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sábado, 28 de abril de 2012

A Inquisição de hoje e as religiosas norte-americanas



27.04.12 - EUA
Ivone Gebara
Escritora, filósofa e teóloga

Adital

Mais uma vez assistimos estarrecidas "a avaliação doutrinal” ou a chamada de atenção ou a punição dirigida pela Congregação da Doutrina da fé para quem, segundo ela, foge da observância à correta doutrina católica. Só que agora não apontaram o dedo acusador para uma pessoa, mas para uma instituição que congrega e representa mais de 55.000 religiosas norte-americanas. Trata-se da Conferencia Nacional das Religiosas conhecida pela sigla LRWC – Conferência da Liderança Religiosa Feminina. Estas religiosas ao longo de sua história desenvolveram e ainda desenvolvem uma missão educativa ampla em favor da dignidade de muitas pessoas e grupos dentro e fora dos Estados Unidos.
A maioria dessas mulheres pertencentes a diferentes congregações nacionais e internacionais além de sua formação humanista cristã são intelectuais e profissionais nas várias áreas do conhecimento. São escritoras, filósofas, biólogas, sociólogas, advogadas, teólogas e têm um vasto currículo e reconhecida competência nacional e internacional. São igualmente educadoras, catequistas e ativistas em direitos humanos. Em muitas situações foram capazes de expor sua vida em favor de injustiçados ou se opor a comportamentos graves assumidos pelo governo norte-americano. Tive a honra de conhecer algumas delas que foram presas porque se colocaram na linha de frente das manifestações para o fechamento da Escola das Américas, instituição do governo norte-americano que prepara militares para atuarem em nossos países de forma repressiva e cruel. Estas religiosas são mulheres de reflexão e ação com uma longa história de serviços não apenas em seu país, mas em muitos outros. Hoje estão sob suspeita e sob tutela do Vaticano. São criticadas por discordar dos bispos considerados "os autênticos mestres da fé e da moral”.E mais, são acusadas de serem partidárias de um feminismo radical, de desvios em relação à doutrina católica romana, de cumplicidade na aprovação das uniões homossexuais e outras acusações que chegam a nos espantar dado o seu anacronismo. O que seria um feminismo radical? Quais seriam suas manifestações reais na vida das congregações religiosas femininas? Que desvios teológicos estariam as religiosas vivendo? Estaríamos nós mulheres sendo vigiadas e punidas por não conseguirmos mais ser fiéis a nós mesmas e à tradição do Evangelho por intermédio de uma cega sujeição à ordem hierárquica masculina? Estariam os responsáveis das Congregações vaticanas alheios à grande revolução mundial feminista que tocou todos os continentes e inclusive as congregações religiosas?
Muitas mulheres religiosas nos Estados Unidos e em outros países são de fato herdeiras, mestras e discípulas de uma das mais interessantes expressões do feminismo mundial, sobretudo do feminismo teológico que se desenvolveu nos Estados Unidos a partir do final da década de 1960. Suas idéias originais, críticas e posturas libertárias permitiram uma nova leitura teológica que por sua vez pode acompanhar os movimentos de emancipação das mulheres. Dessa forma puderam contribuir para repensar nossa tradição religiosa cristã para além da invisibilização e opressão das mulheres. Criaram igualmente espaços alternativos de formação, textos teológicos e celebrativos para que a tradição do Movimento de Jesus continuasse a nutrir nosso presente e não fosse abandonada por milhares de pessoas cansadas com o peso das normas e das estruturas religiosas patriarcais.
Que atitudes tomar diante desse anacronismo e violência simbólica das instâncias curiais e administrativas da Igreja Católica Romana? Que pensar de seu referencial filosófico rígido que assimila o melhor do ser humano ao masculino? Que dizer de sua visão antropológica unilateral e misógena a partir da qual interpretam a tradição de Jesus? Que pensar desse tratamento administrativo/punitivo a partir do qual se nomeia um arcebispo para rever, orientar e aprovar decisões tomadas pela Conferência de Religiosas como se fôssemos incapazes de discernimento e lucidez? Seríamos acaso uma empresa capitalista multinacional em que nossos "produtos” deveriam obedecer aos ditames de uma linha de produção única? E para mantê-la devemos ser controladas como autômatos pelos que se consideram os donos e guardiões da instituição? Onde fica a liberdade, a caridade, a criatividade histórica, o amor sororal e fraternal?
Ao mesmo tempo em que a indignação toma conta de nós, um sentimento de fidelidade à nossa dignidade de mulheres e ao Evangelho anunciado aos pobres e marginalizados nos convida a reagir a mais esse ato de repugnante injustiça.
Não é de hoje que os prelados e funcionários da Igreja agem com dois pesos e duas medidas. Por um lado as altas instâncias da Igreja Católica Romana foram capazes de acolher de novo para seu seio os grupos de extrema direita cuja história nociva, sobretudo a jovens e crianças é amplamente conhecida. Penso especialmente nos Legionários de Cristo de Marcial Maciel (México) ou nos religiosos de Monsenhor Lefevre (Suíça) cuja desobediência ao papa e os métodos coercitivos de fazer discípulos é testemunhada por muitos. Essa mesma Igreja institucional acolhe os homens que lhes interessa por seu poder e repudia as mulheres que deseja manter submissas. Com sua atitude as expõem a críticas ridículas veiculadas até por mídias religiosas católicas de má fé. Dessas mulheres os prelados parecem reconhecer formalmente algum mérito quando suas ações se referem àquelas tradicionalmente exercidas pelas religiosas nas escolas e nos hospitais. Mas somos apenas isso? Sabemos bem que em nenhum momento nos Estados Unidos se levantou a menor hipótese de que essas religiosas teriam violentado jovens, crianças e anciãos. Nenhuma denúncia pública maculou sua imagem. Delas não se falou que se aliaram a grandes bancos internacionais em benefício próprio. Nenhuma denúncia de tráfico de influencias, de troca de favores para guardar o silencio da impunidade. E mesmo assim nenhuma delas foi canonizada e nem beatificada pelas autoridades eclesiásticas como o fizeram em relação a homens de poder. O reconhecimento dessas mulheres vem das muitas comunidades e grupos cristãos ou não, que partilharam a vida e os trabalhos com muitas delas. E estes grupos com certeza não se calarão diante dessa "avaliação doutrinal” injusta que também os toca diretamente.
Plagiando Jesus no seu Evangelho ouso dizer: "Tenho pena desses homens” que não conhecem as contradições e as belezas da vida de perto, que não deixam seu coração vibrar às claras com as alegrias e os sofrimentos das pessoas, que não amam o tempo presente, que ainda preferem a lei estrita à festa da vida. Apenas aprenderam as regras fechadas de uma doutrina fechada numa racionalidade já ultrapassada e a partir dela julgam a fé alheia e especialmente as mulheres. Pensam talvez que Deus aprova e se submete a eles e às suas elucubrações tão distantes dos que têm fome de pão e de justiça, dos famintos, dos abandonados, das prostituídas, das violentadas e esquecidas. Até quando teremos que sofrer sob seu jugo? Que posturas nos inspirará o "Espírito que sopra onde quer” para continuarmos fiéis à VIDA em nós?
Às queridas irmãs norte-americanas da LWRC meu agradecimento, carinho e solidariedade. Se vocês estão sendo perseguidas pelo bem que fazem provavelmente seu trabalho produzirá abundantes e bons frutos. Saibam que com vocês mulheres religiosas de outros continentes não permitiremos que calem nossa voz. Mas, se calarem por um decreto de papel, nós faremos dele uma razão a mais para seguirmos lutando pela dignidade humana e pela liberdade que nos constitui. Seguiremos de muitas maneiras anunciando o amor ao próximo como a chave da comunhão humana e cósmica presente na tradição de Jesus de Nazaré e em muitas outras, embora de formas diferentes. Continuaremos juntas a tecer para o nosso momento histórico mais um pedaço da vasta história da afirmação da liberdade, do direito de ser diferente e de pensar diferente e tudo isso tentando não ter medo de ser feliz.

