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segunda-feira, 29 de abril de 2013

Papa Francisco e a teologia da libertação

29.04.13 - Mundo Leonardo Boff Teólogo, filósofo e escritor Adital Muitos me têm perguntado que pelo fato de o atual Papa Francisco provir da América Latina, seja um adepto da teologia da libertação. Esta questão é irrelevante. O importante não é ser da teologia da libertação, mas da libertação dos oprimidos, dos pobres e injustiçados. E isso ele o é com indubitável claridade. Este, na verdade, sempre foi o propósito da teologia da libertação. Primeiramente vem a libertação concreta da fome, da miséria, da degradação moral e da ruptura com Deus. Esta realidade pertence aos bens do Reino de Deus e estava nos propósitos de Jesus. Depois, em segundo lugar, vem a reflexão sobre este dado real: em que medida aí se realiza antecipatoriamente o Reino de Deus e de que forma o cristianismo, com o capital espiritual herdado de Jesus, pode colaborar, junto com outros grupos humanitários, nesta libertação necessária. Esta reflexão posterior, chamada de teologia, pode existir ou não. O decisivo é que o fato da libertação real ocorra. Mas sempre haverá espíritos atentos que ouvirão o grito do oprimido e da Terra devastada e que se perguntarão: com aquilo que aprendemos de Jesus, dos Apóstolos e da doutrina cristã de tantos séculos, como podemos dar a nossa contribuição ao processo de libertação? Foi o que realizou toda uma geração de cristãos, de cardeais a leigos e a leigas a partir dos anos 60 do século passado. Continua até os dias de hoje, pois os pobres não cessam de crescer e seu grito já se transformou num clamor. Ora, o Papa Francisco fez esta opção pelos pobres, viveu e vive pobremente em solidariedade a eles e o disse claramente numa de suas primeiras intervenções:”Como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Neste sentido, o Papa Francisco, está realizando a intuição primordial da Teologia da Libertação e secundando sua marca registrada: a opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e a favor da vida e da justiça. Esta opção não é para ele apenas discurso mas opção de vida e de espiritualidade. Por causa dos pobres, tem se indisposto com a presidenta Cristina Kirchner pois cobrou de seu governo mais empenho político para a superação dos problemas sociais que, analiticamente se chamam desigualdades, eticamente, representam injustiças e teologicamente constituem um pecado social que afeta diretamente ao Deus vivo que biblicamente mostrou estar sempre do lado dos que menos vida tem e são injustiçados. Em 1990 havia na Argentina 4% de pobres.Hoje, dada a voracidade do capital nacional e internacional, se elevam a 30%. Estes não são apenas números. Para uma pessoa sensível e espiritual como o Papa Francisco, tal fato representa uma via-sacra de sofrimentos, lágrimas de crianças famintas e desespero de pais desempregados. Isso faz-me lembrar uma frase de Dostoievski: ”Todo o progresso do mundo não vale o choro de uma criança faminta.” Esta pobreza tem insistido com firmeza o Papa Francisco: não se supera pela filantropia; mas, por políticas públicas para que devolvam dignidade aos oprimidos e os torne cidadãos autônomos e participativos. Não importa que o Papa Francisco não use a expressão "teologia da libertação”. O importante mesmo é que ele fala e age na forma de libertação. É até bom que o Papa não se filie a nenhum tipo de teologia, como a da libertação ou de qualquer outra. Seus dois antecessores assumiram certo tipo de teologia que estava em suas cabeças e se apresentava como expressões do magistério papal. Em nome disso se fizeram condenações de não poucos teólogos e teólogas. Sabem os historiadores que a categoria "magistério” atribuída aos Papas é uma criação recente. Começou a ser empregada pelos Papas Gregório XVI (1765-1846) e por Pio X (1835-1914) e se fez comum com Pio XII (1876-1958). Antes "magistério” era constituído pelos doutores em teologia e não pelos bispos e pelo Papa. Estes são mestres da fé. Os teólogos são mestres da inteligência da fé. Portanto, aos bispos e Papas não cabia fazer teologia: mas testemunhar oficialmente e garantir zelosamente a fé crista. Aos teólogos e teólogas cabia e cabe aprofundar este testemunho com os instrumentos intelectuais oferecidos pela cultura em presença. Quando Papas se põem a fazer teologia, como ocorreu recentemente, não se sabe se falam como Papas ou como teólogos. Cria-se grande confusão na Igreja; perde-se a liberdade de investigação e o diálogo com os vários saberes. Graças a Deus que o Papa Francisco explicitamente se apresenta como Pastor e não como Doutor e Teólogo mesmo que fosse da libertação. Assim é mais livre para falar a partir do evangelho, de sua inteligência emocional e espiritual, com o coração aberto e sensível, em sintonia com o mundo hoje planetizado. Papa Francisco: coloque a teologia em tom menor para que a libertação ressoe em tom maior: consolação para os oprimidos e apelo às consciências dos poderosos. Portanto, menos teologia e mais libertação. [Leonardo Boff é autor de Teologia do cativeiro e da libertação, Vozes 2013]. http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=74977

quinta-feira, 25 de abril de 2013

‘Pacem in Terris’. Os 50 anos de uma encíclica e a dimensão social do Evangelho.

