Visualizações desde 2005

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A CRISE DAS PASTORAIS SOCIAIS É A CRISE DA HUMANIDADE

por Dom Guilherme Werlang última modificação 20/05/2011 14:35
Colaboradores: IHU On-Line

IHU On-Line
A partir da 49º Assembleia da CNBB, um novo presidente para a Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz foi eleito. Trata-se de D. Guilherme Werlang. Atuante na área das pastorais sociais, ele concedeu por telefone a entrevista a seguir para a IHU On-Line, em que fala sobre sua história, sobre a eleição que lhe colocou no cargo de presidência dessa comissão e, ainda, analisou a chamada crise atual das pastorais sociais. “A própria linguagem, o próprio método de trabalhar, ele deve evoluir, modernizar-se, acompanhar o movimento social do conjunto da sociedade e isso sempre causa uma insegurança. É a busca de uma nova postura, de uma nova identidade, de um novo paradigma. Tudo isso a fim de que possamos ser uma resposta atualizada para o homem e a mulher do século XXI, nesse ano de 2011. Já olhando para frente, para as próximas décadas”, afirmou.
A entrevista foi feita em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT.

Dom Guilherme Werlang é bispo de Ipameri-Goiás, além de ser novo presidente dessa comissão episcopal pastoral.
Confira a entrevista.

On-Line – O senhor poderia nos falar um pouco de sua história?

Dom Guilherme Werlang – Nasci em agosto de 1950, em Santa Catarina, no município de São Carlos, na comunidade de São Sebastião. Meu pai é o José Audino Werlang, minha mãe Irena Werlang. O pai e a mãe nasceram no Rio Grande do Sul. Minha família mora até hoje no município de São Carlos, em Santa Catarina. Eu, segundo conta minha mãe, desde criança, assim que aprendi a falar, falava que queria ser padre. E, de fato, com oito anos já fui coroinha, com 12 anos e meio entrei no Seminário dos Missionários da Sagrada Família, na cidade de Maravilha-SC, que nós chamávamos de Educandário Nossa Senhora de Fátima, isso em 1963. Em 1965, fui a Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, onde fiz o ginásio, na Escola Apostólica da Sagrada Família. Fiquei lá quatro anos.

Em 1969, fui a Rio Pardo-RS, onde fiz o ensino médio. Entre 1972 e 1974 cursei Filosofia na Universidade de Passo Fundo – UPF e morava, então, no seminário local. Em 1975, fiz o noviciado em Catuípe, perto de Ijuí-RS. Em 1976, estudei Teologia na PUCRS, sendo que em 1977 trabalhei na Formação em Santo Ângelo, no Seminário da Sagrada Família. Fui ordenado padre em 2 de dezembro de 1979.

Em 1980, trabalhei no Seminário de Santo Ângelo como formador e entre 1982 e 1984, em Jataí-GO. Em 1985, retornei ao Rio Grande do Sul, para ser formador no Instituto Missioneiro de Teologia em Santo Ângelo. Em 1987, fui reitor do Seminário de Rio Pardo-RS e, depois, em 1990 fui da Pastoral Vocacional dos Missionários da Sagrada Família, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. De 1993 até o início de 1999, trabalhei novamente na cidade de Jataí como pároco e, depois, em 1999, fui nomeado Mestre de Noviços em Porto Alegre. Trabalhando lá fui fazer um curso de formadores, no Rio de Janeiro e, durante esse curso, fui nomeado bispo de Ipameri-GO, onde estou até hoje. Essa é um pouco da minha história.

IHU On-Line – A que o senhor atribui a sua eleição para a Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, a antiga linha 06, da CNBB?

Dom Guilherme Werlang – Eu já fazia parte dessa comissão há quatro anos, junto com mais outros cinco bispos e o então presidente, que era o D. Pedro Luiz Stringhini. Na época, fui chamado para fazer parte desta comissão porque, enquanto bispo aqui em Goiás, trabalhei na Comissão Pastoral da Terra. Depois, quando a CNBB criou o mutirão da Superação da Fome e da Miséria, ainda com o falecido D. Luciano Mendes de Almeida e o D. Mauro Morelli, fiz parte da primeira turma. Então, na verdade, já são oito ou nove anos que estou acompanhando, de alguma forma, essa comissão de pastorais sociais. Assim, a própria comissão, as pastorais sociais, foram apresentando vários nomes, entre os quais estava o meu, para poder continuar esse serviço, que é algo que sempre caracterizou bastante a Igreja no Brasil. Quer dizer, essa opção preferencial pelos pobres. E, entre as diversas dimensões que a Igreja tem, uma dessas cuida mais desse setor das pastorais sociais. Temos 22 pastorais sociais que se subdividem em outras tantas na realidade do nosso povo brasileiro.

Penso que a eleição é em decorrência desse trabalho que já estamos fazendo dentro dessa Comissão Pastoral. E destaco que não é um trabalho de apenas um bispo, mas de um grupo. No caso, formado por seis bispos que trabalham em nome de todos os demais (bispos) da CNBB. Além desses, nós temos os bispos referenciais nas diversas pastorais sociais em todas as regionais da CNBB e temos padres, irmãs e irmãos religiosos, e muitos leigos e leigas que, na base, estão à frente dessas comissões.

IHU On-Line – Muitas afirmam que as pastorais sociais encontram-se em crise, com dificuldades de articulação e mobilização. Qual é a avaliação do senhor? A que pode ser atribuída a crise das pastorais?

Dom Guilherme Werlang – A crise é normal que aconteça uma vez que a sociedade e a comunidade são dinâmicas e, às vezes, a própria transitoriedade das coisas faz acontecer isso. Na verdade, as pastorais sociais estão bem organizadas, muito vivas, muito atuantes, mas sempre se devem buscar novas formas de se fazer esse trabalho. Existir uma crise não é necessariamente uma coisa ruim. Uma crise busca novas respostas para novos momentos. E a sociedade com um todo, não só a sociedade brasileira, atravessa essa crise de identidade de busca de novos paradigmas, de novos parâmetros, diante de novas situações, diante de uma geopolítica mundial. E, evidentemente, que as pastorais sociais se encontram no meio disso.

Atualmente, uma grande transformação social acontece. Nesses últimos anos a quantidade de pessoas que ainda estão na pobreza absoluta ainda é alta; outras passaram para a classe média, e houve uma significativa modificação no seu desenho, na sua composição. As pastorais sociais acompanham isso. Depois, de tempos em tempos, as próprias lideranças tendem a se renovar. A própria linguagem, o próprio método de trabalhar, ele deve evoluir, modernizar-se, acompanhar o movimento social do conjunto da sociedade e isso sempre causa uma insegurança. É a busca de uma nova postura, de uma nova identidade, de um novo paradigma. Tudo isso a fim de que possamos ser uma resposta atualizada para o homem e a mulher do século XXI, nesse ano de 2011. Já olhando para frente, para as próximas décadas.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o Brasil de hoje? No que avançamos e quais são ainda os grandes desafios que precisam ser enfrentados?

Dom Guilherme Werlang – Creio que o Brasil tem avançado bastante na conscientização da sua cidadania. Mas nós, de fato, vamos precisar lutar muito, porque nosso país é incipiente, ainda existe muita coisa a fazer para sermos protagonistas e sujeitos na construção de uma nova história. Toda a questão política, toda a questão econômica, é um novo quadro que se desenha aqui. Penso que o grande desafio, em que a Igreja também é chamada a contribuir, é a democratização completa do Estado. Essa democratização se expressa em muitos momentos sociais: a participação plena de todo cidadão, de toda cidadã, brasileiros e brasileiras, na vida política, econômica, social, na educação, saúde, no saberes, na cultura.

Penso que todo esse patrimônio brasileiro deve ser mais democratizado. Isso também significa ser mais participativo. Nós não podemos mais esperar que alguém tome as decisões por nós, seja em Brasília, seja nas capitais ou, de repente, do exterior. Precisamos tomar consciência de que as decisões devem ter sempre a participação de todo o povo brasileiro para que, de fato, o Brasil seja um país para todos e para todas, com direitos iguais, justiça igual, acesso igual de todos aos meios essenciais para a vida e para uma vida digna.

IHU On-Line – Qual é avaliação que o senhor faz do governo Dilma Rousseff?

Dom Guilherme Werlang – Penso que ainda é cedo para nós fazermos uma avaliação do governo Dilma. Com certeza, se alguns esperavam que ela fosse apenas uma continuidade ou uma teleguiada do Lula, se enganou. Muita gente já está vendo que ela tem luz própria e que vai governar, espero, dentro da realidade e no estilo que ela própria deve ter. Existem alguns problemas que ela deve enfrentar, que não estavam postos ao governo anterior, mas são consequências dele. Porque a história, pelo fato de trocar uma presidência, não faz um corte: é uma continuidade.

Tenho muita esperança que ela consiga cada vez mais inserir os pobres na condição digna de vida. Espero que os programas sociais possam ser cada vez mais inclusivos e não exclusivos. Depois, que as políticas públicas possam ser voltadas não mais a passar pequenas esmolas ao povo brasileiro, mas para que haja mais emprego, para que o povo brasileiro possa por meio do seu trabalho ter a dignidade de poder construir as suas próprias vidas sem precisar depender tanto de programas assistencialistas. Os programas assistencialistas devem se tornar cada vez mais políticas públicas. Tenho esperança que, de fato, nós possamos continuar construindo uma nação mais justa e mais fraterna. Não podemos esperar que a presidenta faça isso sozinha, nem ela com os seus ministros ou com os seus governadores, mas que o Brasil seja de todos os brasileiros, construído por todos e todas.

IHU On-Line – À frente das pastorais sociais, quais serão suas prioridades?

Dom Guilherme Werlang – Em primeiro lugar, nós temos que continuar a fazer o que nós já vínhamos trabalhando: ouvir as pastorais sociais, fazer com que todas elas tenham participação ativa na construção da sua própria história. Temos aí a necessidade de organizar e realizar a 5ª Semana Social Brasileira e essa é uma grande tarefa.

Outras questões: nós vamos ter agora em junho a primeira reunião da nova presidência, junto com os 12 bispos das comissões e também o Conselho Permanente. Será aí que iremos compor a comissão que, por enquanto, presido. Então, escolheremos os outros cinco bispos da comissão e, a partir daí, procuraremos trabalhar juntos visando à construção de um programa dentro daquilo que vinha sendo desenhado, sempre olhando e nos perguntando quais são os novos desafios da atualidade. Não posso sozinho apontar quais as metas; nós temos que trabalhar em conjunto, especialmente reunindo as lideranças das pastorais sociais para ouvi-las e, então, fazermos nosso planejamento para frente.

IHU On-Line – Nas pastorais sociais comenta-se que a CNBB nos últimos anos abandonou o protagonismo que exercia junto à sociedade com uma “agenda social”, e enveredou-se na defesa de uma “agenda moral”. O que o senhor pensa sobre isso?

Dom Guilherme Werlang – Nós que estamos lá dentro não sentimos exatamente isso. As pastorais sociais possuem muitas atividades, têm muitas frentes, continuam muito combativas, muito críticas diante da situação. A forma como são veiculadas as questões é que, muitas vezes, pode parecer mais essa posição. Porém, dentro das pastorais sociais, evidentemente existem crises, como nós abordamos antes. Mas é uma crise de toda a sociedade brasileira que se reflete também dentro da Igreja.

As pastorais sociais tem feito um grande trabalho e nós esperamos que isso possa continuar e intensificar-se cada vez mais. Penso que as pastorais sociais talvez tenham perdido um pouco da visibilidade na mídia diante de outras questões que são abordadas, diante de outras coisas que dominam o noticiário.

IHU On-Line – Já foi definido um novo nome para assessorar a Comissão?