Abril 2012.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Igreja: de regente a terceiro violino


Sábado, 21 de abril de 2012 Entrevista especial com Sérgio
Coutinho

“Enquanto cada vez mais a sociedade trabalha para encontrar formas mais participativas, inclusive propondo o debate por um Estado mais democrático, a Igreja deu pouquíssimos passos na direção de uma verdadeira sinodalidade”, constata o historiador.
Confira a entrevista.
Este ano eleitoral deve ser o pano de fundo para a Igreja lançar novos debates acerca do Estado e da sua função social a fim de “estimular os movimentos sociais a continuarem nas lutas reivindicativas por políticas públicas que possam atender verdadeiramente aos interesses da sociedade como um todo”, declara Sérgio Coutinho à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina analisa os rumos e os desafios da Igreja no Brasil e é enfático: "ela quer contribuir para um debate mais profundo sobre o papel do Estado democrático, mas internamente nunca se viu tanto ‘verticalismo’ e controle da ‘opinião pública’ na Igreja, de modo especial do laicato mais crítico”.
Para Coutinho, a Cristandade, que ainda “permeia mentes e corações”, está com os dias contados. E para que possa fomentar um diálogo maduro, enfatiza, a Igreja precisa “reconhecer que ela não possui mais ‘poderio territorial’ (e isso já faz tempo desde as campanhas de Garibaldi e do Tratado de Latrão em 1929) e ‘poderio espiritual’ da época da Cristandade. É como aquela metáfora: ‘Durante pelo menos 10 séculos a Igreja foi a regente de uma grande orquestra. Agora ela é chamada a ser o ‘terceiro violino’ dessa mesma orquestra’”.
Sérgio Ricardo Coutinho dos Santos (foto) é mestre em História pela Universidade de Brasília - UnB e doutorando na mesma área pela UFG. É professor do curso de pós-graduação lato-senso em História do Cristianismo Antigo da UnB e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina - CEHILA-Brasil. Segundo o Diretório da Liturgia e da organização da Igreja no Brasil, 2012, ele é assessor nacional da Comissão Episcopal para o Laicato - CEBs.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O ano de 2012 começou com uma novidade para a Igreja do Brasil: a indicação de Dom João Braz de Aviz ao cardinalato. O que essa nomeação indica em termos de conjuntura eclesial, tanto no Brasil como na Cúria?
Sérgio Coutinho - Este último Consistório revelou bem que a Cúria em nada é “católica”, ou seja, “universal”. O que assistimos foi uma chuva de nomeações de novos cardeais europeus e, principalmente, italianos, sendo que muitos deles são ainda membros da própria Cúria Romana. No momento em que é noticiado, pela imprensa, o cotidiano das intrigas curiais (conhecido por "Vatileaks"), o Papa Bento XVI não teve a força política necessária para “esvaziar” o poder dos chefes dos diversos dicastérios e que, em certo sentido, são eles mesmos os que tramam em segredo (agora não mais, depois do vazamento dos documentos) por sua saída e, até mesmo, por sua morte (!).
Por outro lado, não deixa de ser interessante, nesse contexto, as declarações de D. João Avis após o Consistório, em que foi bastante firme, e até surpreendente, pois fez críticas quanto ao perfil por demais eurocêntrico da Igreja.
Além disso, a nomeação de D. João Braz Avis também revela uma tendência eclesial, já sentida desde o pontificado de João Paulo II: a força dos movimentos e das novas comunidades. Dom João nada entende de “Vida Religiosa consagrada” (dicastério do qual é reponsável), mas é membro do Focolares. Isso nos indica que o Vaticano deseja mesmo é valorizar as “novas formas” de vida religiosa consagrada e, nesse sentido, um membro desses movimentos dentro da cúria romana, e ainda mais como cardeal, terá um peso inegável no próximo conclave.
IHU On-Line - Com a nomeação de D. Aviz, como o senhor analisa a composição do Colégio dos Cardeais “brasileiro”? Como essa nova composição pode influenciar a vida da Igreja no Brasil?
Sérgio Coutinho - A nomeação de D. João Braz de Avis não significa nada em termos de valorização da importância da Igreja e do catolicismo no Brasil e América Latina, no contexto mais amplo da Igreja Católica. Como membro da Cúria, não podia deixar de ser nomeado cardeal. Alguém poderia dizer que o que o papa está fazendo não é nada mais do que respeitar as orientações de não nomear novos cardeais para algumas das principais arquidioceses onde ainda estão vivos seus cardeais eméritos. Mas o certo mesmo é que o Brasil ficará sem novos cardeais ainda por um tempo – a não ser que vá alguém trabalhar na Cúria.