24.04.13 - Mundo Entrevista com Frei Carlos Josaphat IHU - Unisinos Instituto Humanitas Unisinos Adital Quarta, 24 de abril de 2013. "Pacem in Terris inaugurou uma nova etapa nas relações da Igreja com o conjunto dos povos, fazendo esquecer, ao menos em parte, dolorosos desentendimentos do passado”, avalia o frei dominicano. Confira a entrevista. "A mensagem mais oportuna, mais sábia, mais operacional para o mundo moderno”. É assim que Frei Carlos Josaphat descreve a encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, publicada há 50 anos. Na foto ao lado, João XXIII assina a encíclica no dia 11 de abril de 1963. Para o frei dominicano, ao lado de Mater et Magistra, a Pacem in Terrisconstitui "a melhor formulação ética da dimensão social do Evangelho, a qual se torna operacional pelo empenho de não ficar em uma elaboração teórica, abstrata. Mas, inaugurando uma análise dos sistemas industriais, econômicos, agrícolas, elas lançam uma grande luz sobre as raízes e causas das exclusões e desigualdades sociais”. Na avaliação de Josaphat, o pontificado de João XXIII é uma das "maiores guinadas na história da Igreja”, e significou, junto com o Vaticano II, "o ponto mais alto da doutrina social da Igreja, estendendo e clareando para o mundo moderno a dimensão social do Reino de Deus”. No Brasil, a encíclica repercutiu entre os movimentos populares e estudantis, contribuindo para a elaboração das reformas de base. A Pacem in Terris "amadureceu a ideia de uma democracia social, respeitando e promovendo os direitos individuais e sociais, em oposição a todo golpe que rompesse com a marcha de democratização progressiva do país”, ressalta. Frei Carlos Josaphat (foto abaixo) é professor da Escola Dominicana de Teologia – EDT, de São Paulo, desde 1994, do Instituto Teológico de São Paulo – Itesp, da Pontifícia Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade de Minas Gerais, dentre outras. Além de diversas obras publicadas na Europa, é autor de inúmeras obras no Brasil, das quais destacamos as mais recentes, como Evangelho e revolução social(Ed. Loyola, 2002, reedição de aniversário dos 40 anos da obra), Evangelho e diálogo inter-religioso (Ed. Loyola, 2003), Falar de Deus e com Deus hoje(Ed. Paulus, 2004), Ética e mídia: Liberdade, responsabilidade e sistema(Ed. Paulinas, 2006), Frei Bartolomeu de Las Casas: Espiritualidade contemplativa e militante (Ed. Paulinas, 2008) eÉtica mundial: Esperança da humanidade globalizada (Ed. Vozes, 2010). Confira a entrevista. IHU On-Line – Como avalia o pontificado de João XXIII? Qual foi o significado de seu papado? Frei Carlos Josaphat – Eleito aos 78 anos, João XXIII seria na intenção do conclave um papa de transição. Humilde e obediente, tendo sempre como lema "Obediência e paz”, o pontífice ancião não inspirava, a quantos estavam aferrados ao passado, qualquer temor de que surpreendesse a Igreja com propostas inovadoras. Enganaram-se redondamente, pois ignoravam o segredo que estava no íntimo da vida do sacerdote, do bispo, do diplomata, do cardeal Roncalli. Sempre e em toda parte, ele estava atento às comunidades e aos movimentos renovadores. E por vezes os ajudava discretamente. Mas vivia na paz, trilhando os rudes caminhos da obediência. Ao ser eleito, ele evoca em suas Memórias a reflexão que fez diante de Deus: Se a Providência me confia a autoridade suprema na Igreja, isso significa que devo buscar realizar meus projetos de renovação evangélica para o bem de todo o povo de Deus. Embora esses projetos não tenham sido do agrado de instâncias superiores a que sua missão de padre, bispo ou diplomata o havia submetido. Então, ele retoma como pontífice os ideais que o animavam desde jovem padre, junto ao bispo de Bérgamo, Radini Tedeschi, aberto a uma pastoral popular e social. O pontificado de João XXIII é uma das maiores guinadas na história da Igreja, a busca de um evangelismo radical que já inspirava o coração desse grande discípulo de Cristo. Seu empenho, no decorrer de sua vida, era descobrir como atuaram sempre os grandes reformadores da Igreja. Assim, sendo nomeado Patriarca de Veneza, o cardeal Roncalli tomou São Carlos Borromeu como modelo na realização de um ministério colegial. Desse modelo, ele aprendeu, por exemplo, a lição da importância dos sínodos para renovar e ativar a vida da comunidade eclesial. A primeira coisa que fez à frente da Igreja foi convocar um sínodo para a diocese de Roma e um concílio ecumênico para a Igreja universal. IHU On-Line – Em que contexto histórico o Papa João XXIII publicou a encíclica Pacem in Terris e quais as novidades apresentadas pelo documento? Frei Carlos Josaphat – Esta encíclica foi publicada