Dom Guilherme Werlang – Estou conversando, consultando. Tenho alguns nomes indicados. Ainda temos que falar com essas pessoas. Alguns dependem de certos fatores. Há padres diocesanos que dependem do seu bispo; há padres de congregações religiosas que precisam conversar com seus superiores. Da mesma forma, na vida religiosa feminina, há irmãs religiosas que precisam conversar com a sua congregação. Por isso, ainda não divulgo tais nomes.

IHU On-Line – Está em curso a preparação de uma 5ª Semana Social Brasileira. O que essa Semana Social pretende abordar?

Dom Guilherme Werlang – Temos previsto para agosto uma primeira reunião, em Brasília, para, de fato, começar a delinear essa 5ª Semana. Seu grande tema, que está sujeito à discussão, é a democratização do Estado brasileiro. Esse é o grande assunto, por enquanto assim colocado. Ainda, porém, não detalhamos tudo.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

“A esperança venceu o medo”. Um balanço da 49º Assembleia Geral da CNBB

Sérgio Ricardo Coutinho é mestre em História pela UnB; professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura em Brasília; professor de História da Igreja Antiga no Curso de especialização em História do Cristianismo Antigo na UnB; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil).

Terminou no dia 13 último, a 49ª Assembléia Geral da CNBB, realizada este ano em Aparecida (SP), depois de mais de 30 anos em que ela se dava nas dependências dos jesuítas na Vila Kotska, em Itaici (Indaiatuba-SP).
A mudança de local e a proximidade com os devotos de N. S. Aparecida parecem ter mexido com o espírito dos bispos, pois também acabaram por fazer algumas mudanças internas em vista de uma atuação mais missionária da Igreja no Brasil.
Esta Assembléia se concentrou basicamente nas eleições de sua Presidência e das Comissões Episcopais Pastorais, e do estudo e aprovação de novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2011-2015).
Diferentemente do clima de tensão que marcou a Assembléia do ano anterior, em Brasília – quando um grupo de bispos, que classifiquei em artigo publicado no IHU do ano passado como de “concentração católica” (D.-H. Leger), exigia uma posição contundente da CNBB contrária ao PNDH3 aprovado pelo governo Lula –, neste ano o cenário era totalmente diferente e aquele grupo se manteve quase que em total silêncio durante toda a reunião. De certa forma, todos aqueles fatos ocorridos na 48ª Assembléia já estavam marcados pelo clima de eleições presidenciais, que culminou com toda a polêmica gerada pela divulgação do panfleto do Regional Sul 1 contrária a candidatura da atual presidente Dilma Rousseff.
Apesar disso, partiu deste grupo de bispos a solicitação de uma nota da presidência da CNBB se posicionando contrária à decisão do STF sobre o reconhecimento de união estável de casais homoafetivos.
Como é de costume, seguindo o método da antiga Ação Católica Especializada, a Assembléia se iniciou com o “ver” a realidade por meio das análises de conjuntura sócio-política e eclesial. Tanto a exposição do Prof. Márcio Porchmann, como do Pe. Mário de França Miranda, respectivamente, teve excelente aceitação entre os bispos e com avaliações de “ótimo” e “bom” em torno de 90% [n.1].
Também se fez um balanço do quadriênio 2007-2011. De forma geral, a atuação da presidência neste período obteve uma alta aprovação (58% “ótimo” e 39% “bom”). Mas quando se analisou alguns de suas ações mais específicas, ficou muito claro que o episcopado brasileiro apoiou mais aquelas que se referiam às suas relações com a Santa Sé (62% “ótimo”) [n.2], caindo bem em relação às de ordem pastoral e administrativa (ambas 47% “ótimo”), e mais baixo ainda quanto às suas relações com os poderes públicos (leia-se aqui Governo federal) e sociedade civil quando alcançou 41% “ótimo” e 49% “bom”. Talvez aqui esteja um dos motivos para os resultados das eleições internas: uma presidência que reconduza a CNBB à uma presença pública mais efetiva.
Por outro lado, foi possível fazer um balanço das opções pastorais do episcopado brasileiro a partir do uso das principais publicações da CNBB nos últimos quatro anos. O documento das “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (2008-2010)” – que é a principal referência de animação da ação pastoral da Igreja no Brasil –, por exemplo, foi muito importante nos planejamentos pastorais para apenas 32% dos bispos(!). Já as publicações referentes às questões mais candentes no atual contexto social e político brasileiro, como o Documento-azul nº 91 “Por uma Reforma do Estado com Participação Democrática” e o de Estudos nº 99 “Igreja e Questão Agrária no início do século XXI”, foram considerados altamente relevantes para, respectivamente, 16% e 13% do episcopado(!) [n.3].
Ainda em relação à presença pública da Igreja na sociedade brasileira, três temas foram apresentados nesta 49ª Assembléia que considero-os de suma importância: a proposta de uma 5ª Semana Social Brasileira (apresentação feita por Dom Pedro Luiz Stringhini), os 50 anos do Movimento de Educação de Base (MEB) e um comunicado sobre a atual “Questão Indígena” (feita por Dom Erwin Kräutler).
Na primeira, os bispos que consideraram a proposta excelente alcançaram 29%, já 23% acharam “regular” e “deficiente”. Quanto à atuação do MEB no contexto atual brasileiro, 24% dos bispos o consideram altamente relevante e 29% já o vêem como insuficiente e “desnecessário”. Os números também são muito semelhantes quanto à posição dos bispos sobre a atuação da Igreja na causa indígena. Na verdade, o que estava em avaliação era a própria atuação do CIMI: 23% dos bispos consideram excelente sua atuação, mas, por outro lado, outros 22% acham regular e deficiente.
Mas o tema principal tratado foram as novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (DGAE/2011-2015).
O Pe. Joel Portella, um dos peritos da Comissão de redação, chamou a atenção dos bispos para o fato de que estas novas DGAE assumem de modo mais intenso as conclusões da Conferência de Aparecida, até mais do que o documento do quadriênio anterior. Além disso, o texto também assume a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. Assim, as atuais DGAE estão em continuidade e descontinuidade com as anteriores. Descontinuidade no sentido de que buscam ser de fato Diretrizes, e não Plano de Pastoral; continuidade por manter o espírito de Aparecida.
Este texto foi elaborado dentro de dois conceitos fundamentais presentes no documento de Aparecida: a) mudança de época como questão de atualidade; b) a conversão pastoral como resposta da Igreja. Trabalha-se o primeiro conceito, sobretudo no Cap. 2 das Diretrizes, visando entender as implicações deste fenômeno na ação evangelizadora da Igreja. Além disso, no nº 365 de Aparecida, os bispos orientam para que se abandonem as estruturas ultrapassadas que não mais possibilitam a transmissão da fé hoje.
Desta forma, o novo texto apresenta, nos Capítulos 3 e 4, as 5 (cinco) urgências como critérios da ação evangelizadora e como perspectiva de ação: 1) a Igreja em permanente estado de missão; 2) a Igreja como casa de iniciação à vida cristã; 3) a Igreja como fonte de animação bíblica da pastoral e de toda a vida; 4) a Igreja como comunidade de comunidades; 5) a Igreja a serviço da vida plena para todos. Para a equipe da Comissão redatora, esses cinco pontos estão interligados, fragilizando-se um deles, os demais também se fragilizarão.
Um ponto destacado pelo Pe. Agenor Brighenti, outro perito da Comissão, é que as novas Diretrizes retomam o apelo para uma pastoral da Paróquia como rede de comunidades, setorização da pastoral, além da necessidade de uma diversificação dos ministérios. No final do documento são apresentadas indicações de operacionalização. O atual texto, de certa forma, propõe a volta do planejamento pastoral, esquecido por muitas dioceses nos últimos anos.
Para a implementação deste “plano de governo”, como disse D. Belisário da Silva (arcebispo de São Luís do Maranhão e presidente da Comissão de redação), ou da “central energética da Igreja”, como bem diz D. Celso Queiroz (bispo emérito de Catanduvas-SP e ex-secretário geral e vice-presidente da CNBB), os bispos passaram para as discussões sobre as eleições da presidência da Conferência e das Comissões Episcopais Pastorais.
Antes disso, fizeram um balanço das atribuições e objetivos de cada uma das 10 (dez) Comissões existentes, e votaram favoravelmente pela criação de mais duas: Comissão para a Juventude e Comissão para as Comunicações Sociais. Os bispos presidentes destas Comissões formam, juntamente com os membros da presidência da CNBB, o Conselho Episcopal Pastoral (CONSEP).
O processo de eleição começou com as reuniões dos bispos em cada um dos 17 Regionais. E de lá apresentaram os indicados para cada função na CNBB.
Dom Raymundo Damasceno (cardeal-arcebispo de Aparecida) como presidente, Dom José Belisário da Silva (arcebispo de São Luís) como vice-presidente e D. Leonardo Ulrich Steiner (bispo-prelado de São Félix do Araguaia) na secretaria-geral, revelam a opção de centro-moderado assumida pela CNBB [n.6].
Passando os olhos pelos nomes dos 12 (doze) novos presidentes das Comissões Pastorais, podemos afirmar que apenas um deles estaria mais próximo àquele grupo que nominei como de “concentração católica”. Os demais perfazem um perfil que vão de uma linha moderado-conservadora aos com clara opção por uma “Igreja da libertação”.
Ficaram assim as Comissões Episcopais Pastorais:
Comissão Episcopal Pastoral para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada: Dom Pedro Britto Guimarães (Palmas-TO);
Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato: Dom Fr. Severino Clasen, OFM (Araçuaí-MG);
Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial: Dom Sérgio Arthur Braschi (Ponta Grossa-PR);
Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética: Dom Jacinto Bergmann (Pelotas-RS);
Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé: Dom Sérgio da Rocha (Teresina-PI);
Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia: Dom Armando Bucciol (Livramento de Nossa Senhora-BA);
Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso: Dom Francesco Biasin (Pesqueira-PE);
Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz: Dom Guilherme Werlang (Ipameri-GO);
Comissão Episcopal Pastoral para a Cultura e Educação: Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães (auxiliar de Belo Horizonte-MG);
Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação Social: Dom Dimas Lara Barbosa (Campo Grande-MS) [n.8];
Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e Família: Dom João Carlos Petrini (Camaçari-BA);
Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude: Dom Eduardo Pinheiro da Silva, SDB (auxiliar de Campo Grande-MS) [n.9].
O que estava se desenhando como uma possível guinada do “pêndulo para a direita” – em função dos fatos ocorridos durante a Assembléia anterior, diante das orientações do papa Bento XVI nas visitas Ad limina e das nomeações que aconteceram, ainda no início deste ano, para Salvador e para Dicastérios romanos –, o que podemos perceber é que os bispos, em sua grande maioria, optaram pelo “caminho do meio”.
No entanto, um caminho que faça a retomada da CNBB rumo a uma presença ativa, profética e dialogal com a sociedade brasileira.
Como bem disse o Prof. Márcio Porchmann, ao responder uma pergunta de Dom Tomas Balduíno (bispo emérito de Goiás) [n.10]: “no momento não existe nada que impeça de mudar o curso dos acontecimentos e inovar no sentido de um futuro mais promissor para o país. Não estamos mais submetidos ao regime militar, nem ao FMI. A única coisa que nos impede é o medo de fazer diferente ou o medo de ousar, e nesse sentido a participação da CNBB pode ajudar a mudar esse medo”.
Notas:
1 - Em quase todas as Assembléias este momento é o ponto de partida para as muitas divergências e tensões ao longo do encontro. Os dados percentuais se referem aos resultados de questionários avaliativos aplicados durante a Assembléia Geral. O número de bispos presentes no início da reunião girava em torno de 300.
2 - Como me revelou um importante arcebispo, as relações da Igreja do Brasil com a Cúria Romana “mudaram da água para o vinho”. Segundo ele, depois da viagem do papa Bento XVI ao Brasil por ocasião da canonização de Frei Galvão e da abertura da V Conferência Geral do CELAM em Aparecida, o papa viu que a Igreja do Brasil “não era nada daquilo que pintavam em Roma” e agora existe o maior respeito e cordialidade. Talvez isto explique as muitas nomeações de bispos brasileiros para as atividades e cargos na Cúria romana.
3 - O número de bispos que consideram estes documentos de fraca relevância foram 8% e 14%, respectivamente.
4 - A criação desta Comissão foi uma solicitação dos bispos que acompanham o Setor Juventude nos 17 regionais da CNBB, originalmente vinculado à Comissão do Laicato, em vista de uma maior articulação das “diversas expressões juvenis eclesiais” e também em vista da provável realização da Jornada Mundial da Juventude no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, em 2013. Nossa hipótese é de que esta Comissão dará maior preferência aos chamados “movimentos eclesiais e novas comunidades” em detrimento das Pastorais da Juventude (PJ, PJE, PJMP e PJR).
5 - Esta foi um desmembramento da Comissão de Comunicação, Educação e Cultura.
6 - Tanto D. Belisário quanto D. Leonardo foram membros da Comissão de redação das novas DGAE. Por isso, pode-se pensar que os dois trabalharão pela difusão e implementação mais efetiva delas na vida da Igreja no Brasil nestes próximos quatro anos.
7 - Não houve nenhum reeleito nestas eleições. Portanto, estamos diante de uma Presidência e de um CONSEP completamente renovados. Há uma situação curiosa, que é de Dom Dimas Lara Barbosa que deixou a Secretaria-geral para se tornar o novo presidente da nova Comissão para as Comunicações. Ele é o único que continuará participando das reuniões do CONSEP só que em uma nova função.
8 - Foi anunciado durante a Assembléia, pelo Núncio Apostólico, a nomeação de D. Dimas Barbosa para arcebispo de Campo Grande-MS, deixando de ser bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro.
9 - Curiosidade: os dois bispos de Campo Grande agora fazem parte do CONSEP (!).
10 - A pergunta foi: “Como segunda maior Conferência Episcopal do Mundo, o que podemos fazer de concreto diante das problemáticas que vemos? Ou apenas devemos assistir a tudo com uma postura inerte?”

