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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

IGREJA DA LIBERTAÇÃO NO BRASIL. UM CATOLICISMO PARA O SÉCULO XXI

REPORTAGEM ESPECIAL - 2010-12-02 - Adital

Sempre existe uma pré-história
A nova experiência das Comunidades Eclesiais de Base, CEBs e da Teologia da Libertação que a Igreja do Brasil está vivendo, começa nos anos 50. Reinava, na Igreja, uma necessidade forte de renovação, mas o espírito era de quem se preocupa mais com suas questões internas e menos com a sociedade. Existia, por exemplo, um caminho paralelo entre ligas camponesas e sindicatos católicos, Movimento de Educação de Base e metodologia de Paulo Freire. Na mesma linha vai a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, em 1952. Movimento de renovação semelhante se deu em meados da década de 1960, quando nasceram as primeiras CEBs, pensadas como alternativas e/ou complementação ao trabalho paroquial.
Novos ventos
Mas, elementos novos entram e se fundem na vida da Igreja. O Concílio Vaticano II (1962-1965) funcionou como elemento-chave para a participação de leigos, abrindo-lhes o acesso à Bíblia, à palavra de Deus. Ganhava força a proposta de uma Igreja povo de Deus. No seu olhar interno, o Concílio pensou uma Igreja plural, flexível e, diante de uma estrutura até então centralizada e clerical, sonhou com uma instituição participativa. Ao olhar para fora, o Concílio comprometeu-se num diálogo com todas as culturas e povos, e com a libertação dos pobres.
Muitos padres e dezenas de religiosos foram procurar novas modalidades de trabalho pastoral nas periferias urbanas e nas zonas rurais, motivados pela opção pelos pobres que surge em Medellín. É em agosto de 1968 que a Conferência Episcopal de Medellín, na Colômbia, reforçando as decisões do Concílio, abre um novo tempo na história da Igreja da América Latina. Exemplo deste impulso inovador registrou-se no Brasil no início dos anos 70. A sociedade era submetida ao Ato Institucional nº 5, que extinguiu as liberdades civis. Sindicatos, movimentos e associações populares já não podiam atuar livremente. Foi nesse período que as CEBs se multiplicaram e abriram as portas para pessoas que, sem participar diretamente de uma prática sacramental, estimulam sua presença nos movimentos de reivindicação.
Começa a tomar corpo a Teologia da Libertação
Um mês antes da Conferência de Medellín, numa palestra na cidade de Chimbote, no Peru, o teólogo Gustavo Gutiérrez lançou a primeira semente da Teologia da Libertação. O texto, publicado em 1969 com o título Rumo à Teologia da Libertação, deu origem ao livro Teologia da Libertação, editado em Lima, em dezembro de 1971.
O momento político que o Brasil vivia, de violenta repressão, funcionou como fermento para a nova teologia. A CNBB que, com o decorrer dos anos e o afastamento de D. Hélder Câmara, como seu secretário-geral, havia se burocratizado, assumiu papel preponderante com a posse de D. Aloísio Lorscheider na presidência, no início dos anos 70. As posições firmes do cardeal nas denúncias de torturas a presos políticos ganharam espaço na imprensa e tiveram o apoio dos bispos.
Teve início um verdadeiro embate entre Igreja e regime militar. Em 1975, a CNBB publicou um documento contundente intitulado Comunicação Pastoral ao Povo de Deus, em que os bispos afirmavam: "Ao cristão é proibido ficar triste e ter medo".
No mesmo ano, realizou-se o 1º Encontro Intereclesial de CEBs. Era a primeira tentativa de se fazer uma sistematização sobre as CEBs, que pode ser resumida numa frase: uma nova forma de ser Igreja e uma nova forma de a Igreja ser. Elas passaram a representar a concretização do Vaticano II, por ser uma presença transformadora do mundo.
É nesse diálogo e na vivência no meio popular que a igreja percebe a necessidade de estar ao lado das pessoas que já estavam lutando por justiça e solidariedade. Essa intuição nova propiciou o surgimento das pastorais sociais, que ganharam expressão nacional com a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT). De início, chamava-se apenas Comissão da Terra. Mas os bispos da Amazônia, e o próprio D. Aloísio, defenderam a inclusão da palavra Pastoral. Configurava-se, na verdade, um olhar novo da Igreja em relação ao mundo, visto não mais como lugar profano, mas como lugar onde Deus se faz presente para caminhar com seu povo e libertá-lo. E foi nesse intercâmbio que a Igreja assumiu sua maior proximidade com o povo. No caso da CPT, por exemplo, com os lavradores. As pastorais sociais, portanto, não surgiram como um trabalho supletivo, e sim como fonte de autenticidade da própria igreja. Enquanto as CEBs se expandiram, formando uma rede de aproximadamente 80 mil comunidades espalhadas por todo o Brasil, as pastorais aglutinaram um número de pessoas muito menor, porém com atuação expressiva, competente e de grande repercussão.
Fundiram-se, assim, até 1977-78, quatro elementos fundamentais: a CNBB, as CEBs, as Pastorais Sociais e a Teologia da Libertação. É neste período que o teólogo Leonardo Boff escreve a obra A Igreja que nasce do povo, e o também teólogo Carlos Mesters publica o livro A flor sem defesa, um ensaio de um novo jeito de ler a Bíblia, a partir do povo.
Evolução e involução
Os anos que se seguiram, até a segunda metade da década de 80, foram de esperança, de construção, de entusiasmo, às vezes, de ingenuidade. Muitos cristãos e não cristãos acreditaram na possibilidade de uma mudança radical e rápida das estruturas sociais e eclesiais. Os caminhos da história, porém, nunca são lineares e o barco de Pedro, desde que se meteu nas tempestades da história, começou a balançar.
E o 11 de setembro de 1973 tinha acontecido e devia ser um marco na história da América Latina. O bombardeio do Palácio de La Moneda e o assassinato de Salvador Allende deviam representar o declínio da revolução social, do socialismo, dos movimentos populares de libertação, da esperança dos pobres e oprimidos, e uma advertência à Teologia da Libertação, que acabava de nascer já condenada. Uma certa ansiedade se espalhou em ondas sucessivas na sociedade e na igreja.
Várias pessoas que fizeram opção pelos pobres por causa de sua força histórica, depois, resfriaram sua atuação; pouco dispostas a compartilhar sua fraqueza. Mas, na sociedade, continuaram crescendo a consciência e a organização e, na igreja, os setores da escolha pelos pobres firmaram o passo, apesar das hostilidades da cúria vaticana, que já não fazia mais bispos como antigamente.
A globalização econômica e religiosa
Ao final do século XX, foram grandes os desafios da humanidade. Na década de 90, o neoliberalismo atingiu o auge e apareceu como indestrutível; como a fase final da história. A cultura individualista do capitalismo norte-americano invadiu o mundo, inundou a América Latina.
No plano mundial, a globalização ampliou a distância entre ricos e pobres e trouxe significativas mudanças na divisão social do trabalho; aumentou o peso do império norte-americano, a especulação financeira, a violência e a miséria.
A religião ocupa lugar determinante nesta nova cultura. Ela se adequa e oferece receitas de bem-estar e de felicidade. É uma religião light na linha do New Age, sem exigências, com promessas de felicidade imediata, feita de emoções agradáveis. As Igrejas seguem o movimento da sociedade. A geração de jovens que não conheceu as esperanças e os movimentos sociais dos anos 50 e 60 vive a nova cultura sem complexo. Afinal, é a cultura em que eles nasceram.
Não se podem omitir, porém, os avanços tecnológicos positivos e, sobretudo, o surgimento de uma sociedade civil mundial.
Fraquezas e desafios da igreja católica no final do século XX
No que se refere à Igreja Católica, alguns elementos, tais como o fundamentalismo, o integrismo, a cristandade e a perda do profetismo, impediram o cumprimento de sua missão. Em nome de uma tradição e para manter sua influência nas sociedades, opôs-se à separação Igreja e Estado-Nação, ao advento da modernidade, à plena emancipação da mulher, às mudanças democratizadoras da sua própria organização.
Outras dificuldades vêm dos problemas do poder, de querer manter certos privilégios históricos, de influir na vida política, de assegurar a existência do Estado do Vaticano com sua representação oficial pelas Nunciaturas. A tentação de colonizar a vida civil continua presente em círculos importantes de Roma e em dioceses de todo o mundo. Há o perigo, inclusive, de o projeto Evangelização do Novo Milênio, com que a CNBB quer renovar a vida cristã, se transformar em mais uma tentativa de neocristandade.
Paralelamente, entretanto, setores lúcidos conseguem articular fé e política, e colocam a religião a serviço de todos, principalmente das minorias abandonadas e excluídas. O próprio projeto citado acima, poderá transformar-se numa boa oportunidade para multiplicar por 3 ou por 4 as 80.000 CEBs do Brasil.
"Cristãos orgânicos"
Um ponto fundamental nesta reflexão é o papel de segmentos expressivos do catolicismo no relacionamento com os modelos de desenvolvimento vigentes. Não se pode esquecer que grande número de católicos integra as classes dominantes e defende a globalização dirigida pelo capital financeiro, impondo o neoliberalismo, os ajustes estruturais, as regras do Banco Mundial e do FMI. Esses católicos, muitos formados em escolas católicas, são funcionais ao sistema. Talvez ignorem as conseqüências perversas da globalização, expressas na pobreza absoluta e relativa, no desemprego estrutural, na desqualificação e provisoriedade do trabalho, na exclusão social.
Diálogo com outras religiões
No plano do diálogo e da convivência com as outras religiões mundiais, surgiram tensões, especialmente com as de grande crescimento numérico (como o islamismo) e com aquelas que têm um perfil agressivo na conquista de adeptos e nos ataques ao prestígio da Igreja Católica. Também foram tensas as relações com as religiões que atingem setores populares e que abrigam um sincretismo, como as de origem afro-brasileira. Persistem ainda seqüelas dos conflitos do passado com as religiões protestantes históricas.
A publicação da Dominus Iesus pela Cúria Romana, argumentando que a Igreja Católica é a única realmente verdadeira e completa, não expressou o sentimento de vastos contingentes católicos, e pior: trouxe velhos ressentimentos e colocou sérios obstáculos ao entendimento. Nas esferas oficiais, o ecumenismo não avançou muito, mas vem criando raízes nas práticas de ações conjuntas e na convivência em comunidades, como nas CEBs. A imensa dificuldade da Igreja Católica é guardar a sua identidade sem se posicionar como única dona da verdade.
Compromisso social
A involução atual da igreja não a deixa ser sal da terra e luz do mundo. Agora, o desafio está em como permanecer no seu engajamento em prol dos direitos humanos e das lutas pela justiça social, por meio das pastorais sociais, das campanhas da fraternidade, do resgate das dívidas sociais, da atuação em partidos políticos, movimentos sociais, e mesmo dentro dos organismos governamentais.
Este compromisso social mais efetivo estará ameaçado se a Igreja privilegiar movimentos originários do exterior que, em nome da fidelidade estritamente espiritual, adquirem popularidade numa conjuntura de grandes incertezas existenciais e políticas e de extremado individualismo.
A democratização interna da instituição eclesial, revendo, inclusive, as funções papais, é um desafio a ser vencido (Box 1). A Igreja precisa também resguardar o papel específico dos leigos e mudar suas posições anacrônicas sobre a presença da mulher nas instâncias decisórias.
Que cristãos hoje?
Esses problemas, evidentemente, não se inscrevem somente no âmbito da hierarquia católica, mas refletem uma situação mais geral da Igreja. Entre os cristãos, hoje, podemos identificar um grupo formado pelos saudosistas, que acreditam que o futuro já aconteceu, que o melhor está no passado. Querem que todos os católicos fiquem dentro de sacristias, evitem as ruas, as fábricas e os conflitos políticos do presente que estragariam, com certeza, o futuro que deve simplesmente re-criar o passado e reformar o presente.
Outro grupo de cristãos vive o dia-a-dia e olha para o futuro que se faz no presente. Jogam suas vidas no cotidiano. Valorizam o passado sem ficar eternamente olhando pelo espelho retrovisor da vida. Querem também eles experimentar novas receitas na Igreja que se refaz em Cristo a cada dia. Estão próximos das mulheres, dos negros, dos índios e das crianças que vêem e pensam a Igreja e o mundo com outro olhar e maneira de ser. Por isso, o catolicismo deles não é mais infantil, é ecumênico, é crítico e exigente, é dinâmico e, às vezes, discordante (Box 2).
Uma nova estrutura eclesial
Dentro da experiência vivida por estes cristãos, nos últimos cinqüenta anos, uma nova estrutura eclesial vem sendo gerada no Brasil e em outros países da América Latina. A embrionária estrutura pastoral formada pelo tripé CNBB-CEBs-Pastorais, apoiada na sistematização dada pela Teologia da Libertação, representa uma inovação criativa face à antiga estrutura clerical herdada do século XI. Cada um desses elementos tem a sua especificidade e autonomia; mas, na medida em que se articulam criam um espaço eclesial novo.
A CNBB expressa a consciência da grande comunidade católica brasileira e sua influência na sociedade deve-se à articulação com as CEBs e Pastorais Sociais. Hoje, embora o pontificado do papa João Paulo II não revele simpatias pela colegialidade da CNBB, o episcopado brasileiro não se tem curvado à pressão de Roma, resiste à centralização imposta pelo Vaticano e à tentativa sistemática de desmonte da entidade. É inegável, porém, que a CNBB já não tem a influência que tinha no período de 1970 a 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, fruto de um incansável trabalho da Igreja. Atualmente, a CNBB vive uma fase de retração, mas, apesar das tensões internas, ainda é uma das principais instituições com postura crítica no país.
As CEBs congregam pessoas que se organizam para cultivar a fé cristã pela reflexão bíblica em pequenos grupos, e atuar na melhoria das condições do lugar onde vivem. A participação de seus membros em organismos da sociedade civil indica sua penetração capilar na sociedade brasileira. Sua ligação com a CNBB lhes dá a identidade eclesial, mesmo quando não são reconhecidas pelo bispo ou pároco local. Delas vêm a maior adesão aos projetos e propostas da CNBB.
As Pastorais Sociais e organismos equivalentes estabelecem uma ponte entre a Igreja e os setores específicos da sociedade e dão à Igreja incidência sobre os temas de ponta da realidade através de pessoas de liderança e de assessores qualificados.
Esta nova proposta de Igreja, Povo de Deus, tem em si uma potencialidade que não visa oferecer receitas prontas aos complexos e novos desafios éticos da sociedade moderna; mas tem, isso sim, uma nova visão para ensaiar rumos de colaboração e integração com o mundo. Ela entende que só dentro do mundo e da história acontece o processo de salvação (Box 3).
Crise neoliberal e novos tempos
E se faz urgente encarar esses desafios porque, agora, os sinais mudaram de novo. No limiar do terceiro milênio, é a sociedade neoliberal que entra em crise. O dia 11 de setembro de 2001, com os atentados de Nova York e de Washington, pode representar um novo marco histórico, indício do declínio da sociedade ocidental liderada pelos Estados Unidos. Há sinais de uma revolta das massas de excluídos do Terceiro Mundo, tendo à frente novas elites. Estas se manifestam tanto no Primeiro Mundo, como no Terceiro, confirmando o surgimento de uma sociedade civil mundial. Tudo indica que entre os jovens e adolescentes, que agora vão às ruas contra o imperialismo dos Estados Unidos, surgirão lideranças que promoverão novos movimentos populares, provavelmente bem diferentes dos anteriores. Junto a eles um exército de personalidades, técnicos, humanistas, pensadores, ativistas políticos, movimentos populares que o neoliberalismo sempre dizimou e relegou às margens dos centros decisionais, estão se impondo com a força de quem tem propostas e capacidade de encaminhar soluções. Esta perspectiva é bem clara e o Fórum Social Mundial de Porto Alegre não deixa dúvidas.
Pode-se presumir que a Igreja seguirá esses movimentos, porque uma parte dela já está neles e porque, possivelmente, dentre os jovens seminaristas "angélicos", que os atuais métodos de formação pretendem orientar para dirigir uma "Igreja feliz e bem protegida", podem surgir líderes com vocação revolucionária. Quando os povos se organizarem em novas lutas, desta vez, mundiais, haverá cristãos e católicos no meio deles, haverá religiosas, sacerdotes e, possivelmente, alguns bispos, porque os núncios também podem "errar" na escolha dos bispos.
Esse grande processo histórico terá de criar novas estruturas sociais e sistemas de pensamento, novas teologias e modos de agir. A década que se inicia será a da constituição de novas forças sociais. Essas novidades podem aparecer bem antes do previsto, pois a história é mais forte do que os projetos dos homens, e tudo muda.
[*M. Helena G. Pereira: redação e edição. Jornalista, MTPS 11872.
Colaboraram: Luiz Eduardo Wanderley, sociólogo, ex-reitor e professor na PUC-SP; José Comblin, teólogo; Fernando Altemeyer, mestre em ciências religiosas (Louvaina) e professor na PUC-SP; João Batista Libanio, professor de teologia na faculdade jesuíta (Belo Horizonte); Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, professor na Universidade Católica (Brasília); e Ermanno Allegri, Diretor de ADITAL].

