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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pobreza urbana: uma decisão política. Entrevista com Ana Tereza Coutinho Penteado

10.01.13 - Brasil IHU - Unisinos Instituto Humanitas Unisinos Adital Quinta, 10 de janeiro de 2013 "As grandes metrópoles, por terem uma concentração de mão de obra, serviços especializados, infraestrutura urbana como aeroportos e rodovias, entre outros, têm sido tratadas como um grande negócio. Os megaeventos são um bom exemplo disso”, afirma a especialista. A pobreza urbana não é uma "situação econômica, decorrente de poucos recursos financeiros, mas de escolhas políticas que fazem das pessoas pobres cada vez mais pobres, pela dificuldade de terem acesso aos bens e serviços que deveriam ser assegurados para todos os habitantes da cidade”. A constatação é da assistente social Ana Tereza Coutinho Penteado, que acompanha o desenvolvimento de metrópoles urbanas a exemplo de Campinas, em São Paulo. Ao avaliar a urbanização das cidades, ela enfatiza que os "recursos são dirigidos para os investimentos econômicos e não sociais, há o estímulo à especulação e consequentemente a periferização da população mais pobre, que vai sendo cada vez mais empurrada para locais distantes da cidade, que contam com nenhuma ou pouca infraestrutura urbana”. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, ela aponta que "a chegada dos megaeventos” tem atualizado os "mecanismos de repressão das pessoas pobres e pessoas em situação de rua”. Diante desse contexto, destaca-se a preocupação com as políticas sociais, que ficam submetidas às operações urbanas. Apesar dos conflitos entre as políticas sociais e urbanas, Ana Tereza assinala que a "política de assistência social tem avançado no país. No entanto, é preciso superar o ranço assistencialista e repressor, principalmente quando as unidades, as ações e os serviços assistenciais são implementados nos municípios e estados. A política de assistência social não pode ficar submetida aos interesses econômicos, nem ser utilizada para adequar ou controlar as pessoas atendidas”. Ana Tereza Coutinho Penteado é graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, especialista em Serviço Social pela Universidade de Brasília – UnB, e mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Confira a entrevista. IHU On-Line – Como caracteriza o processo de urbanização na cidade de Campinas? Ana Tereza Coutinho Penteado – Campinas, seguindo a tendência das demais cidades brasileiras, tem passado por um processo de urbanização, denominada por Milton Santos(2009b) de "urbanização corporativa", que longe de pensar a cidade para todos os seus habitantes, gera diversos problemas sociais. Neste tipo de urbanização os recursos são dirigidos para os investimentos econômicos e não sociais, há o estímulo à especulação e consequentemente a periferização da população mais pobre, que vai sendo cada vez mais empurrada para locais distantes da cidade, que contam com nenhuma ou pouca infraestrutura urbana. Verificamos que o tratamento dispensado pela sociedade e pelo Estado à população pobre tem importância para o desenvolvimento deste tipo de urbanização, pois historicamente os mecanismos de assistencialismo e repressão controlam e contêm a população pobre. No caso de crianças e adolescentes em situação de rua, as grandes instituições que durante muitos anos "cuidaram” dos chamados "menores abandonados” também tinham a função de conter, e funcionaram longe dos espaços urbanos que recebiam investimentos para a revalorização urbana voltada a uma minoria. Verificamos que este processo está presente em diversas cidades brasileiras e, igualmente, em Campinas. IHU On-Line – Essa tem sido uma tendência nas metrópoles brasileiras? Ana Tereza Coutinho Penteado – Sim. Tem ocorrido em cidades brasileiras e, na medida em que ocorre a expulsão ou a contenção dos pobres nos locais mais distantes das áreas centrais – consideradas ativas economicamente (pois contam com maior fluidez, com infraestruturas e serviços diversos) –, essas pessoas também se distanciam do acesso aos serviços públicos e direitos sociais, passando a ter maiores dificuldades para a mobilidade urbana. Enfim, enfrentam inúmeros problemas que são considerados por muitos estudiosos como característicos da exclusão social. Essa situação tem