IHU On-Line - Outra novidade recente é que D. Lorenzo Baldisseri, núncio apostólico no Brasil, foi recentemente nomeado novo secretário da Congregação para os Bispos. Seu substituto já foi anunciado. Qual a importância desse cargo na atual conjuntura da Igreja brasileira?
Sérgio Coutinho - Para o caso da Igreja brasileira, não podemos nos esquecer do trabalho importante de D. Armando Lombardi na colaboração e indicação do episcopado brasileiro no período imediatamente anterior e posterior ao Concílio Ecumênico Vaticano II. O resultado foi uma geração de bispos excepcional e que levará muitos anos para se repetir algo semelhante. Um quadro episcopal que levou a cabo as intuições e determinações desse Concílio, fazendo da Igreja do Brasil uma das que mais criativamente trabalhou na sua recepção, sendo inclusive vista por Roma como uma Igreja “rebelde” em muitas vezes.
Dom Baldisseri, seguindo seus sucessores e a política eclesial de “concentração católica” (Danielle Hervieu-Leger) iniciada pelo Papa João Paulo II, e aprofundada por Bento XVI, procurou escolher candidatos não tanto por sua formação teológica, mas por sua fidelidade ao projeto de fortalecer a “identidade católica” diante de uma sociedade cada vez mais secularizada e relativizada. Na verdade, esse perfil foi mais procurado para aqueles que pudessem ocupar as arquidioceses brasileiras, nas grandes e médias cidades onde estão as maiores concentrações populacionais e nas quais o processo de destradicionalização é acelerado. Paradoxalmente foram nomeados arcebispos mais preocupados com as questões morais do que propriamente questões pastorais (o grande desafio de evangelizar as cidades) e que pudessem ser vozes “proféticas”, denunciando os “males” do mundo (pós) moderno.
Peso político eclesiástico
Por outro lado, para as grandes dioceses, no sentido territorial da palavra, e de baixa densidade demográfica, foram nomeados, em um número razoável, bispos mais pastoralistas, com “baixa escolaridade” e preocupados com a falta de políticas sociais para aquelas populações. Diríamos, os bispos com forte sensibilidade pela causa dos pobres. No fim, o que temos mesmo é um episcopado muito preocupado com as questões burocrático-econômicas e com os temas da moral católica.
No entanto, no geral, os arcebispos acabam sempre por ter um peso político eclesiástico grande no conjunto do episcopado, mas muitas vezes assistimos a articulações e posições que nem sempre são previstas pelo Núncio, como foram as duas últimas eleições da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
Tenho esperança que o novo Núncio, o jovem D. Giovanni D’Aniello (57 anos!), possa contribuir para que tenhamos um quadro novo no perfil do episcopado brasileiro. Sua experiência diplomática se concentra principalmente em regiões em que os católicos são minoria e perseguidos; por outro lado, lugares onde a pobreza desumaniza o projeto de Deus (Burundi, Tailândia, Líbano, Congo e Camboja). Espero que o convívio com tal realidade traga, para a Igreja no Brasil, verdadeiros pastores comprometidos com a causa do Reino.

IHU On-Line - 2012 também será o grande ano de preparação para a Jornada Mundial da Juventude - JMJ, no Rio de Janeiro, com a presença do papa, em julho de 2013. O que espera desse encontro? Por outro lado, como analisa os primeiros passos da organização?

