o socialismo não se identificava com o socialismo de Estado e a TdL não era sua subordinada; mas tinha origem e base próprias no Evangelho. Como muito bem disse o bispo Pedro Casaldáliga: "A TdL não tem a Marx como padrinho, mas a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”.
A queda do socialismo real não canonizava a maldade intrínseca do capitalismo, mas incitava a aprofundar nas causas de sua opressão, hoje globalizada. Como sempre, as estruturas econômicas contam na marcha da sociedade e, sem elas, não se pode entender o funcionamento do sistema neoliberal. Porém, não são determinantes, nem empanam a influência de outros fatores da sociedade; o primeiro de todos: o protagonismo dos cidadãos.
A consciência atual pode reverter a visão eurocêntrica dominadora que, há mais de 400 anos, governa o planeta Terra. Diante da Terra, o homem não é dono e depredador, nem pode continuar explorando-a ilimitada e insolidariamente.
Hoje, a TdL atua nas frentes mais necessitadas de libertação: mulher-homem; religiões enfrentadas; indígenas acossados; povos secularmente submetidos...
O novo paradigma da TdL vai além de todas as subordinações do mundo moderno, plasmadas na sociedade e no sistema capitalistas. A sociedade atual, com o protagonismo dos cidadãos –tal como aparece no movimento M-15, dos indignados- está marcando um novo giro frente à relação de domínio, estabelecida por séculos.
É um fato que a TdL não parece contar, como em anos anteriores, com pensadores eminentes. Seguramente porque sua seiva viva e transformadora tem circulado por baixo, mais horizontalmente, permeando e impulsionando diretamente o pensamento e a ação dos "sem voz”.