IHU (05.05.2011)
"A Igreja fundada por Jesus e pelos 12 Apóstolos, era um Igreja de Mártires e também uma Igreja de pobres. Por isso minha opinião pessoal é que beatificações ou canonizações segundo o perfil do último beato que é João Paulo II, não corresponde mais ao sonho de Jesus pois ela teima em não ser de mártires nem de pobres como aquela que saiu da mão do Divino Fundador", escreve Antônio Cechin, irmão marista, ao recordar o tempo em que trabalhou na Cúria Romana na então Sagrada Congregação dos Ritos.
Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Amainado o tsunami provocado pela audácia e pela pressa de Bento XVI em beatificar seu antecessor papa João Paulo II, cuja processualística foi desencadeada no próprio dia da morte, acontecida há seis anos, me atrevo, dentro da oitava litúrgica do novo Beato, a entrar com minha colher torta.
Na qualidade de religioso marista obediente, coube-me a tarefa de trabalhar durante dois anos na Sagrada Congregação dos Ritos, dicastério da Cúria Romana encarregado da Liturgia e ao mesmo tempo das Causas de beatificação e canonização. Trabalhei no Vaticano nos anos de 1960 a 1962, durante o pontificado de João XXIII, exatamente no período preparatório do Concílio Ecumênico Vaticano II.
Compulsando na época, diariamente, o “Osservatore Romano”, jornal da Santa Sé, acompanhei ao longo de vários meses, passo a passo, as nomeações que Papa Giovanni largava em doses homeopáticas para a imprensa, dos clérigos, peritos em ciências teológicas, historiadores, etc. que teriam pela frente a tarefa de preparar o Concílio anunciado. Não raro os meios da Cúria que eu freqüentava, passavam por verdadeiro calafrio quando nomes de peritos conciliares, escolhidos pelo pontífice, eram de algum teólogo catapultado do ostracismo em que se encontrava desde o tempo de Pio XII, papa anterior a João XXIII, ou até de tempos mais longínquos. Não era pouca coisa, da noite para o dia, passar de uma espécie de “teólogo maldito” para as honras de teólogo conciliar.
Minha função na Sagrada Congregação dos Ritos era de secretário particular do Promotor Geral da Fé, popularmente chamado de “Advogado do Diabo” pelo papel que, como Promotor, desempenhava nos processos de beatificação e canonização. Era ele o defensor de uma santidade autêntica, praticada necessariamente em grau heróico, pelos candidatos aos altares, a fim de terem garantidas as qualidades para serem propostos como modelos para todo e qualquer cristão. Em outras palavras, o Promotor Geral da Fé, forçava a Postulação a comprovar a prática das virtudes teologais e cardeais, dos valores autênticamente humanos e cristãos não de maneira simples e comum, mas em grau heróico. Assim como o Promotor de Justiça em qualquer processo da sociedade civil, o Promotor Geral da Fé – advogado do diabo – procurava garantir a ortodoxia, isto é, as leis, os dogmas, a moral e as virtudes de uma modelar vida cristã. O povão desde séculos designa como “advogado do diabo” o personagem da processualística, encarregado de “dar o contra” a quem aspira às honras dos altares, passando a desempenhar o papel de “satanás” por oposição à pessoa candidata a “santo”.
Nos idos de 1960, as coisas ainda eram muito rígidas na Cúria Romana. Nos dois anos em que lá atuei, só houve três canonizações e nenhuma beatificação. Foram proclamados santos Gregório Barbarigo, Bertilla Boscardin e Juan de La Ribera. Os dois primeiros italianos e o terceiro espanhol. Por sinal, naquela época, um postulador que me visitava me dizia: “para ser santo se necessitam três qualidades: ser italiano, ser italiano e ser italiano.” Como para me explicar que aqueles mais próximos da “máquina” constituíam maioria dentro do catálogo.