Sérgio Coutinho - Do ponto de vista da organização, parece que as coisas vão indo dentro do cronograma estipulado. Como também vemos uma boa participação da juventude católica na recepção da Cruz e do Ícone. No entanto, ainda não conseguimos visualizar os resultados propriamente pastorais ou de evangelização de todo esse processo. Não se vê (ou se viu) nada que enfrentasse de forma aberta e corajosa os grandes desafios da juventude atualmente: desemprego, violência, exploração... nada se fala sobre a falta de políticas públicas voltadas para a juventude. Alguns dizem que a Campanha da Fraternidade de 2013 provocará essas questões. Espero que sim.
Mas o que podemos concluir já de imediato com a preparação desse evento é aquela mesma impressão que tenho da escolha de D. João Aviz: a presença majoritária, e até dominante, nos encaminhamentos da JMJ dos movimentos e novas comunidades, em detrimento dos grupos das Pastorais da Juventude (Pastoral da Juventude, Pastoral da Juventude Rural, Pastoral da Juventude Estudantil e Pastoral da Juventude do Meio Popular). A questão é se queremos uma pastoral de massa, de eventos, ou uma pastoral verdadeiramente evangelizadora. Vamos acompanhar melhor os próximos passos.

IHU On-Line - Além disso, 2012 será um ano de duas grandes celebrações: os 50 anos da inauguração do Concílio Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro Teologia da Libertação. Perspectivas, de Gustavo Gutiérrez. Começando pelo Concílio, no contexto brasileiro, o que é necessário retomar com mais força depois desses 50 anos dos debates conciliares e o que ficou “esquecido”? Por outro lado, onde é preciso “reatualizar” o Concílio para o momento atual da Igreja no Brasil?
Sérgio Coutinho - Parece-me que uma temática conciliar que necessitaria aprofundar é o da “horizontalidade” na Igreja.
Já o Sínodo de 1985 compreendeu essa questão na forma do conceito de “comunhão”. Porém, o problema é como entender este termo. Lembro-me da comparação feita por João Batista Libanio numa palestra que assisti: “Se eu trago para vocês aqui um bolo, parto em vários pedaços e distribuo para todos... vocês estarão em comunhão comigo, não é!? Mas, por outro lado, se digo para vocês assim: ‘Vamos fazer um bolo!? Quem vai trazer a farinha? Quem vai trazer os ovos? Quem vai amassar a massa?...’ Depois de preparado, colocamos no forno e depois de pronto, todos nós comemos juntos. Pois bem, a primeira forma é o que chamamos de ‘comunhão hierárquica’ e o segundo jeito é o que chamamos de ‘comunhão e participação’”.
“Comunhão e participação” foi a compreensão dos bispos nas conferências de Medellín e Puebla da eclesiologia conciliar de “povo de Deus”. Foi também a compreensão dos bispos da CNBB no momento de recepção do Concílio. Foi por isso mesmo que, aqui, desenvolvemos e aprofundamos uma série de instâncias participativas, mesmo em contextos políticos de pouquíssima ou nenhuma participação democrática. Assembleias gerais do episcopado, assembleias diocesanas, paroquiais, comunitárias, assembleias dos organismos, conselhos pastorais diversos, equipes de liturgia, ministérios laicais. Enfim, uma série de práticas que favoreciam a participação e a “opinião pública” dentro da Igreja.
Obediência às rubricas
O que assistimos nos últimos 25 anos foi um processo cada vez mais exacerbado de “clericalização”, ou de “verticalização” na Igreja. O estudo de Direito Canônico passou a ser o carro chefe da formação dos futuros presbitérios, mesmo os de Institutos Religiosos. Isso significa que se vêm enfatizando muito mais a obediência às rubricas e normas eclesiásticas do que propriamente na construção de caminhos de evangelização. Conselhos paroquiais cada vez mais centralizados e cumprindo papel meramente figurativo, marcadamente consultivo. Quando for deliberativo, cumpre a função dos membros apenas apertar a tecla de “confirmar” o que pensa o padre.
Desse modo, os institutos de formação presbiteral insistem numa formação para o exercício do culto e para o exercício do poder administrativo-burocrático-canônico, em detrimento do evangelizador-pastoral. É como um padre diocesano, vestido de batina preta, de uma cidade de periferia do Distrito Federal (que por sinal foi ex-aluno meu!) me disse certa vez quando fui conhecer sua comunidade paroquial: “Padre, como estão as coisas aqui?”, respondeu ele de forma muito reveladora: “Estão ótimas! Aqui eu sou o Papa! É melhor ser padre do que bispo, porque aqui todos me respeitam e o bispo nem sempre é respeitado.”
O que temos são jovens presbíteros com forte formação estético-disciplinar e pouco ético-pastoral. E é justamente neste nó que passam os conflitos com o laicato, cada vez mais desejoso de participar da vida eclesial, e das muitas propostas pastorais diocesanas, e até das iniciativas da CNBB, que ficam emperradas por “pequenos príncipes” mais parecidos com o de Nicolau Maquiavel do que de Saint-Exupéry.
Outro sinal evidente desse sintoma é o esvaziamento das Assembleias dos Organismos do Povo de Deus, sem contar com a quase nenhuma participação do laicato nas Assembleias Gerais da CNBB.
Parece que enquanto a sociedade cada vez mais trabalha para encontrar formas mais participativas, inclusive propondo o debate por um Estado mais democrático, a Igreja deu pouquíssimos passos na direção de uma verdadeira sinodalidade.

IHU On-Line - Com relação à Teologia da Libertação - TdL, o Brasil desponta como um dos seus principais “polos produtores” de reflexão e publicações, com grandes teólogos relevantes nesse debate. Como o senhor vê o papel da TdL no contexto eclesial brasileiro contemporâneo? O discurso está defasado, ainda pensando com categorias sociopolíticas do contexto das ditaduras? Ou há novas perspectivas sendo desbravadas?