em 11 de abril de 1963, completando, ampliando e aprofundando a mensagem da encíclica Mater et Magistra de 15 de maio de 1961. Esta comemorava os 70 anos da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (15/05/1891). Pio XII tivera duas ocasiões de comemorar este primeiro documento, que tinha rejuvenescido a doutrina social da Igreja diante da crise social do capitalismo. Mas só consagrou a esses dois importantes aniversários duas breves mensagens radiofônicas, em 1941 e 1951. João XXIII retoma o exemplo de Pio XI, que tinha dado o maior relevo ao quadragésimo aniversário daRerum Novarum, realçando as contribuições e sugestões de Leão XIII, suas críticas ao capitalismo. Insistiu especialmente sobre suas propostas de reformas substanciais do sistema econômico. Pio XI ousava declarar a insuficiência do regime salarial e proclamar a oportunidade de promover a participação dos trabalhadores nos lucros e na administração das empresas. Foi pouco seguido em suas audácias. No entanto, essa encíclica Quadragesimo Anno, de 14 de maio de 1931, inspirou a dimensão social da Constituição brasileira de 1934, graças ao trabalho sobre a opinião púbica e sobre os políticos, empreendido sob a iniciativa de Alceu Amoroso Lima. Imitando e superando o exemplo de Pio XI, João XXIII vai mais longe e mais fundo, procurando elaborar nas suas duas encíclicas uma espécie de suma de ética social, de autêntica inspiração evangélica e assumindo um humanismo integral e solidário. Isso porque ele sempre mantém o empenho de articular os valores evangélicos e humanos e de confrontá-los com a realidade do mundo nos anos 1960. Melhor formulação ética Assim,Mater et Magistra e Pacem in Terris constituem a melhor formulação ética da dimensão social do Evangelho, a qual se torna operacional pelo empenho de não ficar em uma elaboração teórica, abstrata. Mas, inaugurando uma análise dos sistemas industriais, econômicos, agrícolas, elas lançam uma grande luz sobre as raízes e causas das exclusões e desigualdades sociais. A encíclica Pacem in Terris aborda os problemas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento dos povos, de suas relações a serem conduzidas na base da justiça, da solidariedade e de uma participação de todas as nações na análise e nas decisões das questões e problemas mundiais. A encíclica é muito bem ordenada, tendo a primeira parte consagrada à elaboração de uma ética pessoal e social, em torno e à luz dos quatro valores de base: a Verdade, a Liberdade, a Justiça e o Amor (ou a Solidariedade). Três vastas partes (da II a IV) formam uma síntese absolutamente original, mostrando como os princípios e os valores éticos se devem aplicar a cada nação, às relações entre as nações e na orientação e no governo mundial. Os padres conciliares e seus assessores tinham nas mãos essa encíclica durante todo o Concílio Vaticano II, em cujo decurso foi elaborada a constituição pastoral Gaudium et Spes, promulgada no dia sete de dezembro de 1965. Essa constituição retoma, amplia e homologa com sua autoridade conciliar as grandes linhas da encíclica Pacem in Terris. A comemoração do jubileu de Vaticano II, especialmente da constituição Gaudium et spes, deve levar ao estudo cuidadoso das duas encíclicas sociais de João XXIII. Temos no ensino deste papa e do Vaticano II o ponto mais alto da doutrina social da Igreja, estendendo e clareando para o mundo moderno a dimensão social do Reino de Deus. Note-se a colaboração harmoniosa dos papas mediante suas encíclicas, apontando o caminho para o maior de todos os concílios, na expressão de Paulo VI ao encerrar Vaticano II. Este papa escreveu sua primeira encíclica intitulada "Sobre a Igreja” (Ecclesiam Suam, 6 de agosto de 1964). Nela insistia sobre a compreensão da Igreja do diálogo e da comunhão. E essa encíclica vinha ao encontro da preocupação dos padres conciliares que preparavam a Constituição dogmática e fundamental, Lumen Gentium (4 de dezembro de 1964), centro e fonte das inovações evangélicas do Concílio. IHU On-Line – Quais as repercussões políticas desta encíclica, considerando o contexto de guerra nuclear da época? Frei Carlos Josaphat – A encíclica não só foi considerada como o "Testamento espiritual” do mais amável e benquisto dos pontífices, mas como a mensagem mais oportuna, mais sábia, mais operacional para o mundo moderno. Na verdade, os riscos e as ameaças nucleares eram o pico de toda uma cordilheira de incompreensões, de corrida pela indústria e comércio de armas, de guerrilhas e de guerras locais, da concorrência enlouquecida dos dois blocos que dilaceravam o mundo inteiro. O papa consagra a IV Parte da encíclica à "Ordem da Comunidade