Box 1:
E O FUTURO PAPA?
Por Virgílio Uchôa
É difícil imaginar a figura do papa apenas como autoridade restrita ao serviço da Igreja. Nesta hora histórica, o desafio fundamental é construir a globalização da humanidade, é pensar a missão da Igreja Católica dentro do contexto de diálogo com as religiões e com as pessoas de boa vontade no esforço de criar um novo humanismo. É o desafio de exercer a autoridade como fator de união para fazer do serviço a fonte que legitima o poder.
A sociedade de hoje, cada vez mais, requer pessoas dinâmicas na sua maneira de dar testemunho e de agir e se é difícil pensar num papa como autoridade fora do conjunto dos bispos, mais difícil será imaginá-lo sem a atitude de com-paixão pelo homem e pela mulher, não importa quem sejam.
O Evangelho define a fidelidade de Pedro, homem frágil como qualquer outro, no exercício do poder: "Simão, você me ama...? Cuida dos meus cordeiros..." (Jo. 21, 15).
A autoridade do papa, assim concebida, exige cada vez mais que ele se liberte da figura de chefe de Estado e se comprometa a ser o pastor da humanidade globalizada, angustiada e carente de uma profunda experiência da ternura humana solidária.
Que seja ele alguém capaz de descortinar o novo caminho e de ajudar a recolocar no seu devido lugar o homem e a mulher alienados pela globalização hegemônica do dinheiro, pelo poder autoritário da força e da violência de todos os terrorismos.
[*Virgílio L. Uchôa, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs].
Box 2:
IGREJA É ALVO DE CRÍTICAS SEVERAS
Acusada de ter abandonado as populações carentes e excluídas e de discriminar negros, homossexuais e as religiões afro-brasileiras, a Igreja Católica é alvo de severas críticas de diversos representantes da população brasileira. Preconceito, autoritarismo e hipocrisia são expressões usadas pelas pessoas entrevistadas que analisam sua prática, nas últimas décadas, e apontam caminhos que lhe permitiriam resgatar seu compromisso com as populações pobres e marginalizadas.
Para a sem-terra Fátima Ribeiro, do Rio Grande do Norte, a Igreja deveria retomar as deliberações de Puebla, e caminhar junto com as organizações populares, incentivar as pastorais e, inserida no meio do povo, ajudar a organizá-lo para tornar realidade um projeto popular para o Brasil. Fátima salienta o papel fundamental das CEBs nas décadas de 1970 e 1980.
Membro da Pastoral Operária e diretor do Sindicato dos Sapateiros do Ceará, Antônio Caetano da Silva acusa a hierarquia da Igreja de fechar-se para manter o poder e de ignorar o sofrimento das populações trabalhadoras. Na sua opinião, "diante das mudanças que estão ocorrendo em todos os cantos da terra, a Igreja deveria ter a sensibilidade de Jesus e caminhar ao lado dos excluídos. Do contrário, corre o risco de se tornar uma instituição irrelevante para a sociedade".
Outra voz crítica é a de Regina Célia dos Santos Ferrari. Trabalhando como leiga na pastoral há 20 anos na periferia de São Paulo, ela afirma que parte da Igreja sempre esteve ao lado dos pobres, mas, como um todo, ainda não conseguiu propor um projeto que leve os cristãos a uma única prática evangélica. "Oração e ação, esta é a questão", diz Regina Célia, que defende "mudança na estrutura da Igreja, para que todos pratiquem a pastoral da vida".
Embora reconheça algumas contribuições dadas pela Igreja, por exemplo, a Missa dos Quilombos e o trabalho que a Pastoral do Negro desenvolve, Valnízia de Ayra, mãe-de-santo do terreiro do Cobre, em Salvador, reivindica uma atitude mais respeitosa em relação ao candomblé. "A Igreja sempre negou a religião do povo negro e forçou o sincretismo. Mas, soubemos resistir e, até hoje, lutamos contra a intolerância religiosa", disse Mãe Val, como Valnízia é chamada.
Menos contundente em suas críticas, Jonatas Conceição, diretor do Movimento Negro Ilê Aiyê, na Bahia, afirma que a ala progressista da Igreja tem uma relativa aproximação com as entidades negras. Cita como exemplo a parceria entre o Ilê Aiyê e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), que colabora financeiramente com as ações do Projeto de Extensão Pedagógica desde sua criação, em 1995.
Para que esta aproximação se amplie, Jonatas defende a realização de "ações práticas e a abertura de canais de comunicação com os movimentos negros. Nós, afro-descendentes, queremos ser respeitados e aceitos como diferentes culturalmente. Pedir perdão na comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil não basta", afirma. Ainda assim, espera que o Vaticano venha a contribuir para um mundo mais tolerante.
Regina, cujo sobrenome preferiu omitir, ganha a vida com a prostituição. Ligada à Associação das Prostitutas do Ceará, a jovem classifica a Igreja como preconceituosa e diz que só conseguiu batizar um filho porque mentiu. Condena o autoritarismo de Roma, que proíbe o uso de preservativos e o casamento de religiosas/os. "O celibato não deveria ser obrigatório. Se fosse opcional, padres e freiras não seriam forçados a fazer tudo às escondidas, como vemos. Essa hipocrisia denigre a imagem da Igreja, que vem, aos poucos, perdendo seus fiéis".
Apesar de suas restrições, Regina vai à missa aos domingos, outro motivo de críticas. Na sua opinião, as celebrações são repetitivas e raramente se ouve um sermão bem preparado. "Os padres parecem celebrar por obrigação e não por amor", diz ela.
A jovem defende uma Igreja voltada para os pobres, livre de sua pesada estrutura, rica e burocrática, seguindo o exemplo de Cristo. "Se Jesus voltasse e visse como a Igreja é hoje, não iria concordar", assegura.
Box 3:
ESPIRITUALIDADE: O CAMINHO DA COMPAIXÃO
A experiência espiritual do cristianismo é fundamentalmente experiência de alteridade e experiência de um Deus encarnado. Fora destes dados centrais e absolutamente necessários, não há cristianismo. Toda tentativa de escapar disto descaracteriza a espiritualidade cristã. Acreditar que Deus se fez carne implica buscar a experiência e a união com Deus, no seio da humanidade através da carne do "outro" que sofre opressão e injustiça, e cujo rosto revela o Deus que se constitui em seu defensor e advogado.
A espiritualidade cristã, portanto, tem em seu centro o rosto do pobre: ela está longe de ser um fruir das delícias e maravilhas da contemplação dos mistérios eternos. A experiência do cristão nada mais é do que encarnar-se nas angústias do mundo para transformá-lo segundo o coração de Deus. E é por isso que se trata de uma espiritualidade que anda junto com a política e encontra sua origem e sua fecundidade na interpelação feita pela pobreza do outro e pela com-paixão que ela origina.
Este movimento não é apenas ético, mas também místico; elementos estes que não se dissociam na Revelação bíblica e no Cristianismo. É aí que mística e política mostram mais claramente sua possibilidade de integração. Encontrar a Deus é encontrar o mundo e os outros. Fugir do mundo significa afastar-se do próprio Deus. E contemplar a Deus é sinônimo de fazer acontecer o Reino de Deus no meio da realidade, com todas as suas ambigüidades e angústias.
A experiência da relação com Deus e de união com Ele no rosto do pobre, a experiência de padecer com aquele que sofre injustiça e opressão continua sendo, para a espiritualidade cristã, via privilegiada de encontro com Aquele que "não se aferrou à sua igualdade com Deus, mas despojou-se e foi encontrado como um de tantos", conforme a Carta aos Filipenses (2, 5-11). Tomar sobre si o peso e a dor em lugar do outro, em solidariedade com o outro, é não só esforço ascético e voluntarista, mas experiência espiritual das mais profundas e autênticas em todos os tempos, particularmente neste, repleto de injustiça e de violência.
[*Maria Clara L. Bingemer, Professora do Dep. de Teologia da PUC-RJ e Coordenadora do Centro de Fé e Cultura].