terça-feira, 17 de maio de 2011

Igreja negocia com os conservadores para impor nova derrota à ultradireita católica

15/5/2011 0:01, Por Gilberto de Souza - do Rio de Janeiro
D. Waldyr Calheiros faz uma análise do quadro político brasileiro

A fragmentação dos partidos da direita no país empurra uma parcela significativa do eleitorado conservador para o centro, com a formação do Partido Social Democrata (PSD), liderado por Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, sob as bênçãos de tucanos e democratas ávidos por uma chance de se aproximar da parcela de centro-esquerda que ocupa o Palácio do Planalto. Esta, por sua vez, realiza um movimento de rápida aproximação do ideário capitalista, demonstrada na recente visita do presidente norte-americano, Barack Obama, ao Brasil e na defesa contundente dos interesses de ruralistas por parte do deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), relator das reformas no Código Florestal.
Os novos tempos da política nacional se refletem na disputa recente entre a parcela mais radical da Igreja Católica, liderada pela Arquidiocese Metropolitana de São Paulo, e setores outrora progressistas, hoje no campo da centro-direita, apenas como uma barreira de contenção ao ultraconservadorismo dos signatários daquele panfleto que acusava a então candidata, a atual presidenta Dilma Rousseff, de defensora do aborto, prócer do comunismo ateu, líder guerrilheira, ladra e assassina.
Às vésperas das eleições, em outubro do ano passado, por encomenda da Diocese de Guarulhos, segundo confessaram os proprietários da gráfica que imprimiu o panfleto intitulado Apelo a todos os brasileiros e brasileiras, assinado pela Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB, a Polícia Federal – a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – abriu um processo, até agora inconcluso, para identificar a participação do bispo D. Luiz Gonzaga Bergonzini, da Diocese de Guarulhos (SP) na campanha de difamação contra Dilma Rousseff.
Na época, liderada pela professora Monica Serra, mulher do candidato derrotado à Presidência da República pelo arco da direita, José Serra, ganhava corpo uma campanha feroz contra a adversária petista. A própria Dilma, em um dos últimos debates em rede nacional de TV, pediu a Serra que impedisse sua mulher de seguir adiante com o bordão sobre o suposto apoio petista ao aborto.
Além da ação dos policiais federais junto às gráficas paulistas, a indignação da artista e coreógrafa Sheila Canevacci Ribeiro, ex-aluna de Mônica Serra, publicada aqui no Correio do Brasil em matéria exclusiva, na qual lembrava o momento em que a mulher de Serra relatara em sala de aula o aborto a que teria se submetido, foi suficiente para que o candidato recuasse e o assunto se visse afastado do noticiário na imprensa conservadora, duas semanas antes das eleições. A reação do Judiciário e da imprensa independente, no entanto, não deteve o objetivo dos bispos ligados aos setores mais retrógrados da Igreja, de ganhar a Presidência da CNBB.
Até o término das eleições na CNBB, encerradas com a posse de Dom Raymundo Damasceno, em missa rezada nesta sexta-feira, a ultradireita tentou ocupar os cargos em disputa. Dom Raymundo foi eleito em segunda votação, com 196 votos, pois no primeiro escrutínio, apesar da dianteira, não alcançou a maioria necessária de dois terços, 182 votos. Em segundo lugar ficou o cardeal Dom Odilo Scherer, com 75 votos.
No primeiro escrutínio, segundo relatório da CNBB, Dom Damasceno obtivera 161 votos contra 91 de dom Odilo. Na primeira votação, também foram votados o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani João Tempesta (14); o arcebispo de São Luís (MA), Dom José Belisário da Silva; o arcebispo de Belo Horizonte (MG), Dom Walmor Oliveira de Azevedo; o bispo de Jundiaí (SP), Dom Vicente Costa; o bispo da prelazia de São Felix do Araguaia (MT), Dom Leonardo Ulrich Steiner e o bispo de Cruz Alta (RS), Dom Friederich Heimler, com um voto cada.
O bispo D. Waldyr Calheiros Novaes, da Diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda, em entrevista exclusiva ao CdB, neste sábado, ao analisar o atual quadro político nacional e seus reflexos na Igreja Católica, definiu o pleito na Conferência como um reflexo das disputas ideológicas em curso no país. A ascensão de D. Raymundo Damasceno, segundo D. Waldir, foi uma forma de conter o avanço da ultradireita, após uma negociação entre os setores progressistas e a centro-direita religiosa.
– A tentativa de setores da Igreja de estabelecer a hegemonia de São Paulo sobre o país incomodava o Nordeste e boa parcela de religiosos de Norte a Sul do Brasil, o que colocou de um lado o cardeal paulistano e, de outro, os representantes das demais dioceses, representados por outro cardeal, D. Damasceno. Embora o atual presidente da CNBB seja de uma linha bastante moderada da Igreja, não se compara ao grupo de bispos que fez aquela besteira (o panfleto) contra o aborto, ainda na campanha eleitoral – avaliou.
A escolha do secretário-geral da CNBB, D. Leonardo Steiner, sucessor do lendário bispo da prelazia de São Félix do Araguaia, D. Pedro Casaldáliga – de atuação decisiva na luta contra a ditadura militar no país – equilibra, de certa forma, a disputa com a ultradireita católica, na análise de D. Waldyr Calheiros.
– A CNBB é um colegiado e, em uma estrutura como esta, a Secretaria-Geral é decisiva no estabelecimento das linhas de apoio às comunidades eclesiais de base, principais redutos de resistência contra a opressão do sistema e último ponto de apoio às comunidades que não têm voz junto à sociedade – afirmou.
Ainda assim, de acordo com o bispo progressista, que resistiu ao lado dos trabalhadores à invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, pelas forças do regime militar em 9 de novembro de 1988, quando três operários foram assassinados e outros 40 sairam feridos do episódio, “os movimentos de base esfriaram no Brasil”.
– As pastorais foram ocupadas por políticos de carreira e perderam muito do objetivo de sua existência ao longo dos últimos anos, o que deixou espaço para o crescimento do conservadorismo observado na ação dos bispos alinhados a D. Odilo Scherer. A disputa na CNBB demonstra o quanto foi necessário se negociar para que se chegasse a um frágil ponto de equilíbrio, preservadas as iniciativas populares de apoio aos grupos mais fragilizados da sociedade – concluiu.
Gilberto de Souza é jornalista, editor-chefe do Correio do Brasil.
http://correiodobrasil.com.br/igreja-negocia-com-os-conservadores-para-impor-nova-derrota-a-ultradireita-catolica/240037/

quarta-feira, 11 de maio de 2011

MATER ET MAGISTRA – 50 ANOS - 15 DE MAIO DE 1961

– Entrevista para o IHU

• Em 2011, completam-se os 50 anos de um dos principais documentos oficiais da Igreja sobre a questão social, a encíclica “Mater et Magistra” de João XXIII. A que conjuntura mundial o Papa buscava se dirigir com esse texto, especificamente nesse momento?

O subtítulo da MM apontava como horizonte de sua conjuntura “a recente evolução da questão social”, tomando como ponto de partida a mensagem de Pio XII, na festa de Pentecostes de 1941, por ocasião do cinquentésimo aniversário da Rerum Novarum de Leão XIII .
Para os vinte anos que se seguiram, João XXIII assinalou mudanças em três diferentes áreas:
1. No campo científico, técnico e econômico: “a descoberta da energia nuclear, as suas primeiras aplicações para fins bélicos e depois a sua utilização cada vez maior para fins pacíficos; as possibilidades ilimitadas abertas pela química aos produtos sintéticos; a difusão da automatização e da automação no setor industrial e no dos serviços de utilidade geral; a modernização do setor agrícola; o quase desaparecimento das distâncias nas comunicações, sobretudo por causa do rádio e da televisão; a rapidez crescente dos transportes; e o princípio da conquista dos espaços interplanetários” (MM 47).
2. No campo social: “a difusão dos seguros sociais e, nalgumas Nações, economicamente desenvolvidas, o estabelecimento de sistemas de previdência social; a formação e extensão, nos movimentos sindicais, duma atitude de responsabilidade perante os maiores problemas econômicos e sociais; a elevação progressiva da instrução de base; um bem-estar cada vez mais generalizado; a crescente mobilidade social e a conseqüente remoção das barreiras entre as classes; o interesse do homem de cultura média pelos acontecimentos diários de repercussão mundial. Além disso, o aumento da eficiência dos sistemas econômicos, em cada vez maior número de Países, evidencia mais ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre o setor agrícola, por um lado, e o setor da indústria e dos serviços de utilidade geral, por outro; e entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas menos desenvolvidas no interior de cada País. No plano internacional são mais melindrosos ainda, os desequilíbrios econômicos e sociais entre países economicamente desenvolvidos e Países em via de desenvolvimento” (MM 48).
3. No campo político: “em muitos Países, a participação na vida pública dum número cada vez maior de cidadãos de diversas condições sociais: a difusão e a penetração da atividade dos poderes públicos no campo econômico e social. Acresce, além disso, no plano internacional, o declínio dos regimes coloniais e a conquista da independência política conseguida pelos povos da Ásia e da África; a multiplicação e a complexidade das relações das relações entre os povos e o aumento da sua interdependência; a criação e o desenvolvimento de uma rede cada vez mais estreita de organismos de projeção mundial, com tendência a inspirar-se em critérios supranacionais: organismos de finalidades econômicas, sociais, culturais e políticas” (MM 49).