Mundial”. E como termina cada uma das partes indicando os "Sinais dos tempos”, designando assim os acontecimentos que lembram a presença do Espírito agindo na história, conclui também a IV Parte apontando para a ONU, "Etapa importante”, sinal privilegiado dos tempos da esperança para uma nova humanidade. Esta encíclica foi acolhida com entusiasmo pela ONU, que comemorou, em 1973, de maneira solene e com estudos profundos o decênio do grande documento de João XXIII. Pacem in Terris inaugurou uma nova etapa nas relações da Igreja com o conjunto dos povos, fazendo esquecer, ao menos em parte, dolorosos desentendimentos do passado. IHU On-Line – Nela menciona-se a necessidade da construção de uma autoridade política mundial. Qual a atualidade dessa ideia? Frei Carlos Josaphat – O Concílio Vaticano II retoma com a maior insistência a necessidade, cada vez mais urgente, de uma ética mundial, de um direito e de um governo internacionais. A ONU tem voltado ao tema e muitos estudos da Unesco vão nesse sentido. Há problemas mundiais, cada vez mais relevantes, pedindo decisões e medidas de caráter mundial. É urgente universalizar verdadeiramente a ONU, acabando com prerrogativas e direitos privilegiados para os "Grandes” e democratizando a instituição, que deve ser a salvaguarda da democracia no mundo. Se o imperialismo econômico e político não desaparecer, é a humanidade que corre o risco de desaparecer. João XXIII e Vaticano II são as grandes vozes proféticas para a esperança do mundo. IHU On-Line – Como esta encíclica repercutiu na Igreja brasileira? Frei Carlos Josaphat – As duas encíclicas de João XXIII tiveram muita repercussão entre os movimentos populares, estudantis e boa parte da opinião pública. Eles se mobilizaram em torno do que, nos anos 1960, se chamavam as "reformas de base”, apoiando-se no ensino social da Igreja. Amadureceu a ideia de uma democracia social, respeitando e promovendo os direitos individuais e sociais, em oposição a todo golpe que rompesse com a marcha de democratização progressiva do país. Já ficou assinalado acima como, em 1934, a democratização e a entrada do direto social na constituição foram ajudadas por uma consciência social cristã despertada e sustentada pela doutrina da Igreja, condensada na encíclica Quadragesimo Anno. Algo semelhante, profundo e permanente se deu no processo de redemocratização após a ditadura de 1964. A influência da Pacem in Terris, preparada porMater et Magistra, foi reforçada pelo Concílio Vaticano II e pela encíclica Populorum Progressio (26 de março de 1967) de Paulo VI. Apesar dos avanços do economismo e do consumismo, do imperialismo dos monstros frios transnacionais, a inspiração social do Evangelho cresceu em nosso país e na América Latina sob o influxo da doutrina pontifícia e conciliar, difundida e aplicada pelo episcopado brasileiro e latino-americano. As Conferências dos Episcopados do Continente, movimentos como a Campanha da Fraternidade, têm acentuado a atualidade e dado um caráter operacional à dimensão social do Evangelho. Ele é pregado e testemunhado como fonte de salvação e de promoção de uma sociedade justa e solidária. IHU On-Line – Qual a atualidade deste documento 50 anos depois? Frei Carlos Josaphat – A mensagem desta encíclica, sua redação muito clara e precisa, seu estilo simples e direto, tornam sua leitura muitíssimo proveitosa, mais fácil e mesmo agradável para pessoas e movimentos de diferentes níveis culturais. As medidas e os projetos propostos em Pacem in Terris levam em conta a atualidade, mas não se particularizam nem se prendem às condições circunstanciais e contextuais do momento em que foi escrita. Mais do que outros documentos eclesiásticos, as encíclicas de João XXIII, especialmente Pacem in Terris, conseguem fazer a junção do Evangelho com a vida, convidando a analisar e compreender o mundo moderno com seus desafios, suas aspirações e seus desvios. IHU On-Line – Deseja acrescentar algo? Frei Carlos Josaphat – A maior urgência, sobretudo para os cristãos, é descobrir ou intensificar a certeza na verdade evangélica: Deus é Amor, Deus ama mesmo este mundo que aí está. E nos confia a missão de tudo fazer para promover o Reino do Amor. É a mensagem da penúltima hora, proclamada nas encíclicas de João XXIII, no Concílio Vaticano II, especialmente em Gaudium et Spes, a que Paulo VI quis acrescentar sua encíclica "latino-americana” Populorum Progressio. Sem se desfazer dos outros, esses são os documentos mais densos, mais diretos e que melhor exprimem a urgência de nosso compromisso cristão diante da humanidade globalizada e pós-moderna. http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=74905