Sérgio Coutinho -
Independentemente do contexto histórico latino-americano geral e brasileiro, em particular, a TdL centra toda a sua energia reflexiva e, principalmente, prática em dois polos: os pobres e o Reinado de Deus.
Os pobres são o “lugar teológico”. Onde houver pobres, onde houver seres humanos que não tenham “vida e vida em abundância”, Deus estará se revelando, colocando-se ao lado deles por meio de homens e mulheres que denunciarão o “pecado social” que ainda teima em ceifar a vida de muitos dos “pequeninos”.
O Reino e os pobres
Nesse sentido, a TdL ainda tem muito a contribuir não só num “discurso sobre Deus”, mas principalmente sensibilizando os cristãos para dar testemunho daquilo pelo qual Jesus deu sua vida: o Reinado de Deus.
Há uma relação direta entre o Reino e os pobres, pois é deles que pertence “o governo soberano de Deus”. O Reinado de Deus é um reinado de justiça, misericórdia, paz e de vida plena. Este foi o sonho de Jesus e deve ser o sonho de todos e todas que se dizem seus discípulos (as): lutar para a construção de uma sociedade justa e fraterna, no campo e na cidade, e, de modo especial, para os pobres.

IHU On-Line - Tendo em vista o panorama político, econômico e social que desponta para o Brasil em 2012, quais serão, em sua opinião, as grandes questões que a Igreja deveria abordar neste próximo ano?
Sérgio Coutinho - Sem dúvida nenhuma que a grande questão em que a Igreja poderá contribuir muito está expressa na temática da 5ª Semana Social Brasileira: “Um novo Estado, caminho para uma nova sociedade do bem viver”.
A Igreja quer dar sua contribuição neste ano eleitoral para discutir “Estado para que e para quem?”. O que temos é um Estado a serviço do capitalismo e dos grupos de pressão vinculados às grandes organizações monopolistas. Nesse sentido, a Igreja pretende estimular os movimentos sociais a continuarem nas lutas reivindicativas por políticas públicas que possam atender verdadeiramente aos interesses da sociedade como um todo: educação e saúde de qualidade, valorização do pequeno agricultor, por uma reforma agrária e por uma distribuição de renda mais justa entre outras mais.

IHU On-Line - Em diversos âmbitos, veem-se obstáculos para uma interlocução fecunda da Igreja com a cultura e a sociedade brasileiras contemporâneas. O que se vê são embates ou censuras. Como fomentar um diálogo inter-religioso e intercultural mais maduro no Brasil?
Sérgio Coutinho - De fato, é contraditória a posição da Igreja em muitos momentos. Como disse acima, ela quer contribuir para um debate mais profundo sobre o papel do Estado democrático, mas internamente nunca se viu tanto “verticalismo” e controle da “opinião pública” na Igreja, de modo especial do laicato mais crítico. Todos os anos ela coloca na “pauta do dia” temas de relevância nacional por meio das Campanhas da Fraternidade, mas luta para manter seus privilégios seculares por meio do Acordo Brasil-Santa Sé.
Minha hipótese, e que pode ajudar na resposta à sua pergunta, é a seguinte: a “ideia” de Cristandade que ainda permeia mentes e corações. No entanto, a Cristandade está com seus dias contados, mas muitos “eclesiásticos” (clérigos e até leigos) ainda não se deram conta de que ela já não tem mais sentido nos dias de hoje.
O terceiro violino
Para fomentar um diálogo mais maduro, como você pergunta, é fundamental a Igreja reconhecer que ela não possui mais “poderio territorial” (e isso já faz tempo desde as campanhas de Garibaldi e do Tratado de Latrão em 1929) e “poderio espiritual” da época da Cristandade. É como aquela metáfora: “Durante pelo menos 10 séculos a Igreja foi a regente de uma grande orquestra. Agora ela é chamada a ser o ‘terceiro violino’ dessa mesma orquestra”. Para alguns dentro da Igreja isso é um absurdo e ela precisa lutar por sua “verdadeira” identidade. Para outros, essa é a grande oportunidade da Igreja viver mais próximo do seu mestre e ser fiel ao seu projeto.
É necessário que a Igreja “vá para águas mais profundas”, mergulhe nas profundezas da sociedade contemporânea; sem medo, como fez Paulo e suas “comunidades de base” que conseguiram transformar aquela sociedade. Somente uma Igreja parecida com seu mestre poderá ser uma Igreja convincente.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

ASSEMBLEIA GERAL DA CNBB E CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, [www.provinciasaopaulo.com]