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O QUE ESTÁ ACONTECENDO NA IGREJA?

Confira a conferência de José Comblin na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), de San Salvador, em 18 de março de 2010 e foi transcrita por Enrique A. Orellana. Está publicada no site Átrio de 17-09-2010. A tradução é do Cepat.

Boa tarde a todas e todos.
Não é a primeira vez que falo neste lugar, mas agradeço muito a amizade de Jon Sobrino. Nós nos conhecemos há muito tempo e eu o estimo como uma das cabeças mais lúcidas deste tempo que renovou completamente a Cristologia.
Bom... As perguntas de ontem me deram a impressão de que em muitas pessoas há um certo desconcerto em relação à situação atual da Igreja. Ou seja, uma sensação de insegurança. Como dizia Santa Teresa, por “não saber nada a respeito, que nada provoque temor”. Quando era jovem eu conheci algo semelhante e, talvez, pior. Era o pontificado de Pio XII. Ele havia condenado todos os teólogos importantes, havia condenado todos os movimentos sociais importantes, por exemplo, a experiência dos padres operários na França, Bélgica e outros países. Aí nós, jovens seminaristas e depois jovens sacerdotes, estávamos mais que desconcertados, perguntando-nos: mas, ainda há futuro? Eu me lembro que naquela época tinha lido uma biografia de um autor austríaco do papa Pio XII. E aí contava algumas palavras que havia escrito o Pe. Liber, jesuíta, professor de História da Igreja na Gregoriana. O Pe. Liber era confessor do Papa. Sabia tudo o que passava na cabeça de Pio XII e então dizia: “Hoje a situação da Igreja católica é igual a um castelo medieval, cercado de água, levantaram a ponte e jogaram as chaves na água. Já não há como sair (risos). Ou seja, a Igreja está cortada do mundo, não tem mais nenhuma possibilidade de entrar”. Isso foi dito pelo confessor do Papa, que tinha motivos para saber essas coisas. Depois disso veio João XXIII e aí, todos os que haviam sido perseguidos, de repente são as luzes no Concílio e de repente todas as proibições são levantadas. Aí renasceu a esperança. Digo isto para que não se perturbem. Algo virá. Algo virá que não se sabe o que, mas algo sempre acontece.
Como explicar essas situações que ainda podem recomeçar? Porque estamos nos aproximando da fase final da cristandade. Já faz muitos séculos que anunciaram a morte da cristandade... que está agonizando já faz cerca de 200 anos, mas ainda pode continuar sua agonia durante algumas décadas ou alguns anos. Ou seja, deixou de ser a consciência do mundo ocidental. Deixou de ser a força que anima, estimula, esclarece, explica a fonte da cultura, da economia, de tudo o que foi durante o tempo da cristandade. Tudo isso foi sendo destruído progressivamente desde a Revolução Francesa e aqui desde a independência, desde a separação do império espanhol. Então, pouco a pouco, apareceram muitos profetas que disseram que a cristandade morreu... já faz 200 anos. Mas agora creio que a cristandade está entrando em suas fases finais. Querem um sinal? A Encíclica Caritas et Veritate. Não sei quantas pessoas aqui leram a Encíclica. Se se vê a repercussão que teve no mundo: impressionante silêncio... Talvez silêncio respeitoso, mas mais provavelmente silêncio de indiferença. A doutrina social da Igreja não importa mais a ninguém, que também deixou de se interessar pelo que acontece na realidade concreta.
Há alguns anos, um sociólogo jesuíta muito importante, o Pe. Calvez, que teve um papel importantíssimo na criação e manutenção da Doutrina Social da Igreja, publicou um livro intitulado: “Os silêncios da Doutrina Social da Igreja”. Ainda está em silêncio. Deixa de entrar com força nos problemas do mundo atual. Fica com teorias tão vagas, tão abstratas, tão genéricas... A carta Caritas in Veritate poderia ser assinada pelo Fundo Monetário Internacional (risos), pelo Banco Mundial... sem nenhum problema. Não há absolutamente nada que incomode esse pessoal. Então, para quê? Esse é o sinal.
Querem outro sinal? A Conferência de Aparecida disse muitíssimas coisas muito boas. Quer transformar a Igreja em uma missão, passar de uma Igreja de “conservação” a uma Igreja de “missão”. Só que pensa que isso será feito pelas mesmas instituições que não são de missão, mas de conservação. Isso será feito pelas dioceses, pela paróquia, pelos seminários, pelas Congregações Religiosas. Estes aqui, de repente e por milagre, vão se transformar em missionários. Já se passaram três anos e o que aconteceu em sua diocese? Como se aplicou a opção pelos pobres? Não sei como é aqui, mas no Brasil não vejo muita transformação. Ou seja, a cristandade está se dissolvendo progressivamente, mas o problema é o depois. O que vem depois? Como? Daí a insegurança porque não sabemos o que vem depois. Isto aconteceu muitas vezes na história e ainda vai acontecer provavelmente muitas vezes. É preciso aprender a resistir, a suportar, a não se deixar desanimar ou perder a esperança pelo que vem acontecendo.
O que acontece é que em Roma não estão convencidos de que a cristandade está morta. Acreditam que as Encíclicas iluminam o mundo, que as instituições eclesiásticas iluminam e conduzem o mundo. Ou seja, é um mundo fechado, que de fato vivem em um castelo medieval, cercado de água. E então, o que acontece? Vamos ver como interpretar, como ver o que está acontecendo. E então ver qual é o “método teológico” que convém para isso.
O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo
É preciso partir de uma distinção básica que agora vários teólogos já propuseram entre o Evangelho e a religião. O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo. O Evangelho não é religioso. Jesus não fundou nenhuma religião. Não fundou ritos, não ensinou doutrinas, não organizou um sistema de governo. Nada disso. Ele se dedicou a anunciar, a promover o Reino de Deus. Ou seja, uma mudança radical de toda a humanidade em todos os seus aspectos. Uma mudança, e uma mudança cujos autores serão os pobres. Dirige-se aos pobres pensando que somente eles são capazes de agir com essa sinceridade, com essa autenticidade para promover um mundo novo. Seria essa uma mensagem política? Não é política no sentido de que propõe um plano, uma maneira... não, para isso a inteligência humana é suficiente; mas como meta política, porque isto é uma orientação dada a toda a humanidade.
E a religião? Ah! Jesus não fundou uma religião, mas seus discípulos criaram uma religião a partir dEle. Por quê? Porque a religião é algo indispensável aos seres humanos. Não se pode viver sem religião. Se a religião atual aqui se desintegra... Há 38.000 religiões registradas nos Estados Unidos! Ou seja, não faltam religiões, elas aparecem constantemente. O ser humano não pode viver sem religião, mesmo que se afaste das grandes religiões tradicionais. Então, a religião é uma criação humana. Entre a religião cristã e as demais religiões, a estrutura é igual. É uma mitologia. Assim como há uma mitologia cristã, há uma mitologia hinduísta, xintoísta, confucionista. Isso é parte indispensável para a humanidade. Ou seja, como interpretar todo o incompreensível da humanidade pela intervenção de seres com entidades sobrenaturais, fora deste mundo, que estão dirigindo esta realidade.
Em segundo lugar, uma religião são ritos. Ritos para afastar as ameaças e para acercar-se dos benefícios. Todas as religiões têm ritos. E todas têm pessoas separadas, preparadas, para administrar os ritos, para ensinar a mitologia. Isto é comum a todas. Então, isto devia acontecer com os cristãos também. Devia acontecer. Como poderiam viver sem religião?
Como começou essa religião? Deve ter começado quando Jesus se transformou em objeto de culto. O que aconteceu bastante cedo, sobretudo entre os discípulos que não o conheceram, que não haviam vivido com ele, que não haviam estado próximos dele. Então, a geração seguinte ou aqueles que viviam mais distantes, mais afastados, para eles Jesus se transformou em objeto de culto. Com isso se desumanizou progressivamente. O culto de Jesus vai substituindo o seguimento de Jesus. Jesus nunca havia pedido aos discípulos um ato de culto. Nunca havia pedido que lhe oferecessem um rito... nunca. Mas queria o seguimento, seu seguimento. Essa dualidade começa a aparecer cedo. 30 anos, 40 anos depois da morte de Jesus, já aparece com força suficiente para que Marcos escrevesse em seu Evangelho precisamente para protestar contra essas tendências de desumanização, ou seja, de fazer de Jesus um objeto de culto. Este Evangelho é precisamente para recordar uma palavra de profeta: Não! Jesus era isso. Jesus fez isso, viveu aqui neste mundo! Viveu aqui nesta terra.
Com o desenvolvimento da religião cristã que se fez – aqui problema para os teólogos –, progressivamente essa tentação reapareceu. Nasceu um começo de doutrina, o Símbolo dos Apóstolos. E o que diz o Símbolo dos Apóstolos sobre Jesus? Aah... diz que nasceu e morreu. Nada mais. Como se as outras coisas não tivessem importância, como se a revelação de Deus não fosse justamente a própria vida de Jesus, seus atos, seus projetos, todo o seu destino terrestre. Essa é a revelação, mas isso já vai se perdendo de vista. Os Símbolos de Niceia e Constantinopla, da mesma maneira: Cristo nasceu e morreu. O Concílio de Calcedônia define que Jesus tem uma natureza divina e uma natureza humana. Mas, o que é uma natureza? Um ser humano não é uma natureza. Um ser humano é uma vida, é um projeto, é um desafio, é uma luta, é uma convivência em meio a muitos outros. Isso é o fundamental se queremos fazer o seguimento de Jesus.