terça-feira, 23 de abril de 2013

CNBB se opõe à PEC indígena e é contra redução da maioridade penal

<19/04/2013 19h17 - Atualizado em 20/04/2013 09h54 C Após nove dias de encontro em Aparecida, bispos encerram assembleia. Eles se posicionaram sobre assuntos que estão em pauta no país. Do G1 Vale do Paraíba e Região Os bispos encerraram nesta sexta-feira (19) a Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Aparecida, no interior de São Paulo. No evento, a entidade se posicionou contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que transfere ao Congresso a decisão sobre a demarcação de terras indígenas e se opôs à redução da maioridade penal. De acordo com documento produzido pela entidade, a demarcação, reconhecimento e titulação de territórios indígenas é dever constitucional do poder executivo. 'Sendo de ordem técnica, (o assunto) exige estudos antropológicos, étnico-históricos e cartográficos. Não convém portanto que seja transferido ao legislativo', diz trecho. Os bispos reafirmam que o adiamento da instalação da sessão para definir o assunto só no 2º semestre não elimina a apreensão da igreja quanto ao lobby pela aprovação da PEC. Sobre a redução da maioridade penal, Dom Raymundo Damasceno, arcebispo de Aparecida e presidente de CNBB, afirmou que o Estado precisa atacar as causas do problema que levam jovens a cometerem delitos. "Precisa abordar o tema de maneira mais ampla, identificar suas causas, que se encontram sobretudo na desagregação familiar, na falta de oportunidades para esses adolescentes, na insuficiência de políticas públicas por parte do Estado, na banalização da vida, no narcotráfico que recruta esses jovens e na falta de segurança. Reduzir a maioridade penal é simplificar o problemas que provavelmente não será resolvido", afirmou. A questão voltou ao debate depois que um rapaz de 17 anos matou e confessou o assassinato de um jovem. Ele completou 18 anos três dias depois do crime. Na ocasião, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), defendeu mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente. Renovação das paróquias Durante os nove dias de encontro, os bispos debateram ainda as diretrizes da igreja. O tema deste ano foi a renovação das paróquias. Para Dom Raymundo, a igreja precisa ir até os cristãos. "A paróquia tem que ser missionária e não mera prestadora de serviços para quem vai até ela", defendeu o religioso. Os bispos discutiram ainda a Jornada Mundial da Juventude, prevista para acontecer em julho no Rio de Janeiro. O grupo aguarda a visita de uma comissão do Vaticano, que vai definir a agenda do Papa Francisco no Brasil. http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2013/04/cnbb-se-opoe-pec-indigena-e-e-contra-reducao-da-maioridade-penal.html