A metáfora do Bom Pastor, aparentemente, resulta inadequada para a sociedade contemporânea, tão fortemente marcada pela urbanização, pelo pluralismo cultural e religioso, pela economia globalizada e pela revolução da informática. Mas sua interpretação pode ser sempre retomada, dada a riqueza do sentido universal. Três funções tinha (e tem) o pastor: encontrar bom pasto para o nutrimento do rebanho, defendê-lo dos ataques do lobo e outros animais ferozes e manter certa harmonia interna. È fácil dar-se conta que semelhantes funções, na sua complementaridade, viram-se reforçadas e entrelaçadas com a abertura da Igreja ao mundo moderno provocada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II. “O gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro”. (GS, nº 4).
Na celebração do cinquentenário do referido Concílio, as “mudanças profundas e rápidas”, requerem dos pastores reunidos em assembléia geral, aos pés de Maria e do Santuário de Aparecida, grande empenho por uma nova evangelização. “Nnova em seus conteúdos, em seus métodos e com novo ardor missionário”, como já nos alertava o Papa João Paulo II.
1. A vida em primeiro lugar
A primeira função está diretamente ligada às reais condições de vida da população. Não apenas o alimento, mas também roupa e casa, trabalho e salário, saúde e lazer, estudo e segurança, terra e cidadania... O bom pastor preocupa-se não somente com a mera sobrevivência, mas com a qualidade de vida. Aqui a ação ético-religiosa se entrelaça com a ação social e política. O cruzamento da Gaudium et Spes com a Lumem Gentium, ambos documentos do Concílio Vaticano II, respectivamente sobre a pastoral e sobre a Igreja, torna-se eloquente a esse respeito. Mais do que nunca, a Igreja Católica, da mesma forma que outras Igreja e denominações religiosas, tem um papel fundamental no sentido de reunir esforços para que toda pessoa seja respeitada na sua dignidade humana.
Esta requer, antes de mais nada, uma base socioeconômica sólida e de larga duração, exigência que se revela especialmente no mundo do trabalho. O divórcio entre trabalho e emprego é causa de muita instabilidade e insegurança por parte de milhares e milhões de trabalhadores. Estes até que encontram trabalho, não há dúvida. Mas, quando não dispõem de qualificação adequada, correm o risco de trabalhar desvinculado de um emprego estável, registrado em carteira, com todos os direitos assegurados. Vivem à caça de “bicos” eventuais, ao sabor das ondas da economia. Um enorme “exército de reserva” (Marx) que não mora, acampa de acordo com as necessidades do capital. Desempregados, ou sempre ameaçados de o serem, como podem pensar num projeto futuro de longo alcance, que envolve, por exemplo, casamento, casa, estabilidade financeira...
2. Lobos e cordeiros
O entrelaçamento das diversas dimensões da atividade pastoral, entretanto, é ainda mais evidente na segunda função do pastor. Defender o povo dos inimigos é, antes de tudo, identificá-los e conhecer-lhes a periculosidade. Quais são e até onde vai a exploração e a ganância de determinados agentes econômicos. Como se comportam os responsáveis de alguns setores da produção, onde ainda se verificam condições precárias de trabalho, de salubridade e de segurança? A voracidade do lucro e do capital pode destruir não só os recursos naturais e o bom “pasto” das “ovelhas”, mas também condená-las à pobreza e exclusão social.
Desde seus primórdios, a economia capitalista, de filosofia liberal ou neoliberal, gera lobos e cordeiros. A pretensa liberdade engendra o monstro liberalismo, pois se trata de uma liberdade entre forças desiguais. De um lado, os senhores das terras, das fábricas e das máquinas; de outro, os trabalhadores, destituídos dos meios de produção, obrigados a vender a sua força de trabalho. Numa palavra, lobos e cordeiros numa disputa desigual pelo mesmo terreno, tubarões e sardinhas dentro de um mesmo tanque, raposas e galinhas no interior do mesmo galinheiro. Não é difícil perceber como semelhante estado de coisas fortalece os poderosos e enfraquece os indefesos.
É neste contexto de confronto entre capital e trabalho (implícito ou explícito) que se faz necessária a presença do pastor. Ele tem a tarefa de afugentar os lobos e proteger as ovelhas, como se nota amplamente nos documentos da Doutrina Social da Igreja, desde a Rerum Novarum, publicada por Leão XIII em 1891, com o subtítulo Condição dos operários. A Gaudium et Spes, constituição pastoral do Concílio Vaticano II, mantém essa tradição de colocar-se energicamente ao lado daqueles cuja vida está ameaçada. Baste-nos citar as palavras de abertura do documento: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Jesus Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, nº 1).
O mais grave, a esta altura, é quando o bastão do pastor (ou seu báculo), em lugar de perseguir os lobos em sua ferocidade, se abate impiedosamente sobre os ombros das ovelhas. Veja-se a esse respeito as palavras e discursos dogmáticos e despóticos de alguns pastores, cujo moralismo estridente esconde não raro uma conduta ambígua, para dizer o mínimo. Desvinculado do contexto histórico e social em que vivem os trabalhadores e suas famílias, limitam-se a bordejar os pobres, já feridos por condições de vida precárias e sem esperança de melhora.
3. Unidade na pluralidade
Quanto à função de contribuir para a unidade do “rebanho”, não é a última nem a menos relevante. De fato, de que serve contar com bom alimento e segurança, se o inimigo se instala no interior da própria casa! É o que ocorre hoje em não poucas famílias e grupos. A competição e a concorrência, próprias das leis cegas do mercado, invadem a vida privada. Forma-se uma cadeia perversa que rebentará no seu elo mais fraco. Condições de trabalho adversas, salários insuficientes, além de transporte público precário, se acumulam como ingredientes de uma violência reprimida. Esta acaba recaindo, por vezes, sobre as pessoas mais próximas, aquelas que mais amamos. De longe, as principais vítimas desse mecanismo circular e vicioso são as mulheres e crianças. Disso resulta o alto índice de agressão intra-familiar, perpetrada quase sempre pelo homem, sem desconhecer outros fatores de ordem passional e psíquica.
A unidade do “rebanho” pressupõe a pluralidade das “ovelhas”. Num mundo em que praticamente tropeçamos dia-a-dia com “os mil rostos do outro”, não é fácil incorporar sua presença aos nossos hábitos e costumes. O outro – seja ele de raça ou povo, sexo ou cor, credo ou bandeira – sempre constitui um ponto de interrogação. Interpela, levanta questionamentos, desperta suspeita e exige mudanças. Mas, de um ponto de vista evangélico, não deve aparecer como um problema, e sim como uma oportunidade de intercâmbio e recíproco enriquecimento. Vale o confronto dos filósofos Sarte e Levinás: enquanto para o primeiro o “outro é o inferno”, para o segundo “o outro é o caminho para chegar a mim mesmo”.
Os parágrafos acima sugerem o contexto da Assembleia Geral da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – o grande encontro anual e nossos pastores, neste ano em que o Concílio Vaticano II completa 50 anos. Em suas mãos a tríplice tarefa de contribuir, junto com outras instituições, para a qualidade de vida da população brasileira; de denunciar os abusos de alguns políticos e algumas autoridades, os mesmos que deveriam defendê-la; e de anunciar a urgência e necessidade de mudanças que levem à construção de uma sociedade justa e fraterna, sustentável e solidária, sinal visível do Reino de Deus.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Para dom Paulo Evaristo Arns, mais do que uma crise ambiental, planeta vive crise civilizatória