sido enfrentada pelas políticas sociais que tentam assegurar os direitos a todos. No entanto, é sabido que somente as políticas sociais não têm condições de enfrentar a infinidade dos problemas existentes, enquanto o processo de urbanização das cidades continuar a gerar mais pobreza e desigualdades socioespaciais. A pobreza urbana, como afirma Milton Santos (2009a), não é uma situação econômica decorrente de poucos recursos financeiros, mas de escolhas políticas que fazem das pessoas pobres cada vez mais pobres, pela dificuldade de terem acesso aos bens e serviços que deveriam ser assegurados para todos os habitantes da cidade. IHU On-Line – Sua pesquisa aponta que há um choque entre as políticas sociais e urbanas em Campinas. Em que sentido? Ana Tereza Coutinho Penteado – Os direitos sociais estão expressos na Constituição da República, de 1988, e foram regulamentados por diversas normatizações no decorrer dos últimos anos. As políticas sociais vêm sendo regulamentadas e ampliadas e têm buscado garantir os direitos à população que historicamente não teve acesso aos bens e direitos que deveriam ser para todos. No entanto, sua implementação nas cidades brasileiras é feita de modo distinto conforme os direcionamentos municipais, e vimos que muitas vezes elas acabam ficando submetidas às ações de revalorização urbana, comandadas pelos gestores municipais, que querem, por exemplo, diminuir o fluxo de pessoas em situação de rua, por vezes de forma repressiva, fazendo mau uso inclusive das políticas sociais. Quando o território é utilizado como recurso pelas empresas e pelo Estado, temos que questionar onde estão os princípios das políticas sociais, quer dizer, neste contexto de choque ou submissão às ações de revalorização urbana, é preciso retomar e analisar se estão sendo garantidos os direitos do cidadão que está nas ruas, ou os interesses das empresas, da revitalização urbana, das grandes corporações, ou do tráfego que não pode ser obstruído. IHU On-Line – O que é possível vislumbrar em termos de política urbana com eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016, especialmente em São Paulo? Ana Tereza Coutinho Penteado – O que temos visto tanto em São Paulo como em diversas cidades é uma atualização dos mecanismos de repressão das pessoas pobres e pessoas em situação de rua com a chegada dos megaeventos. Eles dinamizam o turismo, provocam valorização do território, e as cidades precisam estar "limpas”, bonitas, atrativas. Portanto, todas as manifestações de pobreza, dentre elas as pessoas em situação de rua, precisam ser retiradas. Desse modo, há que se preocupar com o sentido das políticas sociais, para que não fiquem submetidas às operações urbanas. IHU On-Line – Em que medida, nas metrópoles brasileiras, o espaço urbano é tratado como um grande negócio? A que atribui essa prática? Ana Tereza Coutinho Penteado – As grandes metrópoles, por terem uma concentração de mão de obra, serviços especializados, infraestrutura urbana como aeroportos e rodovias, entre outros, têm sido tratadas como um grande negócio. Os megaeventos são um bom exemplo disso. Outro exemplo que vimos na cidade de Campinas é um documento intitulado "Campinas: Guia de Investimentos” que ficou nos últimos anos disponível no site da prefeitura municipal, apresentando o dinamismo da região e a cidade e o país como alvo de investimentos mundiais e instalação de grandes negócios pela disponibilidade de infraestrutura e recursos humanos. Um dos incentivos fiscais é até denominado "Compre Campinas”. No mesmo sentido podemos dizer que o processo de especulação é muito violento e que acaba impedindo de a cidade ser usufruída igualmente por todos os seus habitantes. As operações de revitalização de áreas degradadas demonstram este processo, pois em geral, após as obras e embelezamento dos locais, as pessoas em situação de rua passam a ser impedidas de circular neles. IHU On-Line – A senhora critica o programa Tolerância Zero por ter desmantelado as políticas sociais em Campinas. Por quais razões? Ana Tereza Coutinho Penteado – Havia uma rede de serviços e infraestruturas das políticas sociais de assistência social e de saúde constituída, que vinha há alguns anos num processo de aproximação, construção e realização de algumas ações intersetoriais para garantias de direitos de meninos e meninas em situação de