A religião: distinção entre o sagrado e o profano
Progressivamente, aparece a partir dos primeiros Concílios um distanciamento entre a religião que se forma. Com Niceia e Constantinopla já há um núcleo de ensinamento e de teologia e a Igreja vai se dedicar a defender, promover, aumentar essa teologia. Já se organizaram as grandes liturgias de Basílio e outros, e já se organizou um clero. O clero como classe separada é uma invenção de Constantino. Até Constantino não havia distinção entre pessoas sagradas e pessoas profanas. Eram todos leigos. Porque Jesus apartou a classe sacerdotal e não tinha previsto nenhuma maneira que aparecesse outra classe sacerdotal, porque todos são iguais. E não há pessoas sagradas e pessoas não sagradas, porque para Jesus não há diferença entre sagrado e profano. Tudo é sagrado ou tudo é profano.
Agora, na religião há uma distinção básica entre sagrado e profano. Em todas as religiões. E há um clero que se dedica ao que é sagrado. E os outros que estão no profano, na religião são receptores, não são atores. Não têm nenhum papel ativo. Para ter um papel ativo é preciso ser realmente consagrado. Isso começa no tempo de Constantino.
E a partir daquilo vão aparecer duas linhas na história cristã. Os que, como o Evangelho de Marcos quer recordar: Não, Jesus veio para mostrar o caminho, para que o sigamos. Isso é o básico, o fundamental. Uma linha que vai renovar, aplicar em diversas épocas históricas o que foi a vida de Jesus e como ele o ensinou. E em toda a história podemos seguir. Claro que não sabemos tudo, porque a grande maioria dos que seguiu o caminho de Jesus foram pobres, dos quais nunca se falou nos livros de história e, portanto, não deixaram nenhum documento. Mas há pessoas que deixaram documentos e com isso podemos acompanhar onde, na história da Igreja cristã, aparece o Evangelho. Onde se buscou primeiramente a vivência do Evangelho. Os que buscaram radicalmente o caminho do Evangelho foram sempre minorias, como dizia Helder Câmara, “minorias abraãmicas”.
A maioria está no outro pólo, na religião. Ou seja, dedicando-se à doutrina. Ensinando a doutrina, defendendo a doutrina contra os hereges e as heresias... Essa foi uma das grandes tarefas, praticar os ritos e formar a classe sagrada, a classe sacerdotal. Isso nos leva a uma distinção que vai se manifestar em toda a história. O pólo “Evangelho” está em luta com o pólo “religião” e “religião” com o pólo “Evangelho”. Em toda a história. Toda a história cristã é uma contradição permanente e constante entre aqueles que se dedicam à religião e aqueles que se dedicam ao Evangelho. Claro que há intermediários e assim não há pólos totais. Mas na história há visivelmente duas histórias, dois grupos que se manifestam. A história oficial: quando eu era jovem nos davam aulas de História da Igreja que era “história da instituição eclesiástica” e ali só se falava da religião, supondo que a religião era a introdução ao Evangelho. Mas isso é uma suposição: que tudo o que nasceu no sistema católico vem de Jesus, como se dizia na teologia tradicional em tempos da cristandade, que tudo o que existe na Igreja Católica Romana, ao final, vem de Jesus. Com muitos malabarismos teológicos se consegue mostrar que tudo tem finalmente sua raiz em Jesus. Não têm sua raiz em outras religiões, em outras culturas. Como se os cristãos que se convertem à Igreja fossem totalmente puros de toda cultura e toda religião. Todos trazem sua cultura e sua religião, e introduzem em sua vida cristã elementos que são de sua religião e cultura anterior e por isso resulta uma religião que é sempre ambígua, complexa. É inevitável, porque os seres humanos que entram na Igreja não são anjos. Eles estão carregados de séculos e séculos de história e de transmissão cultural e tudo isso entra, naturalmente, na Igreja. Daí uma oposição que em matéria política, por exemplo, se mostra claramente. Se diz: o Evangelho procede de Deus e, portanto, não pode mudar. A religião é criação humana, portanto, pode e deve mudar segundo a evolução da cultura, das condições de vida dos povos em geral. Se a religião fica apegada ao seu passado, ela é pouco a pouco abandonada a favor de outra religião mais adaptada. O que é muito compreensível.
O Evangelho é vivido na vida concreta, material, social. A religião vive em um mundo simbólico. Tudo é simbólico – doutrina, ritos, sacerdotes... –, todos são entidades simbólicas, que não entram na realidade material. O Evangelho é universal, porque não traz nenhuma cultura e não está associado a nenhuma cultura, a nenhuma religião. As religiões estão sempre associadas a uma cultura. Por exemplo, a religião católica atual está ligada à subcultura clerical romana que a modernidade marginalizou, que está em plena decadência porque seus membros não quiseram entrar na cultura moderna. O Evangelho é renúncia ao poder e a todos os poderes que existem na sociedade. A religião busca o poder e o apoio do poder em todas as formas de poder. E são tão visíveis!
O poder... Lembro que na época da prisão dos bispos em Riobamba o núncio dizia: “se a Igreja não tem o apoio dos governantes, não pode evangelizar” (risos). Pode-se pensar o contrário: que caso se tenha o apoio dos poderes será difícil evangelizar. Mas essa é uma mentalidade que ainda é remanescente na cristandade entre a Igreja fundida em uma realidade político-religiosa e então naturalmente estavam unidas todas as autoridades: o clero e o governo; o clero e o Exército – tudo unido. Renunciar a isso é muito difícil. Renunciar à associação com o poder é muito difícil. Vou dar um exemplo. Meu atual bispo na Bahia é um franciscano, se chama Luis Flavio Cappio. Ficou famoso no Brasil por duas greves de fome que fez para protestar contra um projeto faraônico do governo, baseado em uma imensa mentira. Não há tempo para contar toda a história, mas se tornou conhecido e foi convidado para o Kirchentag da Igreja alemã. Depois do convite falou em várias cidades da Alemanha. Um grupo se aproximou dizendo que vinham para entregar-lhe uma doação, uma ajuda para as suas obras. E era bastante: cerca de 100 mil dólares. Ele perguntou: “De onde vem esse dinheiro?” Disseram-lhe que são algumas empresas, alguns executivos que o recolheram. Então disse: “Não aceito. Não quero aceitar o dinheiro que foi roubado dos trabalhadores, dos compradores de material”. Não aceitou nenhuma aliança com o poder econômico. Eu não sei quantos no clero não aceitariam (aplausos). Esse bispo é um franciscano igual a São Francisco. Toda a sua vida foi assim. Por isso fui morar ali para santificar-me um pouquinho em contato com uma pessoa tão evangélica...
Então, como nasceu a Igreja? A Igreja de que se fala: essa realidade histórica, concreta de que temos experiência. Para o povo em geral a Igreja é o Papa, os bispos, os padres, as religiosas, religiosos... esse conjunto institucional de que se fala e que provoca também tanta incerteza, como vimos. Como nasceu a Igreja? Jesus não fundou nenhuma igreja. O próprio Jesus se considerava um judeu. Era o povo de Israel renovado e os primeiros discípulos também; Os doze apóstolos são os patriarcas da Igreja do Israel renovado. A primeira consciência era que a continuação de Israel, a perfeição, a correção de Israel. Mas uma vez que o Evangelho penetrou no mundo grego, aí Israel não significava muitas coisas para eles e então Paulo inventa outro nome. Dá às comunidades que funda nas cidades o nome de “ekklesia”, o que se traduziu por “igreja”. O que é a ekklesia? O único sentido que tem no grego é “a assembleia do povo reunido que governa a cidade”. Na prática eram as pessoas mais poderosas, mas enfim é que na cidade grega o povo se governa a si mesmo e o faz em reuniões que são “ecclesias”. Paulo não dá nenhum nome religioso às comunidades; os vê como um grupo destinado a ser a animação. A mensagem de transformação de todas as cidades, de tal maneira que estão constituindo o começo de uma humanidade nova. E é uma humanidade onde todos são iguais, todos governam a todos. Depois vem a Carta aos Efésios em que se fala da Igreja como tradução de “kahal” dos judeus, ou seja, é o novo Israel. E a ecclesia é aí também o novo Israel. Ou seja, todos os discípulos de Jesus unidos em muitas comunidades, mas não unidos institucionalmente, mas unidos pela mesma fé. Todos constituem a “ecclesia”, a grande Igreja que é o corpo de Cristo. Ainda não existem instituições.
Mas, naturalmente, não podia continuar assim. Os judeus que aceitaram o cristianismo não abandonaram todos o judaísmo. E quando o número de cristãos cresceu, o número de comunidades, ali começaram a penetrar algumas estruturas. No tempo de Paulo ainda não há presbíteros, mesmo que São Lucas diga o contrário. Mas São Lucas não tem nenhum valor histórico; isso todo o mundo já sabe. Atribui a Paulo o que se fazia em seu tempo. Então imagina que Paulo fundou presbíteros, conselhos presbiterais. Como se justificaria um bispo sem ordenar sacerdotes? Então, parece evidente um começo de separação ainda muito simples, porque ainda não há sacralidade, não há nada sagrado. Os presbíteros não são sagrados, assim como os presbíteros das sinagogas não eram sagrados. Eles tinham uma função, uma missão de governo, de administração, mas não uma função ritual, ou uma função de ensino de uma doutrina.
Depois apareceram os bispos. No final do século II se estima que o esquema episcopal esteja generalizado, mas demorou bastante. Clemente de Roma, quando publica e escreve sua Carta aos Coríntios, diz “presbíteros”, o que não é bispo. Ainda em Roma não há bispo, só presbíteros. Mas se organizou o esquema episcopal. É provável que para as lutas contra as heresias, contra o gnosticismo, se necessitasse de uma autoridade mais forte, para poder enfrentar o gnosticismo e todas as novas religiões sincréticas que aparecem naquele tempo.
E a Igreja como instituição universal, quando aparece? Houve, no século III, Concílios regionais: bispos de várias cidades que se reuniam. Mas uma entidade para institucionalizar tudo não existia. Quem inventou esta Igreja universal foi o imperador Constantino. Ele reuniu todos os bispos que havia no mundo com viagens pagas por ele, alimentação também paga por ele, e toda a organização do Concílio foi dirigida pelo imperador e os delegados do imperador. Isto constitui um precedente histórico. Até hoje não estamos livres disso: que a Igreja universal como instituição tenha nascido com o imperador.
Depois, na história ocidental caiu o imperador romano e então progressivamente o papa conseguiu chegar à função imperial. Houve muitas lutas na Idade Média entre o papa e o imperador, mas sempre o papa se estimava superior ao imperador. Nas cruzadas, o papa era generalíssimo de todos os exércitos cristãos. Era uma personalidade militar – comandante em chefe do exército cristão. E dentro da linha dos Estados pontifícios, isto ainda se mantém.
Quando o papa perdeu o poder temporal, reforçou seu poder sobre as Igrejas: e governa as igrejas como um imperador, ou seja, todos os poderes são centralizados em uma única mão e com todas as vantagens de uma corte. Por que se não há nada de democracia na Igreja, quem são aqueles que orientam o papa? A corte! Os cortesãos, os que estão ali próximos. Claro que ele não pode fazer tudo, mas enfim uma corte separada do povo cristão. Ainda estamos sofrendo as consequências daquilo. O Papa Paulo VI disse em alguns momentos que realmente teria que mudar a função atual do Papa, ou seja, o que o Papa faz. João Paulo II na “Unum sint” disse também que é preciso dar-se conta de que o grande obstáculo no mundo de hoje é essa concentração de todos os poderes no Papa. Seria preciso encontrar uma outra maneira de exercer isso. Isso para dizer que tudo isto pertence à religião.
Tarefa da teologia: no Evangelho e na religião
A partir disso, qual é a tarefa da teologia? É complexa, justamente porque tem uma tarefa no Evangelho e uma tarefa na religião. A teologia foi durante séculos a ideologia oficial da Igreja. Seu papel era justificar tudo o que a Igreja diz e faz com argumentos bíblicos, com argumentos da tradição, liturgia, e um monte de coisas que eu aprendi quando estava no seminário. Claro que não acreditava nisso (risos), mas a maioria ainda crê nisso. Então, o que acontece?
Primeira tarefa: o que diz o Evangelho?
Primeira tarefa: o que diz o Evangelho? O que é de Jesus? O que é penetração do judaísmo, de outra cultura, de outro tipo de religião? O que vem de Jesus segundo o Novo Testamento? Todo o Novo Testamento não vem de Jesus? Não, as Epístolas pastorais que falam, por exemplo, dos presbíteros, isso não vem de Jesus. Então, a tarefa da teologia consistirá em dizer o que é de Jesus, o que realmente quis, o que realmente fez e em que consiste realmente o seguimento de Jesus.