sábado, 20 de abril de 2013

Nota de solidariedade aos moradores em situação de rua

51ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), CNBB, Notícias Newsletters, Notícias Por conta da sequencia de assassinatos de moradores de rua em Goiânia (GO), os bispos da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz da CNBB, divulgaram nota de solidariedade ao povo de rua. Também assinam o documento, publicado na manhã desta quarta-feira, 17 de abril, os bispos do Regional Centro-Oeste e da Arquidiocese de Goiânia. Íntegra da nota. Nota de solidariedade aos moradores em situação de rua A Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz; o Regional Centro Oeste da CNBB e a Arquidiocese de Goiânia, reunidos na 51ª Assembleia geral da CNBB, em Aparecida – SP, manifestam seu repúdio ao extermínio da população em situação de rua que vem ocorrendo em Goiânia-GO e na Grande Goiânia. De agosto de 2012 a abril deste ano, foram brutalmente assassinados 30 moradores em situação de rua, dos quais a grande maioria é de jovens, inclusive uma criança de 11 anos. Diante desta condenável situação, solicitamos: 1. Que os poderes públicos municipal, estadual e federal tomem medidas urgentes que eliminem esta situação de violência e restabeleçam a paz e segurança aos moradores de rua; 2. Que as mortes dos moradores em situação de rua sejam investigadas e federalizadas imediatamente; 3. Que sejam tornados públicos os resultados das investigações com sua ampla divulgação na mídia; 4. Que os responsáveis sejam processados, julgados e condenados com rigor e rapidez; 5. Que o Estado de Goiás e a Prefeitura de Goiânia se responsabilizem efetivamente pelas mortes dos moradores em situação de rua e se comprometam em auxiliar os familiares das vítimas; 6. Que sejam criados, em caráter emergencial, espaços físicos que ofereçam alimentação, dormitório e, sobretudo, segurança aos moradores em situação de rua; 7. Que se criem políticas públicas de inclusão social dos moradores em situação de rua, devolvendo-lhes a dignidade humana roubada e ferida e os tire dessa situação degradante. Lamentamos que casos como o de Goiânia se repitam em outras partes do país. Conclamamos aos gestores públicos que promovam a justiça e o fim do extermínio de tantas pessoas humanas que, como todo povo brasileiro, merecem viver e conviver com dignidade. Na esperança de que nosso pedido seja atendido e de que a paz volte a reinar neste chão, invocamos a bênção de Deus sobre todos os seus filhos e filhas. Aparecida – SP, 17 de abril de 2013 D. Guilherme Antonio Werlang MSF – Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz da CNBB Bispos membros da Comissão: Dom Enemésio Angelo Lazzaris FDP; Dom José Luiz Ferreira Sales CSSR; Dom José Moreira Bastos Neto; Dom Pedro Luiz Stringhini; Dom Roque Paloschi; Dom José Luiz Majella Delgado CSSR – Presidente do Regional Centro-Oeste da CNBB Dom Washington Cruz CP – Arcebispo Metropolitano de Goiânia – GO http://www.semanasocialbrasileira.org.br/post/2348

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Bispos vetam projeto sobre questão agrária

15 de abril de 2013 | 20h 05 JOSÉ MARIA MAYRINK, ENVIADO ESPECIAL - Agência Estado Os bispos vetaram nesta segunda-feira, 15, por consenso o projeto sobre a Questão Agrária que deveria ser publicado como documento oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na próxima sexta-feira, por considerar o texto parcial e de inspiração socialista. Dezenas de sugestões e de emendas apresentadas no plenário da Assembleia Geral do episcopado, reunida em Aparecida, tornaram inviável a publicação do documento, que só será votado no próximo ano. "Houve objeções à linguagem e ao conteúdo com relação, por exemplo aos movimentos sociais e à análise de novas realidades", disse o vice-presidente da CNBB, d. José Belisário da Silva, arcebispo de São Luiz (MA). Os bispos rejeitaram a sugestão de que, feitas as emendas, o projeto fosse enviado ao Conselho Permanente, que se reúne periodicamente em Brasília e poderia aprovar a nova versão. O plenário preferiu transferir a responsabilidade para a 52ª Assembleia Geral, em 2014. Os pontos mais polêmicos foram os referentes a movimentos sociais, como a Via Campe- sina e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que tiveram mais importância para a Igreja Católica no passado, mas que, na opinião dos bispos, não merecem mais o destaque e o apoio quase incondicional que tiveram no texto vetado. O agronegócio, criticado no texto como se fosse uma realidade opressora dos pequenos agricultores e trabalhadores rurais, deverá receber outro tratamento na revisão da proposta de documento. "Os bispos sugeriram, numa enxurrada de emendas, que se reconheça o avanço alcançado na questão agrária nos últimos 33 anos, desde 1980, quando a CNBB publicou seu último documento oficial sobre o tema", informou o bispo de Ipameri (GO), presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz. "Houve avanço na Reforma Agrária, embora haja muito ainda a fazer, e conquistas da parte da sociedade, da ação política e da Igreja", observou. O conceito de latifúndio também deverá ser revisto, para evitar uma condenação generalizada, como se toda propriedade de terra fosse sinônimo de injustiça e contrária ao direito natural. A linguagem do projeto de documento, segundo um bispo do Nordeste que lutou pela rejeição do texto, é cheia de chavões marxistas e desatualizada. A mesma comissão que redigiu a versão rejeitada foi encarregada de melhorar a redação. http://www.estadao.com.br/noticias/geral,bispos-vetam-projeto-sobre-questao-agraria,1021311,0.htm

sexta-feira, 12 de abril de 2013

50 anos depois do Concílio Vaticano II: indicações para a semântica religiosa do futuro