Sabemos que o papa João Paulo II, facilitou enormemente a processualística dos caminhos para a honra dos altares. Como parte de sua ênfase especial na vocação universal à santidade, beatificou 1.340 pessoas e canonizou 483 santos, quantidade maior que todos os seus predecessores juntos pelos cinco séculos passados.
Não deixa de ser inusitado o fato de um Papa como Bento XVI beatificar seu antecessor imediato e em tempo recorde. Pelo pouco que conheço de história da Igreja, me atrevo a afirmar que é a primeira vez que isso acontece, excetuando-se naturalmente o tempo dos primórdios Igreja – a do tempo dos apóstolos – quando, bastava alguém tombar como mártir para, pelo fato mesmo, ser invocado como santo, sem necessidade de processo de espécie alguma, canonizado que está pelo Mestre Jesus de Nazaré quando proclama: “Não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles a quem se ama!”. Sofrer o martírio, como o Nazareno, é santidade por excelência.
No ano de 1960, tramitavam, na “fábrica dos santos” da qual eu também era um humilde serviçal, em torno de mil e quinhentos processos. Tinha-se a nítida impressão de que a Igreja não fazia muita questão de acrescentar novos santos ao calendário litúrgico. Talvez o pequeno número de novos bem-aventurados e santos, também se devesse ao fato de haver um afunilamento dentro da sistemática dos processos. A Promotoria Geral da Fé era esse funil. Uma única pessoa, o advogado do diabo, tinha que ter o domínio total de cada uma das causas, tais como os detalhes biográficos do personagem, o contexto histórico da época em que viveu, a análise dos escritos, os pareceres dos teólogos que os haviam julgado, os pareceres dos peritos médicos a respeito dos milagres, etc. Tudo, absolutamente tudo, tinha que passar por ele. Naqueles anos era Advogado do Diabo, um franciscano de nome Antonelli. Qualquer documento que viesse endereçado ao homem-chave da Congregação, também passava por minhas mãos e meus olhos, quer fossem relativos à heroicidade das virtudes, quer aos pareceres dos peritos médicos sobre as curas “milagrosas”, etc.
Com relação aos milagres, logo que cheguei junto à Congregação, quis matar minha curiosidade perguntando a meus colegas de trabalho o que achavam de uma Teresa Neumann, religiosa na Alemanha, que aqui no Brasil era muito badalada e dela diziam alimentar-se exclusivamente da hóstia consagrada no sacramento da Eucaristia e nada mais. Interroguei depois outro colega sobre Frei Pio, um religioso capuchinho italiano que, aqui no Brasil, se apregoava como sendo alguém de confessionário o dia inteiro, com penitentes que lhe chegavam de todo o mundo. Os que com ele se confessassem, nem precisavam contar-lhe os pecados porque os conhecia de antemão, sem necessidade de serem verbalizados.
Meus colegas de trabalho deram de ombros, como quem estranhasse minhas crendices. Fui caindo na real à medida que ia datilografando os relatórios dos peritos médicos contratados pelo Vaticano e que se haviam debruçado sobre os “milagres”, todos sem exceção de curas de alguma doença.
Na verdade os peritos médicos escolhidos pela Congregação, eram os melhores em cada ramo da medicina, existentes em Roma. Pelo fato mesmo eram pessoas muito bem pagas. Em nenhum parecer médico, jamais descobri que algum deles afirmasse tratar-se de milagre ou cura milagrosa. Quem declara se é milagre ou não, para fins de beatificação ou canonização, é uma equipe de cardeais com a palavra final do próprio papa. Médico tem que ficar na ciência médica. Milagre, se tem uma dimensão de quebra das leis da natureza, algo sobrenatural, isso é do terreno da fé ou da teologia mas não da ciência. Em relação ao perito médico vale aqui em face do milagre, a famosa sentença do pintor grego a um sapateiro que contemplando o quadro pintado, havia feito uma crítica da sandália que o personagem tinha no pé. O artista lhe atalhara, no instante mesmo da critica: “sapateiro não te atrevas a julgar acima da sandália!”