Vendo a história, quais foram as manifestações, onde, em formas diferentes – porque as situações culturais eram diferente –, onde podemos reconhecer a continuidade dessa linha Evangélica? Porque se quisermos penetrar no mundo de hoje e apresentar o cristianismo ao mundo de hoje, tudo o que é religioso não interessa. O que pode interessar é justamente o Evangelho e o testemunho evangélico. Ninguém vai se converter pela teologia. Você pode fazer todas as melhores aulas, ninguém vai se fazer cristão por causa da teologia. Por isso, me pergunto: por que nos seminários se crê que a formação sacerdotal é ensinar a teologia? Eu não entendo, não entendo. Não há outra coisa necessária para evangelizar? Não é muito mais complexo? Por isso faz 30 anos que decidi, na presença de Deus, nunca mais trabalhar em seminários (risos).
Então, a linha evangélica é essa – São Francisco. São Francisco era um extremista. Não queria que seus irmãos tivessem livros: nada de livros. Com o Evangelho basta, não se necessita nada mais. Ele próprio dizia: “Eu, o que ensino, não aprendi de ninguém, nem do papa; o aprendi de Jesus diretamente, por seu Evangelho”. Bom, isso é o que pode convencer o mundo de hoje que está em uma perturbação completa e que se afasta sempre mais das Igrejas institucionais antigas, tradicionais. Quase todas as grandes religiões nasceram entre os anos 1.000 e 500 antes de Cristo, salvo o Islã que apareceu depois, mas que é um ramo da tradição judeu-cristã.
O que fazer com a religião?
Segundo, a religião. O que fazer com a religião? É preciso examinar em todo o sistema de religião, o que ajuda, o que realmente ajuda a entender, a compreender, a agir segundo o Evangelho. Isso terá nascido por inspiração do Espírito em monges, por exemplo? Se você olha a vida dos monges do deserto no Egito, isso não é uma mensagem. Não é uma mensagem e também não vem do Evangelho. Ou seja, muitas coisas vêm não se sabe de que tradição, talvez pode ter sido do budismo ou outras coisas assim. Então, examinar o que é o que ainda vale hoje, e sinceramente.
Jesus não instituiu 7 sacramentos. Até o século XII se discutia se eram 10, 7, 5, 9, 4. Não havia acordo. Finalmente, decidiram que havia 7. Bom, por motivos dos 7 dias do Gênesis, 7 planetas, o número 7... mas há coisas que visivelmente já não falam para as pessoas de hoje. Por exemplo, o sacramento da penitência com confissão a um sacerdote. Quantos se confessam atualmente? Há 20 anos, eu atendia na Semana Santa, em uma paróquia popular, 2.000 confissões, e o pároco outras tantas. Atualmente, 20, 30, ou seja, as pessoas já não respondem mais. Isso foi definido no século XII, XIII. Por que manter algo que já não tem nenhum significado e, ao contrário, provoca muita recusa? Ou seja, que alguém necessite falar com alguém, que o pecador goste de falar com alguém, mas não justamente ao sacerdote. Há muitas pessoas, muitas mulheres, que podem exercer esse ofício muito melhor, com mais equilíbrio, sem atemorizar como fazem os sacerdotes. Isso é uma coisa.
Mas há um monte de coisas que é necessário revisar porque não tem futuro. É inútil querer defender ou manter algo que já é obstáculo para a evangelização e que não ajuda absolutamente em nada. Nas liturgias há muitas coisas que mudar. A teoria do sacrifício foi introduzida pelos judeus, naturalmente. No templo se oferece sacrifícios, os sacerdotes são pessoas sagradas que oferecem o sacrifício. Toda essa teoria, atualmente não significa absolutamente nada. Que o padre seja dedicado ao sagrado para oferecer o sacrifício e que a Eucaristia seja um sacrifício, tudo isto vem de Jesus? Ah, não vem de Jesus. Então, é preciso ver se isso vale ou não vale. Para que manter algo que não vale?
E depois há também a outra parte: o que não ajuda, o que tem sido infiltração de outras tendências, outras correntes. Por exemplo, a vida ascética dos monges irlandeses. A Irlanda foi a ilha dos monges. Ali os bispos não tinham autoridade. Serviam apenas para ordenar sacerdotes, mas para as outras coisas podiam descansar. Quem mandava eram os monges. Os mosteiros eram os centros, o que é a diocese atualmente. Esses monges irlandeses viviam uma vida ascética, mas tão extraordinariamente desumana para nós que isso é impossível que venha de Jesus, é impossível que isso ajude, porque esses homens ali eram super-homens, mas não existem mais homens assim hoje. Um exercício de penitência que faziam, por exemplo, era entrar no rio – na Irlanda os rios são frios – e ficar nu para rezar todos os salmos (risos)... Essa maneira de entender a vida, não, não devemos considerar que isso seja cristão. Também não é marca de santidade. Não é assim que a santidade se manifesta. Examinar tudo o que vem de lá.
Todas as congregações femininas sabem o quanto é preciso lutar para mudar costumes, tradições que não são evangélicos. Quantos debates! Eu conheço uma série de congregações femininas e quanto tempo se gasta em discussões, disputas entre aquelas que querem conservar tudo e aquelas que querem abandonar o que não serve mais e encontrar outro modo de viver mais adaptado à situação atual! Então, a tarefa da teologia, claro que é mudar, isso muda a tradição, deixa de ser a ideologia de todo o sistema romano, mas essa não tem futuro. Esse tipo de teologia já faz tempo que foi progressivamente abandonado.
Na América Latina apareceu algo. Conhecemos um novo franciscanismo, ou seja, uma nova etapa, mas radical, de vida evangélica. Quando nasceu? Falei dos bispos que participaram disso e que animaram Medellín e da opção pelos pobres, dos santos padres da América Latina. E vocês os conhecem. Se for preciso marcar a origem do novo evangelismo da Igreja latino-americana, eu diria – não se esqueçam – dia 16 de novembro de 1965. Nesse dia, em uma catacumba de Roma, 40 bispos, a maioria latino-americanos, incitados por Helder Câmara, se juntaram e assinaram o que se chamou de “Pacto das Catacumbas”. Ali se comprometeram a viver pobres, na alimentação. Se comprometeram e, de fato o fizeram depois, uma vez que chegaram às suas dioceses. E depois, priorizar em todas as suas atividades o que é dos pobres, ou seja, deixando muitas coisas para se dedicar prioritariamente aos pobres e uma série de coisas que vão no mesmo sentido. Foram eles que animaram a Conferência de Medellín. Ou seja, nasceu aqui.
E tiveram um contexto favorável. O Espírito Santo já naquele tempo havia suscitado uma série de pessoas evangélicas. As Comunidades Eclesiais de Base já tinham nascido. Já havia religiosas inseridas nas comunidades populares. Mas, eram poucos e se sentiam um pouco marginalizados no meio dos outros. Medellín lhes deu como que legitimidade e ao mesmo tempo uma animação muito grande, e se expandiu. Foi toda a Igreja latino-americana? Claro que não. Sempre é uma minoria. Um dia, me lembro, um jornalista perguntou ao cardeal Arns – um santo, com quem vivemos muito boas relações de amizade: “você, senhor cardeal, aqui em São Paulo tem muita sorte, toda a Igreja se fez Igreja dos pobres, as monjas todas a serviço dos pobres, que coisa magnífica!”. Aí, Dom Paulo disse: “Sim, pois, aqui em São Paulo 20% das religiosas foram às comunidades pobres; 80% ficaram com os ricos”. Era muito. Atualmente, não há 20%.
Isto foi uma época de criação, uma dessas épocas em que há, às vezes, na história com uma efusão muito grande do Espírito. Mas temos que viver essa herança. É uma herança que é preciso manter, conservar preciosamente porque isso não vai reaparecer. Às vezes me perguntam: Por que hoje os bispos não são como naquele tempo? Porque aquele tempo foi uma exceção, ou seja, na história da Igreja é exceção. De vez em quando o Espírito Santo manda exceções.
E quem vai evangelizar o mundo de hoje? Para mim, são os leigos. E já aparecem muitos grupinhos de jovens que justamente praticam uma vida muito mais pobre, livre de toda organização exterior, vivendo em contato permanente com o mundo dos pobres. Já existem. Haveria mais se se falasse mais, se fossem mais conhecidos. Pode ser uma tarefa também auxiliar da teologia: divulgar o que está realmente acontecendo, onde o Evangelho está sendo vivido neste momento, para dá-lo a conhecer, para que se conheçam mutuamente, porque do contrário podem perder ânimo ou não ter muitas perspectivas. Uma vez que se unam, formem associações, cada qual com sua tendência, seu modo de espiritualidade. Não espero muito do clero. Então é uma situação histórica nova.
Mas acontece que os leigos deixaram de ser analfabetos; isso já faz tempo. Eles têm uma formação humana, uma formação cultural, uma formação de sua personalidade que é muito superior ao que se ensina nos seminários. Ou seja, têm mais preparação para agir no mundo, mesmo que não tenham muita teologia. Se poderia dar mais teologia, mas isso é outro assunto. Agora, não vamos pensar que amanhã quem vai colocar em prática o programa de Aparecida serão os sacerdotes. Eu não conheço tudo, mas levando em conta os seminários que eu conheço, as dioceses que eu conheço, seriam necessários 30 anos para formar um clero novo. E quem vai formá-lo? Para os leigos é diferente. Há muitíssimas pessoas dispostas, e pessoas com formação humana, com capacidade de pensar, de refletir, de entrar em relação e contatos, de dirigir grupos, comunidades... Mas muitos ainda não se atrevem, não se atrevem. Mas aí está o futuro.
Para terminar, uma anedota: me chamaram para ir a Fortaleza, no nordeste do Brasil. Atualmente, Fortaleza é uma cidade muito grande – um milhão de habitantes. A Santa Sé havia afastado, marginalizado o cardeal Aloísio Lorscheider, mandando-o ao exílio em Aparecida, que é um lugar de castigo para os bispos que não agradam. Então, veio um sucessor, Dom Cláudio Hummes, que agora é cardeal em Roma. Cláudio Hummes suprimiu tudo o que havia de social na diocese, despediu todos: 300 pessoas com a longa trajetória de serviço, com capacidade humana. Um dia me chamaram: eram 300, chorando, lamentando: “e agora não podemos fazer nada. E agora, o que vai acontecer?”. Eu lhes disse: “mas, vocês são pessoas perfeitamente humanizadas, desenvolvidas, com uma personalidade forte. Tiveram êxito em sua família, tiveram êxito em suas carreiras, em seus trabalhos profissionais. Do que agora se preocupam se o bispo quer ou não quer? Por que se preocupam se o pároco quer ou não quer? Vocês têm formação suficiente e a capacidade. Por que não agem, não formam uma associação, um grupo, de forma independente? Porque o Direito Canônico – o que muitos católicos não sabem – permite a formação de associações independentes do bispo, independentes do pároco. Isso não se ensina muito nas paróquias, mas é justamente algo que é importante. Então, vocês podem muito bem reunir 4, 5 pessoas para organizar um sistema de comunicação, um sistema de espiritualidade, um sistema de organização de presença na vida pública, na vida política, na vida social: 300 pessoas com esse valor. Se paga, tem que pagar a 5, cada um vai gastar nem sequer 2% do que ganha, ou seja, podem muito bem manter 5 pessoas dedicadas a isso. E vão escolhê-los entre 25 e 30 anos porque essa é a época criativa. Até os 25 o ser humano se busca. A partir deste momento termina seus estudos e já conseguiu um trabalho. Então já quer definir sua vida: estes são os que têm capacidade de inventar. Todas as grandes invenções se deram por gente com essa idade”. Mas não o fizeram. Por quê? O que acontece? Por que tanta timidez? “Vocês que são tão capazes no mundo, na Igreja nada!” Não se sentiam capazes, necessitavam do bispo que lhes dissesse o que fazer, necessitam de sacerdotes que lhes digam o que fazer. Como é possível? Certamente, não se lhes ensinou. Podem ser adultos na vida civil e crianças na vida religiosa.
Mas nós podemos! Nós podemos fazê-lo e multiplicá-lo em todas as regiões que vamos conhecer. Então, o futuro depende de grupos de leigos semelhantes, que já existem mesmo que ainda estejam muito dispersos. O futuro está aí, é tarefa de todos, começando pelos jovens. No Brasil há neste momento seis milhões de estudantes universitários. Dois milhões, são de famílias pobres – são pobres os que ganham menos de três salários mínimos, porque com menos disso não se pode viver decentemente. Dois milhões. E qual é a presença do clero? Pouquíssima. Alguns religiosos. Das dioceses? Nada. E ali está o futuro. São jovens que estão descobrindo o mundo. Claro, há alguns que entram no mundo das drogas, que se corrompem, mas é uma minoria. Ou seja, o conjunto são pessoas que querem fazer algo na vida. Se não conhecem o Evangelho não vão viver como cristãos. É preciso explicar, mas não explicar com cursos de teologia, mas explicar fazendo, participando de atividades que de fato são realmente serviços aos pobres. Isso é possível fazer.
Tarefa da teologia. Então será preciso mudar um pouquinho: menos acadêmico, mais orientado para o mundo exterior... com todos os que não estão mais na rede de influxo da Igreja, que não recebem. Mas, presença nisso. E uma teologia que se possa ler, sem ter formação escolástica, porque anteriormente se não se tinha formação aristotélica não se podia entender nada dessa teologia tradicional. Bom, a filosofia aristotélica morreu, ou seja, os filósofos do século XX a enterraram. Agora temos liberdade para ver no mundo como nos abrimos.
Obrigado pela atenção de vocês!" (aplausos).
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terça-feira, 23 de novembro de 2010