rua. A imposição do programa governamental Tolerância Zero, principalmente para a participação destes serviços na ação chamada de "Bom dia morador de rua”, criou grande tensão entre os profissionais das unidades, serviços públicos e cofinanciados que foram chamados a participar das operações, pois era visível que a forma como vinham sendo executadas essas ações e encaminhamentos criminalizava ainda mais a pobreza e violava os direitos das pessoas que estavam nas ruas. Além disso, a partir desta operação urbana alguns programas e serviços públicos foram fechados, outros passaram por transformações significativas, ou seja, houve uma mudança no sentido das ações que vinham sendo construídas, o que impactou no atendimento direto que era realizado para com os meninos e meninas que estavam nas ruas. IHU On-Line – Como vê as políticas públicas na área de assistência social no país? Quais os avanços e limites nesse sentido? Ana Tereza Coutinho Penteado – Anteriormente, as ações assistencialistas não consideravam os pobres como sujeitos de direitos, e sim os rebaixavam ainda mais, sujeitando-os à condição de ajudado, de inferior. As mudanças ocorridas na assistência social foram paradigmáticas, pois estamos falando de uma transformação na direção e no sentido das ações historicamente realizadas pela sociedade. A assistência social foi inserida na Constituição da República, de 1988, como um direito do cidadão e dever do Estado. A partir de então suas ações passaram a ser regulamentadas. Atualmente a Política de Assistência Social é organizada num sistema, o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, que possui serviços e ações normatizadas dentro de diferentes Proteções Sociais (de básica, média e alta complexidade). A partir dessa organização temos visto a ampliação dos benefícios e de unidades de atendimentos, assim como há um estudo do IPEA (2011) que revela a grande ampliação de recursos financeiros para a execução da política de assistência social, a partir dos anos 2000. De acordo com este estudo, dentre as políticas sociais, a assistência social foi a que mais apresentou evolução dos recursos. Por isso, podemos analisar que a política de assistência social tem avançado no país. No entanto, é preciso superar o ranço assistencialista e repressor, principalmente quando as unidades, as ações e os serviços assistenciais são implementados nos municípios e estados. A política de assistência social não pode ficar submetida aos interesses econômicos, nem ser utilizada para adequar ou controlar as pessoas atendidas. IHU On-Line – Como o processo de urbanização pode dialogar com as políticas públicas sociais? É possível ter um projeto de urbanização sem implicações sociais? Ana Tereza Coutinho Penteado – O planejamento e as ações urbanas dialogam com todas as políticas setoriais, pois ele é como um guarda-chuva. Todas as ações que ocorrem na cidade possuem implicações, para melhor ou para pior, nas condições de vida da população. Muitas vezes ações realizadas pela política urbana geram novos investimentos econômicos, atraem empresas, aumentam o valor dos imóveis; no entanto, socialmente estas ações podem acabar piorando as condições de vida de muitas pessoas, principalmente as pobres. Nesse sentido, o planejamento urbano precisa considerar a cidade como um espaço de todos, não apenas da esfera econômica. E precisa dialogar com as políticas sociais, e com as unidades e serviços públicos que realmente conhecem as condições de vida e as maiores necessidades da maioria da população. http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73112

domingo, 6 de janeiro de 2013

90 anos de transformações na Igreja. Entrevista com Dom Tomás Balduíno

04.01.13 - Brasil