76ª edição - 50 anos depois do Concílio Vaticano II: indicações para a semântica religiosa do futuro Cadernos Teologia Pública, em sua 76ª edição, de 26 de março de 2013, apresenta “50 anos depois do Concílio Vaticano II: indicações para a semântica religiosa do futuro” de José Maria Vigil. O autor desse texto é José Maria Vigil, teólogo espanhol naturalizado nicaraguense, é padre claretiano, tem formação em Teologia pela Universidad Pontificia de Salamanca. Segundo palavras do autor as temáticas aqui apresentadas são "reflexões que provêm do campo da epistemologia. A partir delas, poder-se-ão extrair consequências teológicas, mas, agora, quero concentrar-me nos limites da epistemologia". Os Cadernos Teologia Pública podem ser adquiridos diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU ou solicitados pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8247. A partir de 26 de abril de 2013 esta edição estará disponível na íntegra, neste sítio, em formato PDF. http://www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu-teologia/518762-76o-edicao-50-anos-depois-do-concilio-vaticano-ii-indicacoes-para-a-semantica-religiosa-do-futuro

terça-feira, 9 de abril de 2013

Verdade: uma tentativa de compreensão

Esclarecimento: Esta conferência a pedido da Comissão Nacional da Verdade foi preparada no intuito de provocar uma reflexão e um debate em torno da questão da verdade. Entretanto, no dia da apresentação na Assembléia Legislativa de São Paulo, 25 de março de 2013, ela pareceu-me inadequada diante da emoção provocada pela memória dos sofrimentos de tantas mulheres vítimas da ditadura militar brasileira. Apesar dos limites, meu texto é oferecido a todas elas, especialmente a Inês Etienne Romeu, que através de sua vida cheia de coerência, sofrimentos, pequenas vitórias e alegrias testemunha que vale a pena lutar pela dignidade humana. Ivone Gebara Breve Introdução O que queremos dizer quando buscamos a verdade ou quando criamos uma Comissão Nacional da Verdade? Num primeiro momento podemos dizer que se estamos buscando a verdade é porque vivemos uma injustiça, um erro, um equivoco, uma mentira, uma situação dúbia, um engodo, uma falta de clareza que nos impedem de viver com dignidade e no respeito à nossa história. Nessa linha temos que perguntar quem é esse “nós” que vive nessa situação precisa? Há um nós pessoal, um nós grupal e um nós nacional mais amplo. Para cada caso é preciso enfrentar essa busca através de caminhos semelhantes e diferentes sendo que nenhum deles é isento das contradições e das motivações individualistas ou parciais que nos caracterizam. Quando se trata de um “nós” nacional parece que se quer corrigir uma história escrita e contada, se quer fazer aparecer o que não está presente na oficialidade contada em um tempo determinado, se quer lembrar o que permaneceu esquecido, embora vivo na memória e nos corpos de muitas e de muitos. E, nesse processo, queremos restaurar algo que chamamos verdade. Mas que verdade é esta? O que é essa verdade? A quem pertence? Haveria uma verdade para além dos fatos relatados, para além de nossas relações cotidianas sempre interpretadas segundo nossos critérios e as percepções de nossos corpos? Haveria algo que nos seria possível captar para além das muitas interpretações dos fatos e acontecimentos de nosso dia a dia? Haveria algo para além da história relatada nos jornais, divulgada pelos poderes estabelecidos, presente nos arquivos de muitas fontes ou narrada apenas por alguns? Haveria um valor talvez intrínseco aos acontecimentos que necessitasse aparecer e que pudesse ser chamado de “a verdade”? As perguntas se multiplicam, mas as respostas convincentes são escassas. Entretanto, o que fala mais alto é o sentimento de muitas/os de que há retificações, há novas informações que precisam ser dadas para sairmos de algumas das armadilhas nas quais nossa história coletiva dos tempos da ditadura militar no Brasil caiu. E, nessa história quero enfatizar de maneira particular algo da história das mulheres heroínas da liberdade e vítimas do obscurantismo do regime. A reflexão que proponho tenta de certa forma desatar alguns nós que a questão da verdade nos faz encontrar. O surpreendente é que ao tentar desatar um deles percebemos que seu interior é constituído por outros tantos nós menores de tal forma que acabamos nos convencendo que esse processo é sem fim. Entretanto, empreender