SINAIS DOS TEMPOS

Informações da Diocese (28/11/10)

D. Demétrio Valentini
Vem de longe a advertência para estarmos atentos aos sinais dos tempos. O próprio Mestre interpelava o povo, que se mostrava capaz de fazer a “previsão do tempo”, mas não se dava conta dos “sinais do Reino”, como lembram as liturgias do Advento.
Quem se caracterizou pela insistência em valorizar os “sinais dos tempos” foi o Papa João 23. Com sua coragem e confiança em Deus, conseguiu despertar o povo para sustentar o clima favorável às grandes propostas que o Concílio iria fazer para a renovação da Igreja.
Agora, parece que se arma de novo o tempo. Há sintomas de transformações profundas em curso. Precisamos estar atentos para entender o que está se passando, para não sermos surpreendidos por acontecimentos que não estavam em nossos cálculos.
A própria natureza parece emitir sinais de alerta cada dia mais claros e insistentes. Neste contexto chega em boa hora a Campanha da Fraternidade que vai ecoar as contorções da natureza que “geme em dores de parto”, como diz São Paulo em sua carta aos Romanos, frase que servirá de lema para a Campanha.
O sistema econômico mundial, apesar de todo o seu cuidado em tranqüilizar os mercados, para o bom funcionamento dos negócios, não consegue disfarçar os temores da reincidência nos mesmos sintomas de crise que já deixou muita gente na miséria.
O desafio maior, na interpretação verdadeira dos sinais dos tempos, é compreender a causa dos fatos que acabam acontecendo. Eles nos surpreendem porque não entendemos o que está na sua raiz.
As mudanças religiosas costumam ser as mais inquietantes, porque mexem com costumes arraigados na cultura do povo. Nestes dias apreciamos um cenário pelo menos curioso. Ao mesmo tempo em que os novos cardeais desfilavam suas reluzentes vestimentas vermelhas, o Papa falava da camisinha, enquanto era anunciado o novo sínodo para 2012 sobre a Nova Evangelização e a transmissão da fé cristã.
Aí dá para identificar sinais de tempos passados, que se revestem do seu anacronismo, pelo qual, às avessas, também podem apontar para o futuro. Em todo o caso, no meio deste cenário, é legítimo se perguntar para onde caminha a Igreja, que sinais nos falam do seu futuro.
Ao anunciar o tema do próximo sínodo, é possível decifrar a angústia da Igreja diante de sintomas preocupantes. Em recente pesquisa feita na França, tomando a população dos dezoito aos trinta anos, só três por cento dizem ter uma vinculação religiosa clara. Na idade crucial para a definição da vida, noventa e sete por cento dos jovens franceses não levam em conta a religião.
Este é um evidente sinal dos tempos, que está na base da proposta do próximo sínodo. Que está acontecendo com o Evangelho de Cristo, que já não motiva mais os jovens a tomá-lo como referência para sua vida?
Não é por acaso que o próximo sínodo vai falar da “transmissão da fé”. Este assunto define melhor a angústia da Igreja. Ela já não conta com a força da tradição para transmitir a fé. A própria cultura se encarregava de transmitir às novas gerações os valores evangélicos.
Agora a cultura não serve mais de veículo para transportar a fé. A Igreja precisa encontrar outros meios. De um momento para outro, países que tinham fama de baluartes do Evangelho, se tornam hostis a ele, ou simplesmente o ignoram. Não querem, em todo o caso, assumir nenhuma identificação com qualquer expressão religiosa. É sintomática a insistência da comunidade européia em não colocar, na sua constituição, nenhuma referência às “raízes cristãs da cultura européia”.
Vivemos um tempo que caminha para a plena separação entre a esfera religiosa e a sociedade civil. Isto pode ser muito bom para uma nova evangelização, que já não vai mais contar com a bengala do favorecimento estatal para convencer as consciências para aderirem à fé.
Isto aumenta o desafio de interpretar corretamente os sinais dos tempos, que nos alertam para as mudanças profundas que vem chegando.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O que está acontecendo na Igreja?

Por Pe. José Comblin


"Boa tarde a todas e todos.

Não é a primeira vez que falo neste lugar, mas agradeço muito a amizade de Jon Sobrino. Nós nos conhecemos há muito tempo e eu o estimo como uma das cabeças mais lúcidas deste tempo que renovou completamente a Cristologia.

Bom... As perguntas de ontem me deram a impressão de que em muitas pessoas há um certo desconcerto em relação à situação atual da Igreja. Ou seja, uma sensação de insegurança. Como dizia Santa Teresa, por “não saber nada a respeito, que nada provoque temor”. Quando era jovem eu conheci algo semelhante e, talvez, pior. Era o pontificado de Pio XII. Ele havia condenado todos os teólogos importantes, havia condenado todos os movimentos sociais importantes, por exemplo, a experiência dos padres operários na França, Bélgica e outros países. Aí nós, jovens seminaristas e depois jovens sacerdotes, estávamos mais que desconcertados, perguntando-nos: mas, ainda há futuro? Eu me lembro que naquela época tinha lido uma biografia de um autor austríaco do papa Pio XII. E aí contava algumas palavras que havia escrito o Pe. Liber, jesuíta, professor de História da Igreja na Gregoriana. O Pe. Liber era confessor do Papa. Sabia tudo o que passava na cabeça de Pio XII e então dizia: “Hoje a situação da Igreja católica é igual a um castelo medieval, cercado de água, levantaram a ponte e jogaram as chaves na água. Já não há como sair (risos). Ou seja, a Igreja está cortada do mundo, não tem mais nenhuma possibilidade de entrar”. Isso foi dito pelo confessor do Papa, que tinha motivos para saber essas coisas. Depois disso veio João XXIII e aí, todos os que haviam sido perseguidos, de repente são as luzes no Concílio e de repente todas as proibições são levantadas. Aí renasceu a esperança. Digo isto para que não se perturbem. Algo virá. Algo virá que não se sabe o que, mas algo sempre acontece.

Como explicar essas situações que ainda podem recomeçar? Porque estamos nos aproximando da fase final da cristandade. Já faz muitos séculos que anunciaram a morte da cristandade... que está agonizando já faz cerca de 200 anos, mas ainda pode continuar sua agonia durante algumas décadas ou alguns anos. Ou seja, deixou de ser a consciência do mundo ocidental. Deixou de ser a força que anima, estimula, esclarece, explica a fonte da cultura, da economia, de tudo o que foi durante o tempo da cristandade. Tudo isso foi sendo destruído progressivamente desde a Revolução Francesa e aqui desde a independência, desde a separação do império espanhol. Então, pouco a pouco, apareceram muitos profetas que disseram que a cristandade morreu... já faz 200 anos. Mas agora creio que a cristandade está entrando em suas fases finais. Querem um sinal? A Encíclica Caritas et Veritate. Não sei quantas pessoas aqui leram a Encíclica. Se se vê a repercussão que teve no mundo: impressionante silêncio... Talvez silêncio respeitoso, mas mais provavelmente silêncio de indiferença. A doutrina social da Igreja não importa mais a ninguém, que também deixou de se interessar pelo que acontece na realidade concreta.

Há alguns anos, um sociólogo jesuíta muito importante, o Pe. Calvez, que teve um papel importantíssimo na criação e manutenção da Doutrina Social da Igreja, publicou um livro intitulado: “Os silêncios da Doutrina Social da Igreja”. Ainda está em silêncio. Deixa de entrar com força nos problemas do mundo atual. Fica com teorias tão vagas, tão abstratas, tão genéricas... A carta Caritas in Veritate poderia ser assinada pelo Fundo Monetário Internacional (risos), pelo Banco Mundial... sem nenhum problema. Não há absolutamente nada que incomode esse pessoal. Então, para quê? Esse é o sinal.

Querem outro sinal? A Conferência de Aparecida disse muitíssimas coisas muito boas. Quer transformar a Igreja em uma missão, passar de uma Igreja de “conservação” a uma Igreja de “missão”. Só que pensa que isso será feito pelas mesmas instituições que não são de missão, mas de conservação. Isso será feito pelas dioceses, pela paróquia, pelos seminários, pelas Congregações Religiosas. Estes aqui, de repente e por milagre, vão se transformar em missionários. Já se passaram três anos e o que aconteceu em sua diocese? Como se aplicou a opção pelos pobres? Não sei como é aqui, mas no Brasil não vejo muita transformação. Ou seja, a cristandade está se dissolvendo progressivamente, mas o problema é o depois. O que vem depois? Como? Daí a insegurança porque não sabemos o que vem depois. Isto aconteceu muitas vezes na história e ainda vai acontecer provavelmente muitas vezes. É preciso aprender a resistir, a suportar, a não se deixar desanimar ou perder a esperança pelo que vem acontecendo.

O que acontece é que em Roma não estão convencidos de que a cristandade está morta. Acreditam que as Encíclicas iluminam o mundo, que as instituições eclesiásticas iluminam e conduzem o mundo. Ou seja, é um mundo fechado, que de fato vivem em um castelo medieval, cercado de água. E então, o que acontece? Vamos ver como interpretar, como ver o que está acontecendo. E então ver qual é o “método teológico” que convém para isso.

O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo

É preciso partir de uma distinção básica que agora vários teólogos já propuseram entre o Evangelho e a religião. O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo. O Evangelho não é religioso. Jesus não fundou nenhuma religião. Não fundou ritos, não ensinou doutrinas, não organizou um sistema de governo. Nada disso. Ele se dedicou a anunciar, a promover o Reino de Deus. Ou seja, uma mudança radical de toda a humanidade em todos os seus aspectos. Uma mudança, e uma mudança cujos autores serão os pobres. Dirige-se aos pobres pensando que somente eles são capazes de agir com essa sinceridade, com essa autenticidade para promover um mundo novo. Seria essa uma mensagem política? Não é política no sentido de que propõe um plano, uma maneira... não, para isso a inteligência humana é suficiente; mas como meta política, porque isto é uma orientação dada a toda a humanidade.

E a religião? Aah! Jesus não fundou uma religião, mas seus discípulos criaram uma religião a partir dEle. Por quê? Porque a religião é algo indispensável aos seres humanos. Não se pode viver sem religião. Se a religião atual aqui se desintegra... Há 38.000 religiões registradas nos Estados Unidos! Ou seja, não faltam religiões, elas aparecem constantemente. O ser humano não pode viver sem religião, mesmo que se afaste das grandes religiões tradicionais. Então, a religião é uma criação humana. Entre a religião cristã e as demais religiões, a estrutura é igual. É uma mitologia. Assim como há uma mitologia cristã, há uma mitologia hinduísta, xintoísta, confucionista. Isso é parte indispensável para a humanidade. Ou seja, como interpretar todo o incompreensível da humanidade pela intervenção de seres com entidades sobrenaturais, fora deste mundo, que estão dirigindo esta realidade.

Em segundo lugar, uma religião são ritos. Ritos para afastar as ameaças e para acercar-se dos benefícios. Todas as religiões têm ritos. E todas têm pessoas separadas, preparadas, para administrar os ritos, para ensinar a mitologia. Isto é comum a todas. Então, isto devia acontecer com os cristãos também. Devia acontecer. Como poderiam viver sem religião?

Como começou essa religião? Deve ter começado quando Jesus se transformou em objeto de culto. O que aconteceu bastante cedo, sobretudo entre os discípulos que não o conheceram, que não haviam vivido com ele, que não haviam estado próximos dele. Então, a geração seguinte ou aqueles que viviam mais distantes, mais afastados, para eles Jesus se transformou em objeto de culto. Com isso se desumanizou progressivamente. O culto de Jesus vai substituindo o seguimento de Jesus. Jesus nunca havia pedido aos discípulos um ato de culto. Nunca havia pedido que lhe oferecessem um rito... nunca. Mas queria o seguimento, seu seguimento. Essa dualidade começa a aparecer cedo. 30 anos, 40 anos depois da morte de Jesus, já aparece com força suficiente para que Marcos escrevesse em seu Evangelho precisamente para protestar contra essas tendências de desumanização, ou seja, de fazer de Jesus um objeto de culto. Este Evangelho é precisamente para recordar uma palavra de profeta: Não! Jesus era isso. Jesus fez isso, viveu aqui neste mundo! Viveu aqui nesta terra.

Com o desenvolvimento da religião cristã que se fez – aqui problema para os teólogos –, progressivamente essa tentação reapareceu. Nasceu um começo de doutrina, o Símbolo dos Apóstolos. E o que diz o Símbolo dos Apóstolos sobre Jesus? Aah... diz que nasceu e morreu. Nada mais. Como se as outras coisas não tivessem importância, como se a revelação de Deus não fosse justamente a própria vida de Jesus, seus atos, seus projetos, todo o seu destino terrestre. Essa é a revelação, mas isso já vai se perdendo de vista. Os Símbolos de Niceia e Constantinopla, da mesma maneira: Cristo nasceu e morreu. O Concílio de Calcedônia define que Jesus tem uma natureza divina e uma natureza humana. Mas, o que é uma natureza? Um ser humano não é uma natureza. Um ser humano é uma vida, é um projeto, é um desafio, é uma luta, é uma convivência em meio a muitos outros. Isso é o fundamental se queremos fazer o seguimento de Jesus.

A religião: distinção entre o sagrado e o profano

Progressivamente, aparece a partir dos primeiros Concílios um distanciamento entre a religião que se forma. Com Niceia e Constantinopla já há um núcleo de ensinamento e de teologia e a Igreja vai se dedicar a defender, promover, aumentar essa teologia. Já se organizaram as grandes liturgias de Basílio e outros, e já se organizou um clero. O clero como classe separada é uma invenção de Constantino. Até Constantino não havia distinção entre pessoas sagradas e pessoas profanas. Eram todos leigos. Porque Jesus apartou a classe sacerdotal e não tinha previsto nenhuma maneira que aparecesse outra classe sacerdotal, porque todos são iguais. E não há pessoas sagradas e pessoas não sagradas, porque para Jesus não há diferença entre sagrado e profano. Tudo é sagrado ou tudo é profano.

Agora, na religião há uma distinção básica entre sagrado e profano. Em todas as religiões. E há um clero que se dedica ao que é sagrado. E os outros que estão no profano, na religião são receptores, não são atores. Não têm nenhum papel ativo. Para ter um papel ativo é preciso ser realmente consagrado. Isso começa no tempo de Constantino.