Em carta lida durante seminário que debateu a Rio+20, arcebispo emérito de São Paulo diz que a ciência e a tecnologia devem estar a serviço do homem e da natureza, e não o contrário

Por: Virginia Toledo, Rede Brasil Atual

Publicado em 16/04/2012, 12:35

São Paulo – "Para conferência que discutirá a saúde do planeta, da qual o Brasil será o anfitrião, é preciso que se discuta, primeiramente, o que se quer dessa reunião, pois o homem enfrenta uma encruzilhada, com ameaças nunca antes vistas." A frase é de dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, referindo-se à Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a Rio+20. A posição de dom Paulo foi lida em carta durante o seminário "Desconstruindo a crise civilizacional. Um olhar sobre a Rio+20", realizado hoje (16) na sede do Ministério Público Federal em São Paulo.

"Mais do que uma crise ambiental enfrentamos uma crise civilizatória. Uma crise de valores sem precedentes na nossa civilização. Se exaure a natureza, assim, se exaure o homem, que são partes indissociáveis", definiu dom Paulo.
No evento em que se discutiu os rumos e os desafios da Rio+20, dom Paulo exaltou a solução encontrada para as discussões, acerca do desenvolvimento, baseada no somatório da contribuição de todos os segmentos da sociedade, desde o científico, passando pelo artístico e pelo espiritual. "Precisamos de uma ciência e uma tecnologia a favor do homem e da natureza. Não ao contrário. Porque a ciência não é neutra", pontuou.
Dom Paulo criticou ainda o modelo de sociedade, dividida em duas pontas, uma abastada "imersa no consumismo", e na outra extremidade uma população miserável, "superexplorada, a favor do processo de acumulação".
Ele relembrou sua ação à frente das pastorais da Igreja Católica, principalmente nas áreas mais periféricas da cidade. "Exerci parte de minha atuação pastoral na periferia da metrópole e sei da carência da população, principalmente, neste momento perverso, no qual a terrra e o ser humano são mercadorias. Momento que tem os dias contados", sentenciou.

Violência

O arcebispo lembrou a violência com que a população da Amazônia brasileira tem vivido, numa constante situação de insegurança e ameaça. "Há irmãos na Amazônia que são assassinados por aqueles que lutam apenas para aumentar seus latifúndios", lamentou.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

A PÁSCOA DO CONCÍLIO



D. Demétrio Valentini
Neste ano, a festa da Páscoa traz marcas do Concílio.
A páscoa sempre evoca o passado, de maneira a trazer presente o significado dos acontecimentos antigos.
Pois bem, desta vez, somos convidados a associar as diversas evocações antigas da Páscoa, com acontecimentos mais recentes na caminhada da Igreja.
Entre eles, se destaca, com evidência, o Concílio Ecumênico Vaticano Segundo.
Sem sombra de dúvidas, o maior acontecimento da Igreja no século vinte. Em outubro deste ano, se comemora o jubileu de sua abertura oficial. Ele iria depois durar quatro anos, com sessões que em média duraram três meses cada ano.
Este o acontecimento que a Igreja se sente na obrigação de recordar, não só por curiosidade histórica, mas pela vigência de suas orientações, que ainda continuam balizando a caminhada da Igreja.
Como referência, é colocada a data de onze de outubro, dia da abertura oficial do Concílio em 1962. Vale a pena recordar o famoso discurso de João 23, feito na solene abertura dos trabalhos conciliares.
O entusiasmo do Papa se manifesta logo nas primeiras palavras do seu discurso. Elas não podiam ser mais otimistas: “gaudet mater ecclesia”, isto é, “alegra-se a Mãe Igreja”.
O motivo da alegria era constatar a graça especial, que a Providência tinha proporcionado à Igreja, de realizar um concílio ecumênico em nossa época, com tanta abertura de espírito, e com tanta expectativa por parte do mundo inteiro.
João 23 já tinha narrado o episódio muitas vezes. A idéia de convocar um concílio ecumênico tinha sido uma verdadeira inspiração divina. Tanto que o próprio Papa se surpreendera com a proposta, que levada ao conhecimento do público, despertou logo tanto entusiasmo, que a realização do concílio se tornou irreversível.
No seu discurso de abertura, João 23 fez questão de insistir no espírito de bondade e de tolerância, que deveria marcar este concílio. Enfatizou suas afirmações, insistindo:
“A Igreja Católica.... deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados”.
Nenhum concílio na história tinha começado com tal disposição de espírito. E nenhum concílio se viu tão estreitamente ligado a um papa, como o Vaticano II se desenhava como a réplica do “Papa da Bondade”, como o povo já tinha identificado João 23.
E no final do seu discurso, dirigindo-se diretamente aos bispos que estavam iniciando os trabalhos conciliares, deu-lhes as seguintes recomendações: “isto requer da vossa parte serenidade de espírito, concórdia fraterna, moderação nos projetos, dignidade nas discussões e prudência nas deliberações”.
Passados 50 anos, estas recomendações do Papa se constituem em preciosa mensagem de Páscoa, a ser colocada em prática por todos.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Igreja do Concílio e além