Depois do meu estranhamento inicial em relação a fatos relativos a “santos” milagreiros, que considerava pelo menos fora do comum, fui aos poucos me convencendo de que tudo estava em seu devido lugar. Médico tem que ficar exclusivamente no campo da ciência. E em qualquer ciência há muitos espaços em relação aos quais campeiam as ignorâncias. Nesses seus relatórios, os médicos debruçados sobre curas, julgam somente sobre documentos bem objetivos: o histórico da doença, os exames médicos realizados, os remédios ou drogas ministrados ao longo do tempo, os diagnósticos, etc. etc. Nem pode ser diferente.
Mais tarde, como catequista, fui descobrindo que, no Evangelho, Jesus ficava triste quando lhe solicitavam algum milagre como quebra das leis da natureza. Quando algum “sinal” feito pelo Mestre, causava estupor, vinha a explicação “foi a tua fé que te salvou!” A multiplicação dos pães, milagre como quebra das leis da natureza? Jesus recolocou as coisas em seu devido lugar quando disse: “Vocês estão me procurando só porque vos alimentei de pão!”
Milagre ou melhor um “sinal”, na Bíblia, é sempre um ato de amor profundo. Lembremo-nos daquela passagem evangélica em que gente do povo pergunta a Jesus face a um estropiado: “Mestre, quem é que pecou? Foi ele ou foram os pais dele?” E Jesus, com a maior naturalidade: “Nem ele, nem os pais dele. Isso acontece a fim de que se manifeste a glória de Deus.” Face às desgraças de hoje, de sofrimentos incríveis, de pessoas mutiladas, etc. vemos e tocamos que inúmeras pessoas, com imenso amor, se dedicam totalmente a ajudar, em meio a tanto sofrimento. É “a glória de Deus se manifestando através de muito amor” pois Deus é puro Amor.
Pudemos então, trabalhando na Cúria, nos dar conta de que em nossa Santa Madre Igreja Católica, Apostólica e Romana, tudo é humano, muito humano mesmo. E é apenas em fatos humanos do cotidiano que podemos ler transparências daquilo que também tem algo de divino. Essa transparência é vislumbrada através da chamada “leitura dos Sinais dos Tempos”, preconizada pelo Mestre Jesus e que foi recuperada para nossos dias, pelo saudoso Papa João XXIII.
Aos poucos, dentro de meus trabalhos congregacionais romanos, também fui me dando conta de que havia uma política vaticana ou papal para beatificar ou canonizar este ou aquele candidato às honras dos altares.
Uma vez por mês, o Promotor Geral da Fé – advogado do diabo – tinha audiência com o Papa.
Dia seguinte recebíamos tarefas preferenciais em cima de Causas assinaladas pelo Pontífice. Me vem à lembrança que umas duas ou três vezes a prioridade papal assinalava um fundador de congregação feminina do norte da Itália, se não me engano de nome Guanella, cujas religiosas tinham sido trazidas pelo Papa Giovanni, para os cuidados domésticos em seus aposentos, no Vaticano. Imagino o bom Papa Giovanni se cruzando seguidamente com alguma das irmãzinhas a lhe suplicar: “Santo Padre, e o nosso fundador? Não dá para dar uma apressadinha na sua beatificação?”. Aliás nada de estranho, porque eu mesmo havia sido alavancado da cidade de Paris, aonde começava meus estudos de pós-graduação, diretamente para o Vaticano para, como me dizia o postulador da minha congregação, “fazer com que, na pilha dos processos beatificatórios eu conseguisse colocar um pouco mais para cima o processo de nosso hoje santo fundador”.