E a partir daquilo vão aparecer duas linhas na história cristã. Os que, como o Evangelho de Marcos quer recordar: Não, Jesus veio para mostrar o caminho, para que o sigamos. Isso é o básico, o fundamental. Uma linha que vai renovar, aplicar em diversas épocas históricas o que foi a vida de Jesus e como ele o ensinou. E em toda a história podemos seguir. Claro que não sabemos tudo, porque a grande maioria dos que seguiu o caminho de Jesus foram pobres, dos quais nunca se falou nos livros de história e, portanto, não deixaram nenhum documento. Mas há pessoas que deixaram documentos e com isso podemos acompanhar onde, na história da Igreja cristã, aparece o Evangelho. Onde se buscou primeiramente a vivência do Evangelho. Os que buscaram radicalmente o caminho do Evangelho foram sempre minorias, como dizia Helder Câmara, “minorias abraãmicas”.

A maioria está no outro pólo, na religião. Ou seja, dedicando-se à doutrina. Ensinando a doutrina, defendendo a doutrina contra os hereges e as heresias... Essa foi uma das grandes tarefas, praticar os ritos e formar a classe sagrada, a classe sacerdotal. Isso nos leva a uma distinção que vai se manifestar em toda a história. O pólo “Evangelho” está em luta com o pólo “religião” e “religião” com o pólo “Evangelho”. Em toda a história. Toda a história cristã é uma contradição permanente e constante entre aqueles que se dedicam à religião e aqueles que se dedicam ao Evangelho. Claro que há intermediários e assim não há pólos totais. Mas na história há visivelmente duas histórias, dois grupos que se manifestam. A história oficial: quando eu era jovem nos davam aulas de História da Igreja que era “história da instituição eclesiástica” e ali só se falava da religião, supondo que a religião era a introdução ao Evangelho. Mas isso é uma suposição: que tudo o que nasceu no sistema católico vem de Jesus, como se dizia na teologia tradicional em tempos da cristandade, que tudo o que existe na Igreja Católica Romana, ao final, vem de Jesus. Com muitos malabarismos teológicos se consegue mostrar que tudo tem finalmente sua raiz em Jesus. Não têm sua raiz em outras religiões, em outras culturas. Como se os cristãos que se convertem à Igreja fossem totalmente puros de toda cultura e toda religião. Todos trazem sua cultura e sua religião, e introduzem em sua vida cristã elementos que são de sua religião e cultura anterior e por isso resulta uma religião que é sempre ambígua, complexa. É inevitável, porque os seres humanos que entram na Igreja não são anjos. Eles estão carregados de séculos e séculos de história e de transmissão cultural e tudo isso entra, naturalmente, na Igreja. Daí uma oposição que em matéria política, por exemplo, se mostra claramente. Se diz: o Evangelho procede de Deus e, portanto, não pode mudar. A religião é criação humana, portanto, pode e deve mudar segundo a evolução da cultura, das condições de vida dos povos em geral. Se a religião fica apegada ao seu passado, ela é pouco a pouco abandonada a favor de outra religião mais adaptada. O que é muito compreensível.

O Evangelho é vivido na vida concreta, material, social. A religião vive em um mundo simbólico. Tudo é simbólico – doutrina, ritos, sacerdotes... –, todos são entidades simbólicas, que não entram na realidade material. O Evangelho é universal, porque não traz nenhuma cultura e não está associado a nenhuma cultura, a nenhuma religião. As religiões estão sempre associadas a uma cultura. Por exemplo, a religião católica atual está ligada à subcultura clerical romana que a modernidade marginalizou, que está em plena decadência porque seus membros não quiseram entrar na cultura moderna. O Evangelho é renúncia ao poder e a todos os poderes que existem na sociedade. A religião busca o poder e o apoio do poder em todas as formas de poder. E são tão visíveis!

O poder... Lembro que na época da prisão dos bispos em Riobamba o núncio dizia: “se a Igreja não tem o apoio dos governantes, não pode evangelizar” (risos). Pode-se pensar o contrário: que caso se tenha o apoio dos poderes será difícil evangelizar. Mas essa é uma mentalidade que ainda é remanescente na cristandade entre a Igreja fundida em uma realidade político-religiosa e então naturalmente estavam unidas todas as autoridades: o clero e o governo; o clero e o Exército – tudo unido. Renunciar a isso é muito difícil. Renunciar à associação com o poder é muito difícil. Vou dar um exemplo. Meu atual bispo na Bahia é um franciscano, se chama Luis Flavio Cappio. Ficou famoso no Brasil por duas greves de fome que fez para protestar contra um projeto faraônico do governo, baseado em uma imensa mentira. Não há tempo para contar toda a história, mas se tornou conhecido e foi convidado para o Kirchentag da Igreja alemã. Depois do convite falou em várias cidades da Alemanha. Um grupo se aproximou dizendo que vinham para entregar-lhe uma doação, uma ajuda para as suas obras. E era bastante: cerca de 100 mil dólares. Ele perguntou: “De onde vem esse dinheiro?” Disseram-lhe que são algumas empresas, alguns executivos que o recolheram. Então disse: “Não aceito. Não quero aceitar o dinheiro que foi roubado dos trabalhadores, dos compradores de material”. Não aceitou nenhuma aliança com o poder econômico. Eu não sei quantos no clero não aceitariam (aplausos). Esse bispo é um franciscano igual a São Francisco. Toda a sua vida foi assim. Por isso fui morar ali para santificar-me um pouquinho em contato com uma pessoa tão evangélica...

Então, como nasceu a Igreja? A Igreja de que se fala: essa realidade histórica, concreta de que temos experiência. Para o povo em geral a Igreja é o Papa, os bispos, os padres, as religiosas, religiosos... esse conjunto institucional de que se fala e que provoca também tanta incerteza, como vimos. Como nasceu a Igreja? Jesus não fundou nenhuma igreja. O próprio Jesus se considerava um judeu. Era o povo de Israel renovado e os primeiros discípulos também; Os doze apóstolos são os patriarcas da Igreja do Israel renovado. A primeira consciência era que a continuação de Israel, a perfeição, a correção de Israel. Mas uma vez que o Evangelho penetrou no mundo grego, aí Israel não significava muitas coisas para eles e então Paulo inventa outro nome. Dá às comunidades que funda nas cidades o nome de “ekklesia”, o que se traduziu por “igreja”. O que é a ekklesia? O único sentido que tem no grego é “a assembleia do povo reunido que governa a cidade”. Na prática eram as pessoas mais poderosas, mas enfim é que na cidade grega o povo se governa a si mesmo e o faz em reuniões que são “ecclesias”. Paulo não dá nenhum nome religioso às comunidades; os vê como um grupo destinado a ser a animação. A mensagem de transformação de todas as cidades, de tal maneira que estão constituindo o começo de uma humanidade nova. E é uma humanidade onde todos são iguais, todos governam a todos. Depois vem a Carta aos Efésios em que se fala da Igreja como tradução de “kahal” dos judeus, ou seja, é o novo Israel. E a ecclesia é aí também o novo Israel. Ou seja, todos os discípulos de Jesus unidos em muitas comunidades, mas não unidos institucionalmente, mas unidos pela mesma fé. Todos constituem a “ecclesia”, a grande Igreja que é o corpo de Cristo. Ainda não existem instituições.

Mas, naturalmente, não podia continuar assim. Os judeus que aceitaram o cristianismo não abandonaram todos o judaísmo. E quando o número de cristãos cresceu, o número de comunidades, ali começaram a penetrar algumas estruturas. No tempo de Paulo ainda não há presbíteros, mesmo que São Lucas diga o contrário. Mas São Lucas não tem nenhum valor histórico; isso todo o mundo já sabe. Atribui a Paulo o que se fazia em seu tempo. Então imagina que Paulo fundou presbíteros, conselhos presbiterais. Como se justificaria um bispo sem ordenar sacerdotes? Então, parece evidente um começo de separação ainda muito simples, porque ainda não há sacralidade, não há nada sagrado. Os presbíteros não são sagrados, assim como os presbíteros das sinagogas não eram sagrados. Eles tinham uma função, uma missão de governo, de administração, mas não uma função ritual, ou uma função de ensino de uma doutrina.

Depois apareceram os bispos. No final do século II se estima que o esquema episcopal esteja generalizado, mas demorou bastante. Clemente de Roma, quando publica e escreve sua Carta aos Coríntios, diz “presbíteros”, o que não é bispo. Ainda em Roma não há bispo, só presbíteros. Mas se organizou o esquema episcopal. É provável que para as lutas contra as heresias, contra o gnosticismo, se necessitasse de uma autoridade mais forte, para poder enfrentar o gnosticismo e todas as novas religiões sincréticas que aparecem naquele tempo.

E a Igreja como instituição universal, quando aparece? Houve, no século III, Concílios regionais: bispos de várias cidades que se reuniam. Mas uma entidade para institucionalizar tudo não existia. Quem inventou esta Igreja universal foi o imperador Constantino. Ele reuniu todos os bispos que havia no mundo com viagens pagas por ele, alimentação também paga por ele, e toda a organização do Concílio foi dirigida pelo imperador e os delegados do imperador. Isto constitui um precedente histórico. Até hoje não estamos livres disso: que a Igreja universal como instituição tenha nascido com o imperador.

Depois, na história ocidental caiu o imperador romano e então progressivamente o papa conseguiu chegar à função imperial. Houve muitas lutas na Idade Média entre o papa e o imperador, mas sempre o papa se estimava superior ao imperador. Nas cruzadas, o papa era generalíssimo de todos os exércitos cristãos. Era uma personalidade militar – comandante em chefe do exército cristão. E dentro da linha dos Estados pontifícios, isto ainda se mantém.

Quando o papa perdeu o poder temporal, reforçou seu poder sobre as Igrejas: e governa as igrejas como um imperador, ou seja, todos os poderes são centralizados em uma única mão e com todas as vantagens de uma corte. Por que se não há nada de democracia na Igreja, quem são aqueles que orientam o papa? A corte! Os cortesãos, os que estão ali próximos. Claro que ele não pode fazer tudo, mas enfim uma corte separada do povo cristão. Ainda estamos sofrendo as consequências daquilo. O Papa Paulo VI disse em alguns momentos que realmente teria que mudar a função atual do Papa, ou seja, o que o Papa faz. João Paulo II na “Unum sint” disse também que é preciso dar-se conta de que o grande obstáculo no mundo de hoje é essa concentração de todos os poderes no Papa. Seria preciso encontrar uma outra maneira de exercer isso. Isso para dizer que tudo isto pertence à religião.

Tarefa da teologia: no Evangelho e na religião

A partir disso, qual é a tarefa da teologia? É complexa, justamente porque tem uma tarefa no Evangelho e uma tarefa na religião. A teologia foi durante séculos a ideologia oficial da Igreja. Seu papel era justificar tudo o que a Igreja diz e faz com argumentos bíblicos, com argumentos da tradição, liturgia, e um monte de coisas que eu aprendi quando estava no seminário. Claro que não acreditava nisso (risos), mas a maioria ainda crê nisso. Então, o que acontece?

Primeira tarefa: o que diz o Evangelho?

Primeira tarefa: o que diz o Evangelho? O que é de Jesus? O que é penetração do judaísmo, de outra cultura, de outro tipo de religião? O que vem de Jesus segundo o Novo Testamento? Todo o Novo Testamento não vem de Jesus? Não, as Epístolas pastorais que falam, por exemplo, dos presbíteros, isso não vem de Jesus. Então, a tarefa da teologia consistirá em dizer o que é de Jesus, o que realmente quis, o que realmente fez e em que consiste realmente o seguimento de Jesus.

Vendo a história, quais foram as manifestações, onde, em formas diferentes – porque as situações culturais eram diferente –, onde podemos reconhecer a continuidade dessa linha Evangélica? Porque se quisermos penetrar no mundo de hoje e apresentar o cristianismo ao mundo de hoje, tudo o que é religioso não interessa. O que pode interessar é justamente o Evangelho e o testemunho evangélico. Ninguém vai se converter pela teologia. Você pode fazer todas as melhores aulas, ninguém vai se fazer cristão por causa da teologia. Por isso, me pergunto: por que nos seminários se crê que a formação sacerdotal é ensinar a teologia? Eu não entendo, não entendo. Não há outra coisa necessária para evangelizar? Não é muito mais complexo? Por isso faz 30 anos que decidi, na presença de Deus, nunca mais trabalhar em seminários (risos).