IHU - Unisinos Instituto Humanitas Unisinos Adital Quarta, 02 de janeiro de 2013 "Num país como o nosso, que tem tantos recursos e onde muitas igrejas são florescentes de templos invejáveis em tamanho, conforto etc., pastorais de fronteira estão empobrecidas”, declara bispo emérito de Goiás. Dom Tomás Balduíno, bispo emérito de Goiás, pertence a uma geração de bispos brasileiros que identifica na missão da Igreja uma transformação social. Ele esteve à frente da criação da Comissão Pastoral da Terra – CPT e do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, onde, ainda hoje, atua com bastante entusiasmo. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Dom Tomás recorda sua trajetória na Igreja e enfatiza que a "CPT aconteceu num momento de muita animação, decisão, caminhada e energia a favor dos pobres. Foi fruto do Concílio Vaticano II e de Medellín”. Para ele, tanto a CPT quanto o Cimi "trouxeram para dentro da Igreja uma abertura, porque a convivência com esses povos trazia, na pessoa dos agentes de pastoral das CPTs, para o interior da Igreja a preocupação com a situação deles”. E conclui: "Houve um crescimento dentro da própria instituição eclesiástica”. Poucos dias antes de completar 90 anos de idade, Dom Tomás Balduíno conversou com a IHU On-Line e diz se sentir "livre”. "Não tenho mais o governo de uma diocese, mas se eu pastoreio, eu pertenço ao Colégio Episcopal. Então, tenho na Igreja a atuação referente à missão de pastor”. Depois de ter presenciado momentos difíceis na Igreja, como o período militar, Dom Tomás gosta de pensar o futuro da Igreja numa perspectiva de "esperança”. "O futuro próximo é a continuidade. Agora, o futuro mais remoto a Deus pertence. Eu acho que tem muito elemento dentro da Igreja no sentido de uma renovação. Será que isso terá acesso ao governo mundial da Igreja na pessoa do Papa? Não sei”, conclui. Dom Tomás Balduíno nasceu em 31 de dezembro de 1922, e no final do ano passado completou 90 anos. É teólogo católico, bispo emérito de Goiás e assessor da Comissão Pastoral da Terra. Pertence à Ordem Dominicana. Confira a entrevista. IHU On-Line – Quando e por que decidiu seguir a vida religiosa e entrar na Ordem Dominicana? Dom Tomás Balduíno – Desde menino eu já tinha vontade de ser padre. Talvez por influência familiar dos tios padres por parte da minha mãe, ou de um tio padre por parte do meu pai. Na cidade onde morava, Formosa-GO, havia uma comunidade de religiosos dominicanos franceses. Admirava estes monges pela vida missionária deles, pelo sacrifício de rodar boa parte do estado de Goiás a cavalo. Então, me engajei na Igreja, e quando era adolescente fui encaminhado para o seminário, depois para o noviciado em Uberaba. Mais tarde estudei em São Paulo e cursei Filosofia; na França, mais tarde, estudei Teologia, porque faltam professores no Brasil. Nessa época tivemos uma influência interessante dos precursores do Concílio Vaticano II. Fui ordenado padre na França e, ao voltar ao Brasil, depois de um certo tempo de lecionar nas faculdades de Filosofia, meu provincial me designou para a missão indigenista. Esse foi o início de uma nova etapa. Não que eu escolhesse, mas fui levado a isso pelas circunstâncias, porque eu era o superior da missão, e a partir de um certo momento, na década de 1960, fui procurado pelos lavradores que estavam sendo pressionados pelos proprietários da terra no estado do Pará. Acabei me envolvendo com esse mundo. Depois também trabalhei com os povos indígenas. Tive mais contato com o povo Xikrin, do Alto do Itacaiúnas; aprendi a língua convivendo com eles. Injustiça social O que me marcou profundamente foi a questão da injustiça social no sentido de o governo do estado do Pará vender terras sem levar em conta a população que estava dentro daquele território. Houve conflitos e eu participei deles no início, porque depois fui transferido para Goiás, como bispo diocesano, onde fiquei durante 31 anos. Lá me deparei novamente com a questão da terra, porque é uma região de muito latifúndio, de dominação da elite dos caiados. Nesse tempo que vivi em Goiás, ajudei a inaugurar duas fundações importantes para a Igreja e para a sociedade: o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, que foi substituindo pouco a pouco as antigas missões de caráter paternalista; e a Comissão Pastoral da Terra, que surgiu graças a Medellín e ao Concílio Vaticano II, nos anos de1972 e 1973. O Cimi surgiu como opção pelos pobres, mas considerando os pobres como sujeitos, autores e destinatários de sua própria caminhada, como protagonistas de sua própria luta. Quer dizer, mudou, naquele tempo, completamente a postura da Igreja com relação aos povos indígenas e com relação aos camponeses. As experiências que se tinham eram de criar organizações, confrarias de operários, trabalhadores rurais ligados religiosamente à Igreja. Na posição da Comissão Pastoral da Terra, que nasceu em 1975, houve uma revolução Copernicana, assim como houve no Universo Indígena Pastoral