Segunda, 12 de março de 2012

Fala-se de "Vaticano III" e até mesmo de "Jerusalém II". Mas, se a meta é até mesmo ir além, será preciso, contudo, passar pelo Concílio Vaticano II.
A análise é do padre e jornalista italiano Vittorio Cristelli, publicada na revista Vita Trentina, da diocese de Trento, na Itália, 11-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

É típico dos aniversários introduzir a discussão sobre o que representou o evento que se celebra e destacar os aspectos ignorados ou ainda não realizados. O ano de 2012 cai exatamente a 50 anos da abertura do Concílio Vaticano II e deveria ser, portanto, um ano em que esse Concílio é revisitado. Já se anunciam estudos maciços nesse sentido, principalmente na área latino-americana da Teologia da Libertação.
Estas são as novidades fundamentais desencadeadas e ainda não plenamente realizadas do Concílio: de uma Igreja centralista a uma Igreja corresponsável e sinodal, respeitosa pelas Igrejas locais; de uma Igreja identificada com a hierarquia a uma Igreja "povo de Deus", com diversos carismas; de uma Igreja triunfalista que se autoglorifica a uma Igreja que caminha na história; de uma Igreja dominadora mãe e mestra a uma Igreja a serviço de todos e particularmente dos pobres; de uma Igreja comprometida com o poder a uma Igreja solidária com os mais fracos; de uma Igreja arca da salvação a uma Igreja sacramento de salvação, em diálogo com as outras Igrejas e as outras religiões da humanidade.
À parte do fenômeno cismático dos da lefebvrianos, nascidos e persistentes na rejeição total do Concílio, é preciso dizer que houve e ainda há resistências na vida concreta das visões de Igreja que surgiram do Concílio. A mais evidente, a da valorização dos leigos, aos quais o Concílio deu a licença de maturidade e reconheceu a tarefa específica de protagonistas ao tratar as coisas temporais (leia-se: economia, administração, política), considerando-as como lugares da sua santificação.
Atrasos e resistências mais de uma vez registrados e denunciados. Se o Papa João XXIII, inventor do Concílio, falava de "primavera da Igreja", o grande teólogo Karl Rahner, em 1982, 20º aniversário do Concílio, intitulava um discurso crítico seu de "O inverno da Igreja". Mas ouçam o que dizia o cardeal Franz König aos leigos da sua aquidiocese de Viena, em pleno Concílio:
"Quando tiverem algo a dizer a respeito da Igreja, não esperem pelo bispo. Não esperem uma palavra de Roma. Falem quando acharem que devem fazê-lo; pressionem quando devem fazê-lo. Todas as vezes que tiverem oportunidade, informem o mundo e os católicos. Além disso, digam também tudo o que o povo e os fiéis esperam da Igreja. Desse modo, esse processo que nasceu na esperança não cairá na desilusão, mas terá uma realização magnífica".
Mas há também um "além" do Concílio, provocado e desejado hoje pela mudança radical que se verificou no mundo. A globalização, com as migrações associadas, trouxe para dentro das próprias comunidades eclesiais todo o mundo e, com ele, todas as religiões. É assim, por exemplo, que hoje não se trata mais só da relação com as outras Igrejas cristãs e o consequente ecumenismo, mas da relação com todas as religiões, aquilo que com uma palavra que tenta se afirmar se chama de macroecumenismo.
Motivo pelo qual não basta nem mesmo o olhar sobre a Igreja. Paulo VI, com a intuição que lhe era própria, já havia previsto essa passagem. Se, durante o Concílio, ele sintetizava as problemáticas na pergunta "Igreja, o que dizes de ti mesma?", alguns anos depois, em uma Semana Social francesa, ele fazia uma outra pergunta: "Igreja, o que dizes de Deus?". E Karl Rahner também tinha chegado a isso, já que pôde escrever: "O futuro não interpelará a Igreja sobre a estrutura litúrgica mais precisa e mais bonita, nem sobre as doutrinas teológicas mais polêmicas que distinguem a doutrina cristã da dos cristãos não católicos, e nem sobre o regime da Cúria Romana. Pedirá que a Igreja testemunhe a proximidade do mistério inefável que chamamos de Deus".
Tem-se falado várias vezes, aqui e acolá, de um novo Concílio. Ele também é invocado pelo teólogo latino-americano Victor Codina, acrescentando provocativamente que ele não seja chamado de "Vaticano III", mas sim de "Jerusalém II". Mas preciso dizer uma coisa: se a meta é até mesmo ir além, será preciso, contudo, passar pelo Concílio Vaticano II.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507364-igreja-do-concilio-e-alem