Então, a linha evangélica é essa – São Francisco. São Francisco era um extremista. Não queria que seus irmãos tivessem livros: nada de livros. Com o Evangelho basta, não se necessita nada mais. Ele próprio dizia: “Eu, o que ensino, não aprendi de ninguém, nem do papa; o aprendi de Jesus diretamente, por seu Evangelho”. Bom, isso é o que pode convencer o mundo de hoje que está em uma perturbação completa e que se afasta sempre mais das Igrejas institucionais antigas, tradicionais. Quase todas as grandes religiões nasceram entre os anos 1.000 e 500 antes de Cristo, salvo o Islã que apareceu depois, mas que é um ramo da tradição judeu-cristã.

O que fazer com a religião?

Segundo, a religião. O que fazer com a religião? É preciso examinar em todo o sistema de religião, o que ajuda, o que realmente ajuda a entender, a compreender, a agir segundo o Evangelho. Isso terá nascido por inspiração do Espírito em monges, por exemplo? Se você olha a vida dos monges do deserto no Egito, isso não é uma mensagem. Não é uma mensagem e também não vem do Evangelho. Ou seja, muitas coisas vêm não se sabe de que tradição, talvez pode ter sido do budismo ou outras coisas assim. Então, examinar o que é o que ainda vale hoje, e sinceramente.

Jesus não instituiu 7 sacramentos. Até o século XII se discutia se eram 10, 7, 5, 9, 4. Não havia acordo. Finalmente, decidiram que havia 7. Bom, por motivos dos 7 dias do Gênesis, 7 planetas, o número 7... mas há coisas que visivelmente já não falam para as pessoas de hoje. Por exemplo, o sacramento da penitência com confissão a um sacerdote. Quantos se confessam atualmente? Há 20 anos, eu atendia na Semana Santa, em uma paróquia popular, 2.000 confissões, e o pároco outras tantas. Atualmente, 20, 30, ou seja, as pessoas já não respondem mais. Isso foi definido no século XII, XIII. Por que manter algo que já não tem nenhum significado e, ao contrário, provoca muita recusa? Ou seja, que alguém necessite falar com alguém, que o pecador goste de falar com alguém, mas não justamente ao sacerdote. Há muitas pessoas, muitas mulheres, que podem exercer esse ofício muito melhor, com mais equilíbrio, sem atemorizar como fazem os sacerdotes. Isso é uma coisa.

Mas há um monte de coisas que é necessário revisar porque não tem futuro. É inútil querer defender ou manter algo que já é obstáculo para a evangelização e que não ajuda absolutamente em nada. Nas liturgias há muitas coisas que mudar. A teoria do sacrifício foi introduzida pelos judeus, naturalmente. No templo se oferece sacrifícios, os sacerdotes são pessoas sagradas que oferecem o sacrifício. Toda essa teoria, atualmente não significa absolutamente nada. Que o padre seja dedicado ao sagrado para oferecer o sacrifício e que a Eucaristia seja um sacrifício, tudo isto vem de Jesus? Ah, não vem de Jesus. Então, é preciso ver se isso vale ou não vale. Para que manter algo que não vale?

E depois há também a outra parte: o que não ajuda, o que tem sido infiltração de outras tendências, outras correntes. Por exemplo, a vida ascética dos monges irlandeses. A Irlanda foi a ilha dos monges. Ali os bispos não tinham autoridade. Serviam apenas para ordenar sacerdotes, mas para as outras coisas podiam descansar. Quem mandava eram os monges. Os mosteiros eram os centros, o que é a diocese atualmente. Esses monges irlandeses viviam uma vida ascética, mas tão extraordinariamente desumana para nós que isso é impossível que venha de Jesus, é impossível que isso ajude, porque esses homens ali eram super-homens, mas não existem mais homens assim hoje. Um exercício de penitência que faziam, por exemplo, era entrar no rio – na Irlanda os rios são frios – e ficar nu para rezar todos os salmos (risos)... Essa maneira de entender a vida, não, não devemos considerar que isso seja cristão. Também não é marca de santidade. Não é assim que a santidade se manifesta. Examinar tudo o que vem de lá.

Todas as congregações femininas sabem o quanto é preciso lutar para mudar costumes, tradições que não são evangélicos. Quantos debates! Eu conheço uma série de congregações femininas e quanto tempo se gasta em discussões, disputas entre aquelas que querem conservar tudo e aquelas que querem abandonar o que não serve mais e encontrar outro modo de viver mais adaptado à situação atual! Então, a tarefa da teologia, claro que é mudar, isso muda a tradição, deixa de ser a ideologia de todo o sistema romano, mas essa não tem futuro. Esse tipo de teologia já faz tempo que foi progressivamente abandonado.

Na América Latina apareceu algo. Conhecemos um novo franciscanismo, ou seja, uma nova etapa, mas radical, de vida evangélica. Quando nasceu? Falei dos bispos que participaram disso e que animaram Medellín e da opção pelos pobres, dos santos padres da América Latina. E vocês os conhecem. Se for preciso marcar a origem do novo evangelismo da Igreja latino-americana, eu diria – não se esqueçam – dia 16 de novembro de 1965. Nesse dia, em uma catacumba de Roma, 40 bispos, a maioria latino-americanos, incitados por Helder Câmara, se juntaram e assinaram o que se chamou de “Pacto das Catacumbas”. Ali se comprometeram a viver pobres, na alimentação. Se comprometeram e, de fato o fizeram depois, uma vez que chegaram às suas dioceses. E depois, priorizar em todas as suas atividades o que é dos pobres, ou seja, deixando muitas coisas para se dedicar prioritariamente aos pobres e uma série de coisas que vão no mesmo sentido. Foram eles que animaram a Conferência de Medellín. Ou seja, nasceu aqui.

E tiveram um contexto favorável. O Espírito Santo já naquele tempo havia suscitado uma série de pessoas evangélicas. As Comunidades Eclesiais de Base já tinham nascido. Já havia religiosas inseridas nas comunidades populares. Mas, eram poucos e se sentiam um pouco marginalizados no meio dos outros. Medellín lhes deu como que legitimidade e ao mesmo tempo uma animação muito grande, e se expandiu. Foi toda a Igreja latino-americana? Claro que não. Sempre é uma minoria. Um dia, me lembro, um jornalista perguntou ao cardeal Arns – um santo, com quem vivemos muito boas relações de amizade: “você, senhor cardeal, aqui em São Paulo tem muita sorte, toda a Igreja se fez Igreja dos pobres, as monjas todas a serviço dos pobres, que coisa magnífica!”. Aí, Dom Paulo disse: “Sim, pois, aqui em São Paulo 20% das religiosas foram às comunidades pobres; 80% ficaram com os ricos”. Era muito. Atualmente, não há 20%.

Isto foi uma época de criação, uma dessas épocas em que há, às vezes, na história com uma efusão muito grande do Espírito. Mas temos que viver essa herança. É uma herança que é preciso manter, conservar preciosamente porque isso não vai reaparecer. Às vezes me perguntam: Por que hoje os bispos não são como naquele tempo? Porque aquele tempo foi uma exceção, ou seja, na história da Igreja é exceção. De vez em quando o Espírito Santo manda exceções.

E quem vai evangelizar o mundo de hoje? Para mim, são os leigos. E já aparecem muitos grupinhos de jovens que justamente praticam uma vida muito mais pobre, livre de toda organização exterior, vivendo em contato permanente com o mundo dos pobres. Já existem. Haveria mais se se falasse mais, se fossem mais conhecidos. Pode ser uma tarefa também auxiliar da teologia: divulgar o que está realmente acontecendo, onde o Evangelho está sendo vivido neste momento, para dá-lo a conhecer, para que se conheçam mutuamente, porque do contrário podem perder ânimo ou não ter muitas perspectivas. Uma vez que se unam, formem associações, cada qual com sua tendência, seu modo de espiritualidade. Não espero muito do clero. Então é uma situação histórica nova.

Mas acontece que os leigos deixaram de ser analfabetos; isso já faz tempo. Eles têm uma formação humana, uma formação cultural, uma formação de sua personalidade que é muito superior ao que se ensina nos seminários. Ou seja, têm mais preparação para agir no mundo, mesmo que não tenham muita teologia. Se poderia dar mais teologia, mas isso é outro assunto. Agora, não vamos pensar que amanhã quem vai colocar em prática o programa de Aparecida serão os sacerdotes. Eu não conheço tudo, mas levando em conta os seminários que eu conheço, as dioceses que eu conheço, seriam necessários 30 anos para formar um clero novo. E quem vai formá-lo? Para os leigos é diferente. Há muitíssimas pessoas dispostas, e pessoas com formação humana, com capacidade de pensar, de refletir, de entrar em relação e contatos, de dirigir grupos, comunidades... Mas muitos ainda não se atrevem, não se atrevem. Mas aí está o futuro.

Para terminar, uma anedota: me chamaram para ir a Fortaleza, no nordeste do Brasil. Atualmente, Fortaleza é uma cidade muito grande – um milhão de habitantes. A Santa Sé havia afastado, marginalizado o cardeal Aloísio Lorscheider, mandando-o ao exílio em Aparecida, que é um lugar de castigo para os bispos que não agradam. Então, veio um sucessor, Dom Cláudio Hummes, que agora é cardeal em Roma. Cláudio Hummes suprimiu tudo o que havia de social na diocese, despediu todos: 300 pessoas com a longa trajetória de serviço, com capacidade humana. Um dia me chamaram: eram 300, chorando, lamentando: “e agora não podemos fazer nada. E agora, o que vai acontecer?”. Eu lhes disse: “mas, vocês são pessoas perfeitamente humanizadas, desenvolvidas, com uma personalidade forte. Tiveram êxito em sua família, tiveram êxito em suas carreiras, em seus trabalhos profissionais. Do que agora se preocupam se o bispo quer ou não quer? Por que se preocupam se o pároco quer ou não quer? Vocês têm formação suficiente e a capacidade. Por que não agem, não formam uma associação, um grupo, de forma independente? Porque o Direito Canônico – o que muitos católicos não sabem – permite a formação de associações independentes do bispo, independentes do pároco. Isso não se ensina muito nas paróquias, mas é justamente algo que é importante. Então, vocês podem muito bem reunir 4, 5 pessoas para organizar um sistema de comunicação, um sistema de espiritualidade, um sistema de organização de presença na vida pública, na vida política, na vida social: 300 pessoas com esse valor. Se paga, tem que pagar a 5, cada um vai gastar nem sequer 2% do que ganha, ou seja, podem muito bem manter 5 pessoas dedicadas a isso. E vão escolhê-los entre 25 e 30 anos porque essa é a época criativa. Até os 25 o ser humano se busca. A partir deste momento termina seus estudos e já conseguiu um trabalho. Então já quer definir sua vida: estes são os que têm capacidade de inventar. Todas as grandes invenções se deram por gente com essa idade”. Mas não o fizeram. Por quê? O que acontece? Por que tanta timidez? “Vocês que são tão capazes no mundo, na Igreja nada!” Não se sentiam capazes, necessitavam do bispo que lhes dissesse o que fazer, necessitam de sacerdotes que lhes digam o que fazer. Como é possível? Certamente, não se lhes ensinou. Podem ser adultos na vida civil e crianças na vida religiosa.

Mas nós podemos! Nós podemos fazê-lo e multiplicá-lo em todas as regiões que vamos conhecer. Então, o futuro depende de grupos de leigos semelhantes, que já existem mesmo que ainda estejam muito dispersos. O futuro está aí, é tarefa de todos, começando pelos jovens. No Brasil há neste momento seis milhões de estudantes universitários. Dois milhões, são de famílias pobres – são pobres os que ganham menos de três salários mínimos, porque com menos disso não se pode viver decentemente. Dois milhões. E qual é a presença do clero? Pouquíssima. Alguns religiosos. Das dioceses? Nada. E ali está o futuro. São jovens que estão descobrindo o mundo. Claro, há alguns que entram no mundo das drogas, que se corrompem, mas é uma minoria. Ou seja, o conjunto são pessoas que querem fazer algo na vida. Se não conhecem o Evangelho não vão viver como cristãos. É preciso explicar, mas não explicar com cursos de teologia, mas explicar fazendo, participando de atividades que de fato são realmente serviços aos pobres. Isso é possível fazer.

Tarefa da teologia. Então será preciso mudar um pouquinho: menos acadêmico, mais orientado para o mundo exterior... com todos os que não estão mais na rede de influxo da Igreja, que não recebem. Mas, presença nisso. E uma teologia que se possa ler, sem ter formação escolástica, porque anteriormente se não se tinha formação aristotélica não se podia entender nada dessa teologia tradicional. Bom, a filosofia aristotélica morreu, ou seja, os filósofos do século XX a enterraram. Agora temos liberdade para ver no mundo como nos abrimos.

Obrigado pela atenção de vocês!" (aplausos).

Palestra proferida na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), de San Salvador, em 18 de março de 2010.