Indigenista de respeitar a condição de sujeito dos trabalhadores rurais e não objeto de nossa ação caritativa. IHU On-Line – O senhor foi cofundador do Conselho Indigenista Missionário em 1972 e seu segundo presidente. Como avalia a questão indígena no país 40 anos depois? Dom Tomás Balduíno – Houve avanço no sentido das organizações indígenas. O próprio Conselho Indigenista Missionário tem numa nova política de tratamento aos povos indígenas. Em vez de querer confiná-los em um determinado lugar pastoral, como era antigamente, sugeriu uma proposta – que no início nos chocou e depois se viu que era o "ovo de Colombo” – de favorecer assembleias de chefes de tribos diferentes. Tínhamos receio, porque eram tribos muitas vezes hostis entre si, mas constatamos que eles atenderam ao convite para se reunirem. Passamos a reunir chefes indígenas em assembleias, e eles saíam convictos de que o inimigo do índio nunca era outro índio, e que precisavam recuperar sua cultura e, consequentemente, as terras. Para isso, eles começaram a se organizar em diversas articulações, associações regionais e nacionais. Assim, do lado dos índios houve avanço e eles continuam avançando. O retrocesso foi do lado do governo que, aliado aos grupos capitalistas do agro e hidronegócio, se negou a demarcar as terras indígenas e enfraqueceu o próprio organismo da Funai, sucateando, de outro lado, o Incra. A mesma falta de vontade para com os povos indígenas é a falta de vontade para com os camponeses em relação à reforma agrária. IHU On-Line – Como começou seu trabalho na Comissão Pastoral da Terra – CPT? Em que contexto histórico e político ela surgiu e como vê sua atuação nos dias de hoje? Dom Tomás Balduíno – A CPT aconteceu num momento de muita animação, decisão, caminhada e energia a favor dos pobres. Foi fruto do Concílio Vaticano II e de Medellín. Havia um clima geral de entusiasmo dentro da própria igreja, na diocese, sobretudo nas congregações religiosas. Portanto, a CPT nasceu com a aceitação da Igreja , e tanto ela quanto o Cimi são pastorais de fronteira, diferentemente das outras pastorais litúrgicas, ecumênicas, bíblicas, de formação catequética ou presbiteral de seminaristas. A CPT e o Cimi trouxeram para dentro da Igreja uma abertura, porque a convivência com esses povos trazia, na pessoa dos agentes de pastoral das CPTs, para o interior da Igreja a preocupação com a situação deles. Houve um crescimento dentro da própria instituição eclesiástica. Mas essas pastorais mudaram no governo de João Paulo II. Houve um retrocesso dentro da Igreja, no sentido de desconfiança com relação a este mundo externo, essas pastorais, a própria Teologia da Libertação, que é fruto dessas duas pastorais. Então, a Igreja acompanhou um pouco, nesse movimento pendular, o fechamento das pastorais. A CPT chega a ser proibida em determinadas dioceses e isso mostra um pouco o clima que nós vivemos hoje. Com relação ao seu trabalho, foi um trabalho samaritano, eu diria. O que fez o samaritano? Ele se inclinou diante do caído. Mas ela não criou uma instituição para recolher aquele caído e outros caídos; o levantou e no dia seguinte aquele caído já podia levantar outro caído. A CPT criou vários instrumentos. Quer dizer, na evolução da pastoral, percebeu que direitos humanos, terra e água são três prioridades. Para ajudar o pessoal da terra, ela criou um corpo de advogados, porque ela luta contra o latifúndio, contra o próprio Judiciário, contra todas as forças da elite para garantir o status quo, ao passo que os camponeses vinham trazer uma transformação, por exemplo, contra o latifúndio. Eles ocupavam a terra e o que fazia a CPT diante de toda a aula de legalidade da propriedade? Ela simplesmente apoiava as ocupações de terras numa nova perspectiva que, aliás, é constitucional de prioridade à função social da terra. Isso não era muito bem aceito, nem dentro da Igreja nem dentro da sociedade. O próprio poder Judiciário era muito preso às normas antigas de direitos absolutos à propriedade privada. Isso foi sendo quebrado. A CPT, em um tempo mais remoto, ajudou com agrônomos, porque muitas vezes o pessoal recuperava a terra, mas não sabia mais trabalhar. IHU On-Line – Quais são as dificuldades de manter a CPT no Brasil e também dentro dos atuais rumos que a Igreja vem seguindo? Dom Tomás Balduíno – Com relação à manutenção, a CPT