Por detrás de cada um dos campos mencionados, encontravam-se eventos, alguns dramáticos, outros espetaculares: na área técnica e científica, a entrada do mundo na era nuclear, com o holocausto da população civil de Hiroshima e Nagasaki, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945; e sua entrada na era espacial, com o lançamento, em 1957, do Sputnik, o primeiro satélite artificial da terra, e a 12 de abril de 1961, do primeiro homem ao espaço, o cosmonauta soviético, Yuri Gagarin, a bordo da nave Vostok 1.
No campo social, o Papa apontava o papel crescente dos sindicatos na melhoria das condições de trabalho e da previdência social, mas também o desequilíbrio entre um setor agrícola “atrasado” frente à rápida “modernização” da indústria e dos serviços.
Na esfera internacional, acenava já para as desigualdades e tensões entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos que estariam no centro da encíclica Populorum Progressio (1967) do seu sucessor, Paulo VI.

No campo político, apontava o abalo dos colonialismos, com a sucessão das independências dos países colonizados pelo império britânico, (Índia e Paquistão, 1947; Sudão, 1956, Gana, 1957, Nigéria, 1960), holandês (Indonésia, 1949), italiano (Líbia, 1951, Somália italiana, 1960), francês (Vietnã, 1954; Tunísia e Marrocos, 1956); espanhol (Marrocos espanhol, 1956). A conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, deu vida ao novo protagonismo internacional de muitas ex-colônias da Ásia e África agrupadas no Movimento dos Países não alinhados, consubstanciando seu desejo de escapar do círculo de ferro da guerra fria que opunha Estados Unidos e União Soviética. O ano de 1960 foi marcado pela tumultuada independência do Congo belga e das colônias francesas africanas (Camarões, Togo, Senegal, Madagascar, Benin, Niger, Burkina Fasso, Costa do Marfim, Chade, Congo Brazaville, Gabão, Mali, Mauritânia), com exceção da Argélia que só foi liberada, após sangrenta guerra que durou de 1954 a 1962. Do ponto de vista eclesial, João XXIII respondeu ao movimento de descolonização africana, de forma rápida e corajosa, substituindo os arcebispos e bispos nomeados dentre os missionários franceses, belgas, ingleses, por uma centena de jovens presbíteros locais, muitos deles apenas entrados em sua terceira década de vida. Ao serem substituídos por bispos africanos, alguns desses bispos missionários estrangeiros na África vieram parar no Brasil, como Mons. José Florisberto Cornelis, monge beneditino belga, arcebispo de Lubumbashi (Elisabethville no Katanga congolês), e que foi acolhido como auxiliar de Salvador na Bahia e, posteriormente, como bispo de Alagoinhas, BA (1974-1986) e Mons. Gérard Milleville, francês, arcebispo de Conakry (1954-1962), na República da Guiné, recebido por Dom Delgado, como se auxiliar, em Fortaleza (CE), em 1964.
Em meio à euforia das independências, a Encíclica já advertia para a sombra insidiosa do neo-colonialismo, sob o disfarce de cooperação técnica e financeira e de ajuda ao desenvolvimento:
“Onde quer que isto se verifique, deve-se declarar, explicitamente, que estamos diante de uma nova forma de colonialismo, a qual, por mais habilmente que se disfarce, não deixará de ser menos dominadora que a antiga, que muitos povos deixaram recentemente. E essa nova forma prejudicaria as relações internacionais, constituindo ameaça e perigo para a paz mundial” (MM 172).
João XXIII prega, ao contrário, uma nova postura de cooperação internacional desinteressada e solidária.


• Quais foram as grandes novidades do documento – em termos eclesiais, econômicos e sociais – e, analisando os percursos históricos desde então, quais foram as suas limitações?

Em termos eclesiais, destacamos três novidades:
- A Igreja apresenta-se, assim o sublinha o próprio título da Encíclica, como Mater et Magistra, Mãe e Mestre. A ênfase, entretanto, recai sobre sua dimensão de Mãe, que mais anima do que reprova, mais corrige do que condena, mais ama do que recrimina. Insiste-se na justiça, mas acompanhada de misericórdia, e faz-se apelo às reservas de altruísmo, bondade e solidariedade presentes nos seres humanos e mesmo nas Nações, contrariando o mote corrente, de corte exclusivista e egoísta de que “Nações não têm amigos, mas só interesses”.
- Antecipa o que será a marca registrada de sua encíclica de dois anos depois, a Pacem in Terris, em que, por primeira vez, um documento pontifício é endereçado não apenas ao “episcopado, ao clero e aos fieis”, mas “a todos os homens de boa vontade”. Dirigindo-se João XXIII a grande multidão de fieis reunidos na Praça São Pedro, no dia 14 de maio de 1961, às vésperas do dia em que deveria ser proclamada a Encíclica, ele deixa escapar quais eram, segundo seu coração, os destinatários da mesma:
“Queremos confessar-vos que o nosso plano era, na verdade, oferecer-vos e a toda a Igreja Católica, justamente no dia do faustíssimo transcurso dos 70 anos da Rerum Novarum – 1891 – 15 de maio – 1961 – este terceiro documento de valor universal, em forma de Carta Encíclica: ampla, solene. Temos a alegria de vos assegurar que a promessa está mantida: a Encíclica está pronta. Mas a solicitude de fazê-la chegar a todos os que acreditam em Cristo e a todas as almas retas espalhadas pelo mundo (grifo nosso), à mesma hora, no texto oficial latino e nas várias línguas faladas, Nos aconselha a retardar um pouco a entrega do texto” .
A preocupação de que texto chegasse, ao mesmo tempo e em todo o mundo, nas diversas línguas, em não apenas em latim, fez com que a Encíclica só fosse divulgada dois meses depois em 15 de julho de 1961. Essa preocupação do Papa, que ele chamou de “solicitude”, demonstra cabalmente que sua Carta Encíclica estava dirigida não tanto aos estreitos círculos eclesiásticos, que presumivelmente podiam ler e entender o latim, mas aos cristãos comuns e, para além das fronteiras da Igreja e dos crentes, a “todas as almas retas, espalhadas pelo mundo”.

- Ao apontar os trabalhadores e os leigos em geral como protagonistas da ação pela transformação das estruturas injustas na esfera econômica e social, o Papa rompe o círculo estreito do mundo eclesiástico. Afirma que a construção de um mundo mais justo é tarefa de todas as pessoas e também das instituições civis nacionais e internacionais, dos Estados e dos sindicatos. É neste sentido que se deve compreender o inusitado apoio oferecido, num documento pontifício, a duas organizações internacionais, a Organização Internacional do Trabalho, a OIT e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, a FAO .
Sobre a OIT, assim se expressa o Papa:
“Nem podemos aqui deixar de dirigir nossas homenagens e manifestar nossa estima à Organização Internacional do Trabalho. Há anos ela vem trabalhando, de maneira inteligente e eficaz, para implantar em todo o mundo uma ordem econômica e social conforme as normas de justiça e de humanidade, na qual os legítimos direitos dos trabalhadores sejam reconhecidos e respeitados” (MM 103).
Acerca da FAO declara João XXIII:
“Não podemos deixar de manifestar aqui, a nossa especial estima às iniciativas da instituição conhecida abreviadamente por FAO, que se ocupa do problema da alimentação dos povos e do fomento da agricultura. Com efeito, esta organização se propõe, especialmente, apoiar as relações mútuas dos povos, promover a modernização da agricultura nos países economicamente menos desenvolvidos e, enfim, ajudar os povos vítimas das penúrias da subalimentação” (MM 156) .

- Num plano mais delicado, a MM, aborda a cooperação dos católicos, na construção de um mundo mais justo, com pessoas de outros credos e, ainda, com os que declaram agnósticos ou ateus - leia-se, nas entrelinhas, pessoas engajadas em movimentos sociais e políticos de corte socialista. Naquele momento, era vivo o debate na Itália acerca de uma ”apertura alla sinistra”, “abertura à esquerda”, que propugnava uma aliança entre a Democracia Cristã e o Partido Socialista. No Brasil, era grande a tensão da hierarquia com a JUC (Juventude Universitária Católica), por causa de sua aliança com estudantes de outras forças de esquerda, tendo em vista a conquista nas eleições para a direção da União Nacional de Estudantes (UNE).
Sobre o tema, assim se exprime a Encíclica:
“Os católicos no exercício de suas atividades econômicas e sociais, não raro se relacionam com pessoas que têm uma concepção de vida diferente. Nessas ocasiões, eles devem ter todo o cuidado em permanecer sempre coerentes consigo mesmos, sem admitir concessões que representem qualquer prejuízo para a integridade da religião ou da moral. Por outro lado, mostrem-se solícitos em acolher com equidade e boa vontade, o parecer dos outros, sem referir tudo aos próprios interesses, e estejam prontos a colaborar com lealdade e união de forças (grifo nosso), no que for bom por sua natureza ou redutível ao bem” (MM 239).
A questão é retomada de maneira mais explícita e aberta na Pacem in Terris (157-160), afirmando o dever de os católicos se empenharem na busca da justiça e da paz, tendo para tanto que cooperar com pessoas com outras concepções de vida, militando nos mais diversos espectros políticos:
“A aplicação delas (linhas doutrinais) oferece, por conseguinte, aos católicos vasto campo de colaboração tanto com cristãos separados desta Sé Apostólica, como com pessoas sem nenhuma fé cristã, nas quais, no entanto, está presente a luza da razão e operante a honradez natureza…” (PT 157).
Prossegue a Encíclica com a distinção que se mostrou cada vez acertada e liberadora. O Papa propõe que se distinga o erro, da pessoa que erra e, sobretudo, os movimentos sociais e sua evolução histórica das ideologias que os inspiraram:
“158. Não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa nem perde nunca a dignidade do ser humano e, portanto, sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade. Nem lhe faltam nunca neste intuito os auxílios da Divina Providência. Quem, num certo momento de sua vida, se encontra privado da luz da fé ou tenha aderido a opiniões errôneas, pode depois de iluminado pela divina luz, abraçar a verdade. Os encontros nos vários setores da ordem temporal, entre católicos e pessoas que não têm fé em Cristo ou têm-na de modo errôneo, podem ser para estes ocasião ou estímulo, de chegarem à verdade.
159. Além disso, cumpre não identificar falsas idéias filosofias sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem, com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas idéias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquela que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto é suscetível de alterações profundas. De resto, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos, dignos de aprovação.
160. Pode, por conseguinte, acontecer que encontros de ordem prática, considerados até então inúteis, possam vir a ser amanhã, verdadeiramente frutuosos. Decidir se já chegou tal momento ou não, e estabelecer em que modos e graus se hão de conjugar esforços na demanda de objetivos econômicos, sociais, culturais, políticos, que se revelem desejáveis e úteis, para o bem comum, são problemas que só pode resolver a virtude da prudência, moderadora de todas as virtudes, que regem a vida individual e social. No que se refere aos católicos, compete tal decisão, em primeiro lugar, aos que ocupam cargos responsabilidade nos setores específicos da convivência, em que tais problemas ocorrem, sempre, contudo, de acordo com os princípios do direito natural, com a doutrina social da Igreja e as diretrizes da autoridade eclesiástica” (PT 158-160).

Em termos econômicos e sociais, a novidade da MM foi trazer para o horizonte da questão social, até então, praticamente identificada com a questão operária, os graves problemas do setor agrícola e dos trabalhadores do campo; o grito dos que passam fome, a dificuldade do acesso à terra para os que nela trabalham, os desequilíbrios entre a agricultura, a indústria e os serviços e ainda as injustas disparidades entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, vistas como grave ameaça à paz mundial. O tema será amplamente retomado e desenvolvido seis anos depois por Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio, expresso de maneira lapidar na frase tantas vezes repetida: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” .

Levantando-se a questão das limitações da encíclica, vistas a partir de hoje, a mais flagrante talvez, seja sua posição no campo da demografia e da família e na questão do meio ambiente.
Ao tratar do primeiro tema, a Encíclica minimiza o desequilíbrio entre o crescimento da população e os meios de subsistência, dizendo:
“A bem dizer, no plano mundial a relação entre o aumento demográfico e os meios de subsistência não cria graves dificuldades, seja no momento, seja em um futuro próximo” (MM 188).