Doutra feita, um postulador do norte da Itália me explicou o porquê de estarmos nós, os funcionários da Santa Sé, a desentulhar uma causa de Canonização de um cardeal, já com o título de bem-aventurado há muitíssimos anos, tendo vivido a uns 3 ou 4 séculos atrás. É que Papa Giovanni, como arcebispo-patriarca de Veneza, circunscrição eclesiástica em que nascera e vivera nosso candidato a santo, quando Papa Roncalli era ainda Arcebispo Pariarca desta cidade, havia confidenciado a esse Postulador: “Se io sono Papa, Barbarigo è santo!” (Se por acaso eu ficar Papa, Gregório Barbarigo será santo!). Dito e feito. João XXIII, para garantir seu candidato veneziano à honra dos altares, nos deu ordem de concluir o processo e dispensar o milagre que o direito canônico exige para a canonização. Meus colegas funcionários, lembro bem, vieram também ao meu gabinete de trabalho – imaginem só – a fim de me convidar para uma greve. Sim senhores. Uma greve da Congregação dos Ritos do Vaticano.
Alegavam: se adotarmos esse princípio de dispensa até de milagre, amanhã teremos aqui nas nossas salas dezenas de postuladores a reclamar o mesmo direito para seus candidatos aos altares.
Aí eu fiz a experiência de que Papa, na Igreja, pode tudo e mais alguma coisa. Por isso, Papa Giovanni não era bem o que diziam meus vizinhos de escritório acostumados a designá-lo como “papa de transição.” Ao ser alertado da tentativa grevista da Congregação, mandou um convite de caráter pessoal, com assinatura de próprio punho - coisa totalmente fora de costume - para cada um dos funcionários do dicastério. Face a tal convite em caráter pessoal, a greve se evaporou. Lá estávamos todos no cortejo papal, no dia marcado, bem à frente da “sédia gestatória”, sem faltar absolutamente nenhum.
Nosso Bispo-Profeta Dom Hélder Câmara realizou a iniciação da Igreja Latino-Americana à opção pelos pobres, por ocasião do Concílio Vaticano II. Enquanto a Assembléia máxima do episcopado mundial realizava triunfalmente seu encerramento na Praça São Pedro defronte à grande Basílica dentro da qual a tradição diz que o primeiro chefe da Igreja nomeado diretamente por Jesus, foi sepultado depois de crucificado de cabeça para baixo, Dom Hélder rodeado de 80 irmãos do bispos, firmava o pacto das Catacumbas, com isso significando que desejava reconciliar a Igreja dos nossos dias, com a Igreja do tempo das perseguições, isto é, com a Igreja dos Mártires do primeiro século, profetizando assim uma nova leva de mártires em toda a América Latina.
A meu ver, a Igreja do primeiro mundo, a Igreja da Europa e todas as demais Igrejas conservadoras do mundo, teimam até hoje, em não fazer sua reconciliação com a Igreja dos primórdios. A Igreja fundada por Jesus e pelos 12 Apóstolos, era um Igreja de Mártires e também uma Igreja de pobres. Por isso minha opinião pessoal é que beatificações ou canonizações segundo o perfil do último beato que é João Paulo II, não corresponde mais ao sonho de Jesus pois ela teima em não ser de mártires nem de pobres como aquela que saiu da mão do Divino Fundador. Santos, a rigor, para mim são em primeiríssimo lugar os que, segundo o Evangelho de Jesus Cristo, “aqueles que deram a maior prova de amor, entregando a vida pelas pessoas que amavam.” Nesse ponto, o bem-aventurado João Paulo II, deixou de ser Papa modelar para nós cristãos da América Latina ao demonstrar com gestos de desamor suas relações com nosso bispo-mártir San Romero de América.
Fonte: IHU
As forças progressistas, da Teologia da Libertação, incluindo teólogos/as, pastorais sociais, Cebs, agentes de pastoral, religiosos/as, leigos e leigas, se mobilizaram para participar da Conferencia de Aparecida (2007) - uma des suas ações foi a Tenda dos Mártires, como espaço aberto, celebrativo, por 15 dias, enquanto durou a Conferência. A Tenda dos Mártires foi um alerta à toda Igreja para não esquecer seus mártires, sua caminhada, sua identidade de libertação.
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sexta-feira, 6 de maio de 2011
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