está "ralada”, sem recurso. Ela sofre disso, porque desde o início foi apoiada com recursos externos da Europa. Mas devido à crise econômica e à diminuição no contingente católico, os recursos diminuíram. Outro fenômeno é que essas entidades entraram em convênio com o governo, e passaram a se deparar com exigências capitalistas. Então, a CPT está com esse desafio para resolver. Não se trata do fim ou da dissolução da CPT por faltas de recursos. Mas num país como o nosso, que tem tantos recursos e onde muitas igrejas são florescentes de templos invejáveis em tamanho, conforto etc., pastorais de fronteira estão empobrecidas. IHU On-Line – Como o senhor se tornou bispo? Que aspecto destaca da sua atuação como bispo de Goiás? Dom Tomás Balduíno – Eu era prelado –um padre com direitos de bispo – numa prelazia, que é uma área confiada a uma ordem religiosa. Fui parar em Goiás porque sou goiano. O povo cuidadosamente foi atrás do núncio e disse: "Nós queremos um bispo goiano!”. Ele olhou assim, no elenco deles, e me achou lá no sul do Pará. Eu fui então nomeado o bispo de Goiás, o bispo diocesano por pedido do povo. Muitos se arrependeram. (Risos) IHU On-Line – Será? Dom Tomás Balduíno – Eles queriam um goiano, mas de outro tipo. IHU On-Line – Por quê? Dom Tomás Balduíno – No meu episcopado, iniciado em 1967, propus fazer uma caminhada na linha do Concílio do Vaticano II. Foi interessante, porque era um momento de muito entusiasmo na Igreja como um todo, e eu comecei a receber voluntários de diversas partes do país, que iam para lá colaborar com esse trabalho. Temos um hospital na diocese, e médicos que tinham um futuro promissor em outras áreas deixaram suas carreiras para vir trabalhar aqui. Com isso, houve um fortalecimento da caminhada. Desde o início valorizamos a participação popular na Igreja, não a Igreja Clerical, reservada aos padres, aos religiosos, mas a Igreja Comunhão e Participação. Iniciei meu episcopado no final de 1967, e no início de 1968 tivemos a convocação da Primeira Assembleia Diocesana. A maioria dos membros da Assembleia já era de leigos e pessoas das comunidades eclesiais de base. Então, você vê o que isso significa como revolução, como transformação. Claro que houve problemas, sobretudo em Goiás, onde há muita tradição das celebrações tradicionais. Eu esclareci que assumiria aquela pastoral do jeito que o povo queria. Bispos Como era um momento propício dentro da Igreja, nos ligamos a bispos de outras dioceses, com Dom Pedro Casaldáliga, Dom Antônio Fragoso, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Fernando Gomes dos Santos. Além das assembleias da CNBB, nós tínhamos um grupo informal de bispos, que tinha muita liberdade de sentar e chamar a assessoria, coisa que era muito difícil naquele tempo na assembleia dos bispos. Esse grupo informal se reunia com muita cautela, porque tudo era vigiado naquele tempo. Facilmente a polícia e o DOPS entravam em alguma reunião. Então, fazíamos as reuniões às sombras das assembleias da CNBB, que eram muito respeitadas. Isso ajudou a cada um de nós na nossa diocese, e ajudou a própria CNBB, até na escolha de seus presidentes. Não pensem que a aparição de Dom Aloísio Lorscheider, Ivo Lorscheiter caiu do céu; foi trabalho desse grupo. IHU On-Line – Quais as dificuldades de atuar no período da ditadura? A Igreja esteve bastante dividida nesse período. Dom Tomás Balduíno – Houve até apoio ao Golpe, "porque nos livrou do comunismo sem derramamento de sangue”, diziam os próprios bispos. O sistema ditatorial tem muita tensão com a Igreja; um coronel inclusive declarou: "Nós conseguimos barrar os estudantes, silenciar a imprensa, está faltando só o púlpito das igrejas”. Nós sabíamos da resistência militar às nossas propostas, porque eram propostas não apenas de aprimoramento da pastoral interna da Igreja, mas de apoio às organizações populares. Segundo José de Souza Martins, o Golpe Militar de 1964 foi dado não exclusivamente, mas principalmente, para quebrar a espinha dorsal das organizações camponesas. Os militares achavam que através delas o comunismo internacional entraria no Brasil. IHU On-Line – Como o senhor se sente hoje sendo bispo emérito depois de toda a sua atuação na Igreja? Dom Tomás Balduíno – Me sinto muito livre. O bispo tem um grande espaço em que pode atuar dentro da Igreja. Isso é tradição, desde Santo