A Encíclica apostava que o progresso científico e técnico seria capaz de cobrir a demanda por alimentos e outros bens por parte de uma crescente população mundial. Aposta errônea, pois hoje mais de um bilhão de pessoas segue padecendo de fome crônica, embora não fosse de todo disparatada sua previsão. Com efeito, os rendimentos agrícolas mais que triplicaram em muitos lugares, com a extensão da irrigação, o uso de sementes melhoradas, de técnicas de correção e conservação do solo, utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas, aplicação da genética na melhoria dos rebanhos e na produção de carne, leite, ovos, etc. Por outro lado, agravou-se a escassez de água doce, visto que a agricultura e pecuária são responsáveis por mais de 85% do seu uso e aumentou enormemente a contaminação do solo, do ar e das águas, plantas, animais e seres humanos pelos agrotóxicos. O uso de organismos geneticamente modificados elevou os riscos para a saúde humana. O controle da cadeia produtiva por parte das grandes multinacionais do agronegócio que produzem sementes transgênicas, fertilizantes e defensivos agrícolas prejudicou ou mesmo alienou a agricultura familiar, vem provocando o desaparecimento da diversidade genética e das sementes caboclas e dificultando o cultivo de produtos orgânicos livres de agrotóxicos. Por sua vez, a produção de alimentos é hoje suficiente para alimentar com folga toda a humanidade, mas o acesso aos mesmos por parte de todos é travado pelo seu alto custo, pela disparidade de renda e pobreza de muitos consumidores, por protecionismos, problemas de transporte e armazenamento e especulação do mercado.

Ao tratar do planeta terra, a Encíclica afirma:
“Além disso, Deus, em sua bondade e sabedoria, ao mesmo tempo em que espalhou pela natureza, uma capacidade quase inesgotável de produzir, dotou o homem de inteligência arguta para que, servindo-se dos meios técnicos adequados, posa transformar os produtos naturais, a fim de satisfazer as exigências e necessidades de sua vida” (MM 190).
Visão ingênua esta sobre a capacidade inesgotável da terra, hoje sobre-explorada e incapaz de refazer-se da degradação a que foi submetida.

É certo que um pouco mais adiante, ao retomar o tema do “crescei e multiplicai-vos” e do “povoai a terra e dominai-a”, a Encíclica introduz uma advertência explícita:
“O segundo desses mandamentos, longe de ter em vista a destruição das coisas, destina-as, ao contrário, à utilidade da vida humana” (MM 197).
Frente à questão demográfica minimizada pela Encíclica, apenas quatro anos depois, o Concílio Vaticano II, tomou posição em favor da paternidade e maternidade responsáveis, admitindo que os esposos “podem achar-se em circunstâncias em que, ao menos, por certo tempo, o número de filhos não deve crescer” (GS 360) e que os governos, dentro dos limites da ética, carregam responsabilidades nesse campo. O Concílio faz ainda apelo aos cientistas, tendo em vista o controle da natalidade:
“Os especialistas em ciência, mormente biológicas, médicas, sociais e psicológicas, podem contribuir grandemente para o bem do matrimônio e da família e a paz das consciências, se, mediante estudos comparados, se esforçarem por esclarecer mais profundamente as condições que favorecem a honesta regulação da procriação humana” (GS 367).

Muitas das perspectivas e portas abertas pelo Concílio foram assumidas pela Encíclica Humane Vitae (1968), na sua primeira parte, em que coloca o amor conjugal e o mútuo afeto entre os cônjuges como o centro do matrimônio, amor ao mesmo tempo fecundo e responsável. Apela para uma paternidade e maternidade responsáveis. Trava, porém, a utilização dos meios chamados “artificiais” de controle da fecundidade e, mais especificamente, da pílula anticoncepcional, considerando legítimo apenas o recurso aos períodos infecundos da mulher. A Humanae Vitae trouxe conflitos de consciência para muitos casais, mas provocou, em seguida, um gradativo e silencioso afastamento de suas normas, comprovado pelo o crescente uso dos meios contraceptivos pela população em geral, incluindo-se os casais católicos praticantes.

. Que impactos a encíclica provocou no Brasil, em seu contexto político, econômico, eclesial e social de então (período pré-ditadura, ligas camponesas, reforma agrária, legalidade etc.), especialmente nas questões da propriedade, da terra e do bem comum?

O país vivia grande efervescência no início dos anos 60, com a inauguração de Brasília, do breve e agitado governo de Jânio Quadros que condecorara Che Guevara e cujo vice-presidente, João Goulart, encontrava-se na China, quando de sua renúncia; inflação galopante e recessão econômica, tanto mais desconcertante quanto o país havia experimentado décadas seguidas de constante crescimento econômico.

A intensa repercussão da encíclica de João XXIII no Brasil e sua pronta recepção pela Igreja local, em que pesem as polêmicas e divisões que suscitou na sociedade e na própria Igreja, só são compreensíveis à luz de três considerações relativas à Encíclica, ao país e à Igreja.
Quanto à encíclica, esta aborda dois problemas até então mantidos na sombra da doutrina social da Igreja, mas que se encontravam no centro do momento histórico brasileiro: o do subdesenvolvimento e o da questão social no campo. Juscelino Kubitscheck (1956-1960) havia convocado a nação a superar seu atraso econômico, crescendo 50 anos em 5. O país cresceu, modernizou-se aceleradamente, mas ao mesmo tempo colocou a nu o profundo empobrecimento do campo, chamado a favorecer a acumulação do capital industrial e a fornecer alimentos a baixo preço para as massas que migraram para as cidades. Aumentaram também as diferenças regionais entre o sul industrializado, urbanizado e enriquecido e um nordeste abandonado e empobrecido. O exemplo explosivo de Cuba e de sua revolução, expropriando os grandes latifúndios e entregando terra aos camponeses repercutiu profundamente no nordeste canavieiro, onde se viviam situações semelhantes de miséria e opressão no campo.
É no contexto, pois, da rápida radicalização no campo e no cenário político urbano, frente ao problema do sub-desenvolvimento e de suas saídas e de crescente envolvimento da Igreja brasileira nos embates sociais, que chega a encíclica Mater et Magistra.
Três episódios permitem colher o clima e as condições em que se dá a recepção da MM na sociedade brasileira e na Igreja. Todos buscam valer-se da palavra do Papa para legitimar posições cada vez mais antagônicas no campo social e político:
1. Os textos pontifícios eram tradicionalmente publicados no país pela Editora Vozes de Petrópolis. A MM sai também publicada por editoras leigas, como a José Olympio, em dois formatos, um popular e outro em dois volumes, com amplos comentários. A encíclica é ainda publicada em jornais de grande circulação e por sindicatos. Conhece ademais edições financiadas por grupos diametralmente opostos no espectro político, por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e líder do PTB e pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Sob uma fachada inocente de estudos sociais, o IPES patrocinava a desestabilização do Governo João Goulart. Tentava aglutinar setores importantes do empresariado, tanto nacional quanto internacional e atrair setores da Igreja, das universidades, da grande imprensa e de sindicatos não combativos. Trabalhou intimamente com a CIA e a Embaixada norte-americano, financiando campanha eleitoral de candidatos anti-comunistas através do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e preparando o golpe de 1964 que levou o país a sofrer 21 anos de ditadura militar. O IPES foi também um dos responsáveis por preparar projetos “alternativos” de reforma agrária, destinados apenas a bloquear a tramitação do projeto de reforma agrária do Governo Goulart.
Inversamente, no RS, o governador Leonel Brizola, empenhado em iniciar a reforma agrária no seu estado, face às hesitações e tergiversações do congresso nacional, onde a maioria conservadora bloqueava a sua discussão e aprovação, mandou imprimir e distribuir largamente o texto da MM, utilizando-o em sua campanha pela reforma agrária no estado.

2. Enquanto o centenário jornal “O Estado de São Paulo”, tradicional defensor dos interesses da grande propriedade rural e depois industrial e financeira, dizia que a MM consagrava a inviolabilidade do direito de propriedade e por isso condenava a reforma agrária, camponeses sem terra do Rio Grande do Sul, em número de 5 mil, armavam, um grande acampamento em terras públicas no município de Sarandi, Ali, ergueram um grande crucifixo de maneira e levantaram faixas com os dizeres: “Acampamento João XXIII. Somos cristãos. Queremos terras” .

3. Em 1960, reagindo à tímida reforma agrária de Carvalho Pinto no governo paulista, que alocava pequenos lotes de terras públicas ociosas a trabalhadores rurais sem terra, dois bispos, Dom Antônio de Castro Mayer de Campos, RJ e Dom Geraldo Proença Sigaud, na época, bispo de Jacarezinho, PR e, posteriormente, arcebispo de Diamantina, MG, escreveram com o conhecido fundador da TFP (Tradição, Família e Propriedade), Plínio Correa de Oliveira, e com o economista de associações patronais, Luiz Mendonça de Freitas, o alentado volume: Reforma Agrária: Questão de Consciência . O livro descreve toda e qualquer reforma agrária, que tocasse a propriedade da terra, como programa intrinsecamente socialista e anti-cristão. O arcebispo de Goiânia, Dom Fernando Gomes, reagiu á publicação do livro, interpelando os autores, para que explicitassem qual seria a “reforma agrária de inspiração cristã” que estes se diziam dispostos a apoiar. Denunciava, ao mesmo tempo, sua “preocupação absorvente de ver ‘socialismo’ em quase tudo” . Dom Castro Mayer respondeu longamente ao arcebispo, reiterando seus pontos de vista . Dom Fernando voltou a a responder-lhe, valendo-se desta vez da recém-publicada MM e buscando colocar um ponto final na polêmica:
“Quanto às outras considerações do artigo… temos, para júbilo de todos, a palavra autorizada e esclarecedora do Santo Padre, João XXIII, na recente encíclica MM. Que mais poderíamos dizer? Nela, o caminho seguro para a solução dos problemas sociais de nossa época. Nela, em termos altos e definidos, os princípios de uma Reforma Agrária Cristã” .

Na prática, a MM deu vigoroso impulso à linha de compromisso social da Igreja do Brasil e, de modo particular, ao seu crescente engajamento nas questões relativas à reforma agrária, à sindicalização rural e à educação de base no campo .
A 05 de outubro de 1961, a Comissão Central da CNBB publicou declaração programática, tomando por base a MM e aplicando-a à realidade brasileira.
Após manifestar seu regozijo pela publicação da encíclica, diz que a mesma era “oportuna para o mundo e oportuníssima para o caso especial do Brasil” .
Do conjunto dos temas tratados na Encíclica, a CNBB volta-se exclusivamente para o meio rural:
“[…] cuja situação é grave e que mereceu todo um longo capítulo da Encíclica, a propósito de ‘exigências de justiça em relação aos setores de produção’. Dele extraímos um roteiro de atividades que, para os católicos, é um programa ideal, mas que é válido para todos, independentemente de religião” .

A Declaração repassa, resumidamente, os principais tópicos da Encíclica, para concluir com dois blocos de recomendações especiais, voltadas para a situação brasileira:

“Na esperança de ver, quanto antes, aplicadas a nosso meio rural essas diretrizes, merecem-nos recomendações especiais, os seguintes movimentos:

- Ação Católica Rural (ACR), a Juventude Agrária Católica (JAC) e a Liga Agrária Católica (LAC) são dignas de apoio prioritário, traduzido em tempo, interesse e sacrifício. São, por excelência, a presença de Cristo entre os trabalhadores do campo. Ajudar a afirmar a Ação Católica Rural e assegurar ao meio rural mística bastante forte para contrabalançar e superar a mística comunista.

- Sindicalização Rural. A experiência iniciada no Nordeste, de formação de líderes para a sindicalização rural é digna de ser estendida a todos os centros rurais, sobretudo quando agitados por reivindicações justas, mas conduzidas com segundas intenções.
O Secretariado Geral de nossa Conferência está apto a fornecer aos Bispos interessados pelo assunto todos os dados necessários.

- Frentes Agrárias. Sugerimos à dioceses rurais que acompanhem, com o mais vivo interesse, a experiência das Frentes Agrárias surgidas no Paraná e no Rio Grande do sul. Talvez, um dia, se possa pensar na articulação nacional das Frentes.

- Movimento de Educação de Base. Para a divulgação do Roteiro de atividades, como para expansão da JAC, da sindicalização Rural e das Frentes Agrárias, o instrumento providencial que temos em mãos é o Movimento de Educação de Base (MEB), através de Escolas Radiofônicas. Reiteramos nossa confiança no MEB e estamos certos de que, sem educação de base, será vão o esforço de mera recuperação econômica, por mais aparato técnico de que se revista o planejamento.

- Planejamento apostólico. A Comissão Central da CNBB vê, com o maior interesse, as experiências pastorais que se realizam em diversas diocese, dentro da prudência e do zelo apostólico, adaptadas às exigências da hora atual” .

Por outro lado, o documento não esconde sua preocupação com a movimentação dos partidos de esquerda, ao arrepio do tradicional controle da Igreja sobre as populações rurais. Alarmava-se com o sucesso das Ligas Camponesas de Francisco Julião na zona canavieira de Pernambuco e dos estados vizinhos, no Nordeste e denunciava improvável movimento guerrilheiro na região:

“Em face da expansão comunista no meio rural. Os comunistas, no campo ou na cidade, não se interessam realmente pelas soluções. Ao contrário, para eles, quanto pior melhor.
Mas o fato grave que denunciamos é que os agitadores vermelhos, em várias frentes, se preparam para a tática de guerrilhas, de acordo com os melhores exemplos cubanos e chineses.
Assim, como não podemos parar no mero anticomunismo, simplista e contraproducente, não podemos ser ingênuos a ponto de entregar-nos a grandiosos planos de recuperação econômico-social dos meios rurais (alusão às divergências quanto ao trabalho da SUDENE no Nordeste – nota do autor), esquecidos da retaguarda e dos flancos invadidos pelos guerrilheiros. “Em cada diocese, cabe à perspicácia do Pastor descobrir os meios práticos de defender o rebanho” .
Os bispos, ao mesmo tempo em que se posicionam claramente pelas reformas e pelo compromisso da Igreja em sua efetivação, vêem todos os perigos subirem pelo lado da esquerda. É interessante notar que, na mesma época, o principal líder do laicato católico apontava as nuvens que se acumulavam noutro horizonte, com prenúncios de golpe pela direita:
“Ora, quem procura combater a miséria, transformar o regime latifundiário num regime de propriedade rural mais bem distribuída, atender ao que há d justo nos programas socialistas ou comunistas, por em prática a Mater et Magistra e a Pacem in Terris, neutralizar a ação de certos líderes, incorporando-os a um esquema ‘ reformista’ do Governo, está fazendo o oposto do que convém aos totalitários sejam comunistas, sejam neofacistas (…). O perigo neofascista no Brasil, como proclamo há muito tempo, é mais premente do que o perigo comunista” .

A encíclica que havia tirado as questões ligadas ao secular problema do latifúndio e da exploração dos trabalhadores no campo de manifestações isoladas, como a do Bispo de Campanha, Dom Inocêncio Engelke, com sua pastoral de 1950, “Conosco, sem nós ou contra nós, se fará a Reforma Rural”, ou de pronunciamentos regionais, como o do episcopado paulista de 05 de dezembro de 1960, acabou trazendo-as para um amplo debate nacional, como vimos acima .
Ensejou também a mais contundente manifestação do Episcopado Brasileiro sobre o tema, preparada para o dia 1º. de maio de 1963, logo depois da publicação da Pacem in Terris e que abaixo transcrevemos, :

“Ninguém pode desconhecer a situação de milhões de nossos irmãos que vivem nos campos, sem poder participar dos benefícios do nosso desenvolvimento, em condições de miséria que constituem uma afronta à dignidade humana. Sabemos que o simples acesso à erra não é solução cabal para o problema. Mas o julgamos inadiável para a realização do direito natural do homem à propriedade (Pacem in Terris), medida a ser concomitantemente tomada, segundo as condições peculiares das diversas regiões do País, com outras de ordem educacional, técnica, assistencial e creditícia. Para a realização desse imperativo, a desapropriação por interesse social não contraria em nada a doutrina social da Igreja, mas é uma das formas viáveis de realizar, na atual conjuntura brasileira, a função social da propriedade rural. Evidentemente, esta desapropriação, que visa a garantir o exercício do direito de propriedade ao maior número, não pode desrespeitar e destruir este mesmo direito. Daí a necessidade da justa indenização, que deverá ser feita dentro dos critérios da justiça, atendendo às possibilidades do país e às exigências do bem comum. Não cremos constituir um atentado contra o direito de propriedade uma indenização total ou parcialmente em dinheiro ou em títulos da dívida pública., dando-se a estes títulos as garantias de revalorização, de vencimentos e de poder liberatório pelos quais constituam uma adequada compensação pelos bens desapropriados.
Não cabe, entretanto, a nós definir que fórmula, poderá melhor responder às condições atuais da realidade brasileira. Lembramos que, na consecução do objetivo visado, é responsabilidade grave da União e dos Estados dar exemplo e estímulo, começando, desde já, com a distribuição equitativa de suas terras, quando não constituírem reservas patrimoniais, como no caso das reservas florestais preservadoras da flora, da fauna e dos mananciais de água e do regimen das chuvas e do clima ameno. Nem menos urgente é a utilização imediata de latifúndios improdutivos, seja através de uma pesada tributação, seja através de sua repartição oportuna.
Fazemos, porém, uma grave advertência aos responsáveis pelo problema da reforma agrária, que no desempenho de suas funções nunca se deixem levar por paixões pessoais ou políticas, mas tenham sempre em vista os imperativos indeclináveis do bem comum.
Toda nova ordem que se deseja para o meio rural deve obedecer ao princípio “de que os promotores do desenvolvimento econômico, do progresso social, do soerguimento cultural nos meios rurais devem ser os próprios interessados, os agricultores” (Mater et Magistra).

Ao admitir que as desapropriações de terra não precisassem ser pagas, no ato e em dinheiro, como exigiam estridentemente os grandes proprietários, inclusive de terras ociosas e mantidas a título de especulação imobiliária, mas que podiam ser indenizadas em títulos da dívida agrária e a longo prazo, a CNBB se colocava ao lado dos que tentavam viabilizar a reforma agrária desenhada pelo Governo Goulart e ameaçada tanto pela ferrenha oposição ideológica, quanto pela falta de recursos imediatos.



• Como ela foi recebida também por parte da Igreja latino-americana e brasileira? Houve algum tipo de aprofundamento regional das questões evocadas no texto papal por parte da Igreja junto aos governos?

Na Igreja latino-americana as reações não foram, nem podiam ser uniformes. O México já havia passado pela revolução camponesa de Emiliano Zapata, em 1910 e pela reforma agrária de Lázaro Cárdenas na década de 30, com a Igreja sendo mantida longe das questões sociais, desde a violência anti-religiosa do governo de Plutarco Elias Calles (1924-1928) e dos acordos que se seguiram ao levante Cristero; Bolívia havia conhecido sua revolução camponesa e a reforma agrária, em 1953. Na década de 60, à raiz da revolução cubana, por toda a América Latina o tema da reforma agrária estava entrando na agenda social e política dos movimentos sociais e partidos políticos, mas também das Igrejas. Neste clima, foi intensa a repercussão da Mater et Magistra e, em todo o continente. Ela plantou as sementes do amplo movimento de apoio da Igreja aos movimentos camponeses e indígenas que ganhou corpo com Medellín, em 1968. No Brasil, a herança mais fecunda da MM encontra-se na criação e nos trabalhos da Pastoral da Terra, fundada em junho de 1975 e no documento da CNBB,maduro e inovador, em termos de doutrina social da Igreja, A Igreja e os problemas da terra (1980) . Ali se introduz a distinção entre “terra de trabalho” e “terra de negócio”, ao lado da “terra comunitária” dos povos indígenas e se proclama o apoio da Igreja às iniciativas e organizações dos trabalhadores e dos seus movimentos, assim como à reforma agrária e à mobilização dos trabalhadores para exigir sua aplicação.

• A MM foi publicada alguns meses antes da convocação do Concílio Vaticano II, em dezembro do mesmo ano. Que aspectos a encíclica já prediz ou destaca a respeito dos debates que ocorreriam no Concílio diante dos desafios desse período histórico e eclesial?

A Encíclica feriu muito dos temas que foram posteriormente discutidos e aprofundados no Vaticano II. A tomada de posição da Gaudium et Spes sobre o acesso à terra nos países mais pobres, inspira-se diretamente na Mater et Magistra:

“Em muitas regiões economicamente menos desenvolvidas existem grandes ou também extensíssimas propriedades rurais, pouco cultivadas, ou sem cultura alguma, à espera de valorização, enquanto a maior parte do povo não tem terra ou dispões somente de parcela mínimas, e, por outra parte, o desenvolvimento da produção nos campos se apresenta de urgência evidente. Não raro, os que contratados pelos donos para o trabalho, ou que cultivam uma parte a título de locação, recebem somente um salário ou produção indignos do homem, são privados de habitação decente e são explorados pelos intermediários. Sem segurança alguma, vivem debaixo de tal servidão pessoal, que lhes é tirada quase toda a possibilidade de iniciativa e responsabilidade, sendo-lhes proibida qualquer promoção cultural humana e participação na vida social e política. Portanto, em vários casos, as reformas são necessárias para o crescimento das remunerações, o melhoramento das condições de trabalho, o aumento de segurança no emprego, o incentivo à iniciativa de trabalho e, também, a distribuição das terras insuficientemente cultivadas com aqueles que consigam torná-las mais produtivas. Em tal caso, devem ser fornecidos os recursos e meios necessários, sobretudo os subsídios de educação e as possibilidades de uma justa organização de cooperativas. Todas as vezes que o bem comum exigir uma expropriação, deve ser estipulada indenização de acordo com a equidade, levando-se em conta todas as circunstâncias” (GS 438).

Comparecem igualmente na Mater et Magistra e no Concílio, mormente na Gaudium et Spes, outros temas já levantados pela MM, como o do desenvolvimento, cuja critério e medida primeira é o serviço prestado aos homens (MM GS 417); o das exigências de justiça entre os países de desigual desenvolvimento econômico (MM 157-184e GS 421-423), o da solidariedade internacional entre os povos (MM 158-160 e GS 505-507), o da questão demográfica entrelaçada com o desenvolvimento (MM 185-199 e GS 502-504) e vários outros, como a destinação universal dos bens, a função social da propriedade, já recorrentes na doutrina social da Igreja.

DEIXO DE RESPONDER À PERGUNTA ABAIXO, POR ESTAR DE CERTO MODO CONTEMPLADA EM RESPOSTAS ANTERIORES E POSTERIORES
• A MM fundamenta-se em encíclicas anteriores (“Rerum Novarum” e “Quadragesimo Anno”) e também serve de fundamento para textos posteriores (“Pacem in Terris” e “Gaudium et Spes”). Como o senhor analisa, em traços gerais, as questões levantadas por esses documentos oficiais da Igreja e suas interconexões sobre a questão social?

• A partir das idéias defendidas na MM e em suas demais encíclicas, que avaliação o senhor faz da figura de João XXIII dentro do seu contexto histórico? Qual o significado do seu papado e seu legado?

João XXIII é figura maior para a virada de uma Igreja focada menos em si mesma e mais nas necessidades e angústias de toda a humanidade. Ao deslocar o esforço eclesial para estar atento aos sinais dos tempos e para e responder grito dos pobres, escapou da secular armadilha de que bastava enunciar a doutrina correta e condenar os erros, para se resolver os ingentes problemas da humanidade e da Igreja..
O seu papado foi capaz de convocar, abrir e colocar num bom rumo, o Concílio Vaticano II, o mais importante evento eclesial do século XX levado a bom termo por seu sucessor Paulo VI.
João XXIII inseriu a Igreja católica no amplo movimento ecumênico do século XX, abriu o diálogo com os judeus, com os crentes de outras religiões e com os não-crentes, na convicção de que todos os seres humanos fazem parte da mesma família de Deus e têm responsabilidades recíprocas.