Agostinho, Santo Ambrósio, Santo Irineu. Há bispos que eu reconheço, são tímidos, que, aliás, foram ordenados porque são mais piedosos, às vezes, medíocres. Então, depois de emérito, podemos dizer: "Ah, o bispo agora é general de pijama e não tem mais problemas”. Não tenho mais o governo de uma diocese, mas se eu pastoreio, eu pertenço ao Colégio Episcopal, sou membro do Concílio Ecumênico. Então, tenho na Igreja a atuação referente à missão de pastor. Sou conselheiro da CPT nacional, e assessor do Cimi. Então, sou convidado a participar das assembleias, dos encontros, de maneira que estou presente. Quando mudei de Goiás e vim morar na casa de dominicano, trouxe minhas caixas, meus pertences de serviços, de utilidades, livros etc. Levei quatro meses para começar a abrir aquilo. Eu era chamado para todo o canto. Por isso muitas vezes eu digo, lembrando a palavra de Mandela: "Eu preciso aposentar da aposentadoria”. Mas, por outro lado, isso me estimula. IHU On-Line – Como o senhor avalia a situação de Dom Pedro Casaldáliga? E de outros bispos, como Dom Erwin, que também são ameaçados de morte pelo trabalho que desenvolvem? Dom Tomás Balduíno – O Pedro para mim é um ícone. Ele me considera como padrinho, porque no dia em que ele ia responder a carta desistindo de ser bispo, conversou comigo e mudou de ideia. Ele me chamou no quarto e mostrou aquela carta. Eu falei na cara dele: "Olha, Pedro, eu não entendo você! Você aceitou ser prelado, pastor dessa Igreja como presbítero, e na hora de receber o sacramento, a consagração desse pastoreio, você recusa?”. Aí ele pensou um pouco mais, reuniu o pessoal, conversou e a resposta foi favorável. Por causa desse incidente, ele me considera como padrinho. Eu o considero como um verdadeiro irmão e exemplo para a minha vida. É um homem de uma vida extraordinária, uma profunda vida espiritual, mística, um profeta e também um poeta da melhor estirpe. Pedro ultimamente deu apoio à entrada dos Xavantes na antiga fazenda Suiá-Missu, que estava ocupada por inúmeros fazendões. Mas graças a Deus o Judiciário deu ganho de causa aos Xavantes. Dom Pedro deu apoio, estímulo, e sempre cutucou o governo para não retroceder. O processo está caminhando firmemente. O que fizeram então? Ameaçaram Dom Pedro: "Esse aqui tem poucos dias para ser eliminado”. Então, Pedro está refugiado. IHU On-Line – Que perspectiva vislumbra para a Igreja brasileira a partir de agora? Dom Tomás Balduíno – A Igreja depende 99,9% do Papa. Então, o Concílio e o Pós-Concílio aconteceram graças primeiro a um papa, um homem extraordinário que foi colocado ali como transição. Ele revirou a igreja de pernas para o ar. O Concílio Vaticano II foi uma coisa notada não só nas Igrejas, mas também no mundo não cristão. Depois Paulo VI aplicou pacientemente o Concílio Vaticano II, e o papa João Paulo II trouxe outra perspectiva. Então, quando muda o Papa, muda tudo. Não tudo, porque a Igreja é plural. Mesmo com toda a perspectiva de unidade, ela é plural. O futuro próximo é a continuidade. Agora, o futuro mais remoto a Deus pertence. Eu acho que tem muito elemento dentro da Igreja no sentido de uma renovação. Será que isso terá acesso ao governo mundial da Igreja na pessoa do Papa? Não sei. O futuro a Deus pertence. Mas tem potencial. E o potencial, a meu ver, aponta para outro rumo, não na linha da hierarquia, do clero, do masculino. Mas na linha do leigo e na valorização da mulher. IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo? Dom Tomás Balduíno – Acho importante, com relação a esse conjunto que eu falei, a perspectiva de esperança diante de uma situação de muito sofrimento, de angústia e tristeza. Sucedeu uma coisa na região da Serra da Mesa onde estão os Avá-Canoeiro: nasceu uma criança chamada Pantio. Fazia 22 anos que não nascia nenhuma criança naquela etnia, que é um grupo destinado à extinção. E, de repente, nasce o Pantio, uma linda criança. Isso tem um sabor de Natal, você não acha? Uma estrela que aponta um caminho bonito, um caminho de esperança, um caminho da boa nova, como aconteceu para os magos. Isso que eu queria colocar aqui como perspectiva. De onde se esperava a morte nasceu a vida. E essa vida não é só para os povos indígenas, não é só para o grupo Avá-Canoeiro, mas para todos nós, para o mundo todo. Amém! http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73046