Teve decidida atuação em favor da paz, superando os limites, insuficiências e falácias da assim chamada guerra justa, para proclamar com toda clareza que, diante das modernas armas químicas, biológicas nucleares que colocam em risco a sobrevivência da humanidade, nenhuma guerra pode ser considerada justa. Para proteger os fracos de agressões injustificadas pediu o reforço e aperfeiçoamento de instâncias internacionais de diálogo, mediação e superação dos conflitos.


• Desde a publicação da MM até chegarmos à recente encíclica “Caritas in Veritate”, de Bento XVI, que também aborda essa temática, que avaliação o senhor faz do atual ensino social da Igreja? Que aspectos foram corrigidos, aprofundados e ultrapassados desde então? Que outras questões ainda merecem uma atenção maior, diante da contemporaneidade?

A 07 de julho de 2009 Bento XVI publicou, com quase dois anos de atraso em relação à data prevista, sua encíclica social sobre o “desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. Esta propunha comemorar os 40 anos da Populorum Progressio (1967-2007), e ao mesmo tempo retomar e atualizar seus grandes temas. O projeto entrou em compasso de espera frente a grave crise financeira iniciada em 2007 e precipitada em 2008, convertendo-se na mais grave crise econômica mundial desde o desastre de 1929. Provocou imediato desemprego nas economias centrais e depois nas periféricas, com aumento dos preços dos alimentos e conseqüente recrudescimento da fome no mundo.
“Que Bento XVI tenha recordado na Caritas in Veritate que ‘a fome ceifa ainda a vida de muitíssimos Lázaros impedidos de sentar-se à mesa… do rico epulão” (CV 27), que a reforma agrária siga sendo urgente; que o acesso à alimentação e à água sejam direitos universais de todos os seres humanos sem distinção ou discriminações (CV 27) não é nenhum pleonasmo”, comentava Il Regno no seu editorial de apresentação da encíclica . Recordou ainda que “Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra” (CV 27).
O Papa reafirmou também o papel reitor da política na esfera econômica, que não pode ser deixada ao sabor das leis cegas do mercado, sem nenhum controle da parte do Estado, e muito menos subtrair-se às exigências da ética, (CV 39 e 45 a 48), ao dever da cooperação internacional e da solidariedade (CV 47). Suas referências deviam ser, de um lado, o bem comum e, de outro, a centralidade da pessoa humana e do seu bem estar material e espiritual (CV 47).
Sublinhou o Papa a necessidade de um sistema global com três sujeitos, o mercado, o Estado e a sociedade, sem a atual ditadura imposta pelo mercado em particular o financeiro, que opera sem qualquer referência às necessidades humanas mais prementes ou ao bem comum da humanidade (CV 38).
Sua novidade maior encontra-se na IV parte, em que aborda o tema da relação dos seres humanos com a natureza e a grave crise ambiental em que está mergulhado o planeta (CV 49-52). Muitos ambientalistas consideraram, entretanto, que o tratamento dado à temática ficou aquém da gravidade e urgência do aquecimento global e de outros desequilíbrios e desastres ambientais.
O tema não fazia ainda parte da agenda global nem da sociedade nem da Igreja, quando foi escrita a Mater et Magistra, em 1961.
Logo depois, em 1972, o Clube de Roma publicou o seu Relatório “Os limites do crescimento”. O relatório tratava de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade, tais como energia, poluição , saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional. Vendeu mais de 30 milhões de cópias em 30 idiomas, tornando-se o livro sobre as questões ambientais mais vendido da história. Colocou na agenda internacional o tema do desenvolvimento sustentável, além de sua controvertida proposta, hoje tão debatida, de “crescimento zero”.
Além da questão ambiental há uma segunda que vem se tornando crucial, a das migrações. A demanda dos mercados e dos países centrais do capitalismo globalizado por livre circulação de bens, mercadorias, serviços e ativos financeiros vem acompanhada, entretanto, por demanda inversa e de sinal trocado. Estabelecem-se, cada vez mais, restrições e entraves à livre circulação das pessoas e de seus familiares. Barreiras legais e mesmo físicas, com a construção de cercas elétricas e muros de concreto nas fronteiras entre países, acompanhadas de crescente xenofobismo e criminalização dos migrantes, vem sendo a resposta cruel à nova onda migratória mundial, provocada por guerras, desequilíbrios econômicos e, cada vez mais, secas, inundações, contaminações químicas e nucleares e outros desastres ambientais.
Finalmente, o tema da guerra e da paz necessita ser repensado com toda urgência. Há, de um lado, o terrorismo que não respeita alvos civis e ceifa vidas inocentes e, de outro, a “guerra ao terror” movida por governos que se arrogam o direito de agir acima e ao arrepio de qualquer lei e limite, desrespeitando todas as convenções que protegem civis ou prisioneiros, em caso de guerra. As alegadas intervenções “humanitárias” vêm se tornando disfarce cínico e hipócrita para defesa de interesses e posições de poder, em vez de socorro desinteressado a populações civis indefesas frente à brutalidade de estados sem lei, à limpezas étnicas ou mesmo a genocídios programados.
O que mais impressiona, entretanto, numa comparação entre as duas Encíclicas, é que a Caritas in Veritate não provocou, de modo algum, o impacto e o vivo debate suscitados em todo o mundo pela Mater et Magistra. A observação vale tanto para a opinião pública laica, quanto para os ambientes mais internos da Igreja Católica.
Não suscitou tampouco entusiasmos ou iniciativas que levassem a sério as graves questões ali levantadas. Neste sentido, mudaram o mundo, a Igreja e também o tom e a formulação de sua doutrina social, não necessariamente para melhor.

• Deseja acrescentar algo?

A muitos passou provavelmente despercebida a proposta metodológica contida na MM. Na última parte, quando João XXIII passa para as sugestões práticas, traz uma surpreendente proposta:
“236. Pois bem, para se por em prática a doutrina social, passa-se ordinariamente, por três etapas: em primeiro lugar, o estudo da real situação concreta; a seguir, atenta apreciação da mesma à luz dos princípios; finalmente, determinação do que se pode ou deve se fazer, a fim de que as normas dadas possam ser aplicadas, conforme os tempos e os lugares. São os três momentos, habitualmente expressos com as seguintes palavras: ver, julgar e agir (grifo nosso)” (MM 236).

Foi a primeira vez que um documento pontifício recomendou o método fecundo da JOC (Juventude Operária Católica) de Joseph Cardijn e que inverte o caminho até então seguido de se derivar da doutrina e não do atento exame da realidade, a reflexão bíblico-teológica e as propostas de ação.

Desta recomendação, avançou depois João XXIII em sua proposta, com o apelo para se estar atento aos “sinais dos tempos”, já que Deus nos fala no hoje da história e interpela-nos por meio da realidade e dos acontecimentos.
Para cada uma das quatro partes da Pacem in Terris, são apontados os respectivos “sinais dos tempos: 1ª. parte: 39-45; 2ª. parte: 75-78; 3ª. parte: 126-129; 4ª. parte: 142-145. Bem conhecidos ficaram os sinais do tempo que João XXIII alinha para primeira parte da Encíclica:
“39. Três fenômenos caracterizam a nossa época.
40. Primeiramente a gradual ascensão econômico-social das classes trabalhadoras…
41. Em segundo lugar, o fato, por demais conhecido. do ingresso da mulher na vida pública…
42. Notamos, finalmente, que, em nossos dias, evoluiu a sociedade humana para um padrão social e político completamente novo. Uma vez que todos os povos já proclamaram ou estão para proclamar a sua independência, acontecerá dentro em breve que não existirão povos dominadores e povos dominados.
43. As pessoas de qualquer parte do mundo são cidadãos de um Estado autônomo ou estão para o ser”… (PT 39-43).

Finalmente, o método foi plenamente acolhido no Concílio, durante a elaboração da Gaudium et Spes, cujo proêmio é claro exemplo desta mudança de paradigma na reflexão teológica e na apresentação da doutrina, sempre subordinada à pastoralidade, objetivo último de toda ação da Igreja:
“As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegria e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS 200).

Três anos depois, na América Latina, todos os 16 documentos da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (1968) assumiram esse itinerário metodológico, que foi logo depois seguido e amplamente aprofundado e teorizado pela Teologia a Libertação.

José Oscar Beozzo - São Paulo, 12 de maio de 2011

terça-feira, 10 de maio de 2011

10 DE MAIO - MARTÍRIO DE PE. JOSIMO

"Tenho que assumir.
Estou empenhado na luta pela causa dos lavradores indefesos,
povo oprimido nas garras do latifúndio.
Se eu me calar, quem os defenderá?
Quem lutará em seu favor?
Eu, pelo menos, nada tenho a perder.
Não tenho mulher, filhos, riqueza...
Só tenho pena de uma coisa: de minha mãe, que só tem a mim
e ninguém mais por ela.
Pobre.
Viúva.
Mas vocês ficam aí e cuidam dela.
Nem o medo me detém.
É hora de assumir.
Morro por uma causa justa.
Agora, quero que vocês entendam o seguinte:
tudo isso que está acontecendo é uma conseqüência lógica do meu trabalho na luta e defesa dos pobres, em prol do Evangelho, que me levou a assumir essa luta até as últimas conseqüências.
A minha vida nada vale em vista da morte de tantos lavradores assassinados, violentados, despejados de suas terras, deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem lar".
Pe. Josimo Tavares

domingo, 8 de maio de 2011

Teologia e Libertação: cruzando fronteiras


Luiz Carlos Susin
Secretário Geral do Fórum de Teologia e Libertação


A quarta edição do Fórum Mundial de Teologia e Libertação aconteceu de 05 a 11 de fevereiro de 2011 em Dakar, a cosmopolita cidade africana banhada de sol e de mar na ponta oeste do continente. Como é costume, o fórum de teologia acompanha o Fórum Social Mundial. É a primeira edição a acontecer em um país de grande maioria muçulmana, cerca de 95% da população. Para um fórum de teologia com perspectiva libertadora, tal condição social representa um desafio especial, ou seja, a questão do pluralismo religioso junto com o pluralismo cultural, e o diálogo interreligioso que se impõe, sem perder a relação com as realidades econômicas, sociais e políticas em que se manifestam as diferentes experiências e expressões religiosas.
Entre o planejado e o realizado, também nesta edição do Fórum aconteceram muitas surpresas. Para quem quer fazer teologia a partir de uma escuta atenta da realidade, a própria realidade se impôs mais uma vez, obrigando a mudar posturas e planejamentos, e a aceitar outras maneiras de se relacionar com o tempo e com o espaço. Dakar convidou também a experimentar as inesperadas riquezas locais, e a ser criativos nas respostas. Pois se está em meio a gente tipicamente africana, sempre pronta para uma conversa, para um sorriso largo de hospitalidade, a famosa Tengara senegalesa. Esta foi, para os participantes do fórum, a primeira lição da realidade, o povo e a cidade de Dakar. Há uma canção brasileira que celebra antecipadamente a utopia de um mundo novo dizendo: “Na nova terra, o negro, o índio, o mulato, o branco e todos vão comer do mesmo prato”. Bem, em Dakar, seguindo a tradição das famílias locais, os participantes do Fórum vindos de diversos continentes, comiam, no almoço, todos “do mesmo prato” – literalmente.
Outra lição, de ordem histórica, foi a visita à bela ilha de Gorée, bem em frente de Dakar. É um monumento perturbador, memória da partida sem volta de milhões de africanos, homens, mulheres e crianças, agarrados e roubados em suas aldeias, separados de suas famílias, de suas línguas maternas, de suas crenças religiosas, tratados como peças de mercado pelos europeus e levados às colônias nas Américas para todo tipo de trabalho escravo, do qual se extraíram e se produziram riquezas, naturais e agrícolas, para as metrópoles na Europa. Desse violento triângulo mercantilista nasceu a modernidade real, encoberta pelos belos discursos iluministas. Em Gorée, uma das inúmeras “casas de escravos” está bem restaurada como memória. Curiosamente também uma das casas de escravos é hoje casa do presbitério local.
O fórum de teologia, propondo-se uma maior integração com o Fórum Social Mundial, ofereceu e participou de workshops no dia dedicado inteiramente à África e no dia seguinte, levando em conta tanto a África continental como também a África da Diáspora mundo afora. Aprendemos que África, com sua imensa diversidade, é uma herança e um modo de ser, mesmo para além do continente.
No entanto, dois limites se impuseram ao fórum, um de ordem política ao fórum social e outro de ordem religiosa ao fórum teológico. Algum tempo antes da realização do fórum social, a universidade pública Cheikh Anta Diop, contratada para ser o espaço do evento, sofreu uma mudança de reitoria que repercutiu na organização do fórum. Como as aulas do semestre não foram mais suspensas, foi necessário improvisar os espaços, e o atraso da publicação dos mesmos foi fatal tanto para a oferta como para a procura dos workshops. Em outras palavras, acabamos ficando apenas “entre os iguais”.
Para as atividades de teologia, houve um agravante, o segundo limite: os muçulmanos convidados não compareceram ao diálogo previsto, e uma das razões pode ter sido a confusão reinante em termos de agenda e espaços. Para um fórum de teologia que se realiza num país majoritariamente muçulmano propondo-se um exercício de diálogo interreligioso, ficar “entre os iguais” e não conseguir vencer a barreira dos imprevistos dá muito que pensar. Foi uma lacuna que deixou participantes nervosos. Alguns participantes, partindo de suas experiências, afirmavam o que, por exemplo, Moltmann já tinha observado: o diálogo entre tradições religiosas supõe interesse pelo outro, mútuo interesse. E os muçulmanos não parecem interessados em conhecer a tradição cristã. Outros consideraram que o fato de os muçulmanos serem imensa maioria no país coloca a questão sobre os países de imensa maioria cristã: o que acontece quando se é maioria ou minoria? De qualquer forma, a questão era mais prática e talvez prosaica: um problema de comunicação, de agenda e de organização entre mundos diferentes. Observar, porém, como se dão as relações de convivência entre a grande maioria muçulmana e a minoria cristã, no Senegal, é uma lição inesquecível. A minoria cristã apresenta boas escolas e uma especial atenção à saúde, o que lhes é retribuído com reconhecimento e respeito por parte da maioria muçulmana.
O cânone da “vida” vem antes de todos os outros cânones.
O fórum de teologia desenvolveu um seminário nos dias em que o Fórum Social Mundial dedicava tempo para assembléias por focos de interesse. O seminário, como era previsto, se tornou o ponto alto do foro de teologia. Seu objetivo era a discussão sobre qual epistemologia, quais categorias, quais linguagens e quais os métodos mais adequados para dar conta da complexidade “mundial” de nosso tempo e dos próximos anos. O seminário foi tomado por uma acalorada tensão entre o cotidiano local, ou seja, a grande variedade de contextos, e as questões globais, sistêmicas, que afetam o local. Hoje, o cotidiano da vida de um povo no interior de um país “menor” também se vê afetado pelas grandes inovações da tecnologia, do mercado e do consumo que, inevitavelmente, devastam sua condição cultural e religiosa, manipulando inclusive suas mentes e seus desejos.
Diante disso, a pluralidade de elementos que constituem o labor teológico obriga a uma ordem de prioridade, lugares teológicos prioritários que se tornam os primeiros e mais fundamentais princípios hermenêuticos. Na ordem clássica dos loci theologici a fonte originária da Palavra de Deus se encontra, em primeira lugar, na Escritura. A Tradição e o Magistério se fundam e desenvolvem a revelação das Escrituras. Segundo Melchior Cano, os “fatos da história” seguem depois como loci alieni, emprestados de fora, por não serem próprios do “depósito” cristão. Pois o Fórum, herdeiro da reflexão teológica dos últimos cinqüenta anos, foi enfático em “virar a ordem”, colocando como primeiro lugar teológico a vida de carne e osso, a vida cotidiana, a vida compartilhada, a vida dos povos desde onde se faz teologia. O fórum entendeu o necessário enraizamento e a pertença do teólogo e da teóloga a uma comunidade de fé não em primeiro lugar como uma confessionalidade, menos ainda como uma instituição eclesiástica, mas uma comunidade de vida, a vida do seu povo. Essa relação visceral com a vida do povo, suas lutas e esperanças, seus sofrimentos e festas, é o chão primeiro da revelação divina, da salvação em processos de libertação, desde o qual a Escritura ganha nova luz, pode ser discernida com o critério de “dar vida e vida em abundância”. Sublinhou-se, por exemplo, que há textos bíblicos que ensinam como não se dá vida, como não é mais possível seguir da mesma maneira para entender o Deus que quer a vida de seu povo. E, por outro lado, há textos ou narrativas orais fora das Escrituras judaicas e cristãs, que também inspiram vida e vida em abundância. Não importa se provém do que chamamos de grandes tradições religiosas ou de pequenos grupos, uma vez que sua qualidade não depende da quantidade de pessoas que portam estas tradições.
Portanto, em outras palavras, o primeiro “cânone” não é a Escritura, é a vida. O fórum acentuou de forma muito incisiva este cânone prioritário, inclusive para a criação epistemológica. O cânone da “vida” reconhecida, liberta e libertadora, permite que abramos este prioritário lugar teológico para as diferentes tradições religiosas dos povos, para o pluralismo religioso, para considerar a religião “do outro”. É na relação com a vida dos povos, em suas contradições e esperanças, que as diferentes Escrituras, como também os ensinamentos e narrativas orais, podem ser boas novas, sempre enquanto notícias de vida. Cria-se, então, a sinergia própria do círculo hermenêutico “Vida-Palavra” e “Palavra-Vida”, mantendo-se a vida como referente e critério hermenêutico. Nesse círculo se colocam os diferentes níveis de experiências, “texturas”, contextos, textos, sabedoria e, claro, também conceitos e sistemas de pensamento, nessa ordem. Partir dos conceitos, ou seja, da doutrina, da dogmática, da exegese, é possível, mas difícil e mais perigoso. O que devia ser um círculo pode paralisar no meio do caminho e se evaporar na abstração.
A opção preferencial pelos pobres, nascida de um coração pastoral tocado pelo clamor de vida dos mais frágeis, tornou-se também coração claro e firme de uma teologia em perspectiva de libertação. Para se manter com rigor e menor risco na verdade deste critério, não faltou quem ilustrasse, mais de uma vez e insistentemente, com a tensão que se deve manter entre a opção preferencial pelos pobres e a universalidade da boa nova cristã. Partir da universalidade pode ser uma desculpa e uma traição: “Amar a todos” é frequentemente, na verdade, desculpa para “amar ninguém”! Só o amor que se concretiza em prioridades sai da abstração do “todos”, da universalidade abstrata e ineficaz. Amar com prioridade é o que faz uma mãe, segundo um antigo provérbio árabe: prefere o doente até que fique sadio, prefere o que está longe até que chegue, prefere o menor até que cresça. Por isso, num mundo mais globalizado, em que é necessário ter em conta os grandes sistemas que pretendem organizar a vida, a prioridade, no entanto, é local, regional, contextual, na sua diversidade, na riqueza da biodiversidade humana, inclusive a biodiversidade religiosa, a “hierodiversidade”. Afinal, como se sabe, Jesus não veio trazer uma nova religião mas uma boa notícia para quem precisa de libertação. A partir da boa notícia se compreende quem é Deus.
A volta do político recalcado
Por outro lado, nos dias do foro assistimos com atenção, no mesmo continente africano, as mobilizações do povo egípcio, que se seguiu ao do povo tunisiano, num efeito em cascata ainda incerto mas em direção a mais e melhor democracia na região árabe. É sabido que há, nessas mobilizações, uma liderança jovem, com tecnologias de comunicação que tornam transparentes tanto a verdade das instituições como a necessidade de comunidade para abrir futuro. Esse movimento acontece também, de forma mais discreta, em diversos países da América Latina, com protagonismo popular, especialmente indígena. Nessas regiões, apesar do que se disse de encolhimento do Estado e expansão do mercado respaldado pela ideologia neoliberal, está de volta a política. O fórum levou em conta o lugar da política na boa notícia de libertação, e portanto, na teologia com perspectiva de libertação.
A política global a partir dos pobres, das regiões que perdem na globalização, obriga a pensar mais seriamente a força do “Império”. O fórum dedicou um tempo para esclarecer e debater o que se pode entender por “império” nas atuais condições de comunicação, de mercado, de uso não sempre de força bruta mas muito de sedução, de colonização das subjetividades e das culturas, e também colonização das expressões religiosas. É dentro desse grande sistema que se explica o mimetismo fascinante das igrejas que reúnem o trinômio “templo, teatro e mercado”.
Não há opção preferencial pelos pobres e nem pela vida como cânone primeiro de toda boa teologia se não houver atenção a esta outra ponta, sistêmica, da política e da economia. Como a vida não pode ser somente protegida, mas também cultivada, produzida, a economia e a política interessam uma teologia que pretende ajudar na boa notícia de vida. Inclusive as questões de gênero, sobretudo a libertação da mulher em um mundo que continua sendo marcado pelo kyriarcalismo. O Fórum Social Mundial de Dakar foi uma verdadeira vitrine do empoderamento das mulheres organizadas mundo afora nas questões de segurança alimentar, de renda familiar, de saúde, de políticas públicas. As mulheres se revelam as protagonistas do cotidiano da vida em suas expressões mais concretas, mas isso não corresponderia a uma boa notícia de libertação se não forem também consideradas no âmbito mais global da política e da economia. A migração e o tráfico de pessoas são sintomas massivos e mundiais em que as mulheres são as mais afetadas, e essas realidades dão o que pensar também para a teologia. Evidentemente, o fórum de teologia sentiu na carne a sua responsabilidade quanto às questões religiosas nesse contexto mundial para que a experiência religiosa seja alma de processos libertadores e portadores de vida.
Maior interação em rede
Um fórum é um evento de um processo. Depois de Porto Alegre (2005), de Nairóbi (2007), de Belém (2009) e de Dakar (2011), o processo continuará com mais maturidade. Compromissos institucionais, eclesiais, contextuais e regionais precisam ser levados adiante, mas o fórum “mundial” pretende cruzar fronteiras, criar uma comunidade teológica mundialmente aberta, e isso porta a necessidade de intensificar a interação em rede, de forma amplamente ecumênica, em abertura ao diálogo interreligioso. Esta é a forma capaz de respeitar as diferenças e criar laços e mútuo enriquecimento para que outro mundo seja possível, segundo o teológico e messiânico slogan do Fórum Social Mundial. Em Dakar sugeriu-se mais ousadia na criação de fóruns locais e no uso inteligente da Internet.

(Currículum Vitae e endereço:)
Luiz Carlos Susin, frade capuchinho e doutor em teologia, é membro do Comitê de Redação da Revista Concilium. É atualmente Secretário Geral do Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Compõe a Equipe de Reflexão Teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil. Foi presidente da Associação de Teologia e Ciências da Religião do Brasil (Soter). Trabalha regularmente na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. Entre seus livros está A Criação de Deus, São Paulo: Paulinas, 2003.
Endereço: Rua Juarez Távora, 171 – Porto Alegre-RS – 91520-100 – Brasil
Email: lcsusin@pucrs.br
http://www.lcsusin.com/?p=466