tal caminho enche-nos de entusiasmo e de desejos de descobrir mais alguns fios ocultos do tecido humano que nos constitui, muito embora sempre deparemos com a maior complexidade da vida e de nossa história comum. Apesar delas, vale à pena adentrar um pouco mais nos múltiplos meandros daquilo que chamamos “verdade” para aprender algo mais de nossa própria humanidade. Nesse aprendizado conhecer algo da constituição etimológica de algumas palavras que usamos correntemente é uma vereda que poderá nos ajudar a entender a história do que buscamos. Nesse sentido podemos dizer que a “verdade” tem história, e uma história sem fim na própria história da humanidade. 1. Buscando compreender a palavra “verdade” A palavra verdade vem do grego alethea que significa desvelamento, desocultamento. Mas, o que é desocultado ou desvelado? A palavra LETE constitutiva da palavra alethea = verdade, tem a ver com a mitologia grega. Lete é um dos rios do Hades e conta-se que aqueles que bebessem de suas águas ou mesmo as tocassem experimentariam o completo esquecimento de seus atos. O fato é que todos nós em porções maiores ou menores bebemos das águas de Lete e por isso mesmo Lete corre em nossas veias e é constitutivo de nosso corpo e de nossas ações. Encobrir, esquecer é próprio dos seres humanos. Entretanto, o esquecimento total nos aniquila como seres humanos e não nos permite sermos íntegros uns com os outros. Por isso apesar de sermos Lete somos mais do que isso, visto que o esquecimento ou o ocultamento dos nossos atos tem conseqüências sociais imensas. Algumas tradições míticas falam também de outro rio, o Mnemósine cujas águas frias eram propícias à memória. Beber delas fazia recordar coisas esquecidas e podia-se até alcançar a onisciência. Por isso podemos dizer que em todos os acontecimentos somos memória e esquecimento, somos Lete e Mnemósine. É nesse sentido que aletheia é a suspensão do esquecimento, é a lembrança daquilo que foi esquecido, é a reconstituição e recuperação dos pedaços de nossa história deixados de lado. Nesse sentido, creio que uma Comissão da Verdade tem que beber da Mnemósine coletiva, ou seja, da memória coletiva para finalmente tocar algo mais do mundo de alethea sempre em movimento, sempre sendo de novo interpretada, redescoberta por outras e outros, contada sempre de novo, pois ninguém é dono da totalidade de nossa história. Para além das muitas interpretações filosóficas sobre o que seria verdade, das múltiplas explicações subjetivas que damos a ela e das emoções que nos envolvem dependendo do que estamos vivendo, há alguns pontos que a meu ver permitem observar aspectos que poderiam ser chamados “objetivos”. Tomo a palavra “objetivo” num sentido bastante factual e pragmático sabendo das contradições que envolvem esse termo. Por exemplo, se houve um acidente de carro na rua e um morto exposto no chão. Antes de saber como foi o acidente, de quem é a culpa, se ele morreu por escolha ou por outra causa, vejo-me diante de um fato: há um morto na rua, vítima de um acidente. Este acontecimento não pode ser simplesmente negado e não é sem conseqüências para a sociedade. Para além das interpretações que podem envolver essa morte há um “objeto”, o cadáver que os passantes podem ver ou o cadáver exposto num salão funerário ou o cadáver do qual constatamos a existência, mas que desapareceu de nossos olhos. As testemunhas são as responsáveis primeiras para informar sobre o acontecimento e delinear assim sua interpretação. Para além de todas as interpretações econômicas, políticas e sociais da fome na Biafra ou em outro lugar do mundo há um fato observável e inegável: Pessoas morrem de fome! Trata-se de poder sentir com nosso corpo, ver com nossos olhos e ouvir com nossos ouvidos a destruição terrível de seres humanos que morrem por falta de alimento. Mais uma vez as testemunhas falam disso e a elas nos fiamos quando somos convidadas a fazer algo. Há o fato envolto em meio às muitas interpretações. A proximidade do morto, do faminto, do humilhado através de nossos laços afetivos permite que sintamos essa “verdade da morte” ou a “verdade da fome” ou a “verdade da violência contra as mulheres” de forma mais envolvente e de certa forma mais aguda do que em outras situações. E, a partir desse envolvimento emocional as nossas razões de buscar a verdade se encontram de certa forma diante da impossível neutralidade diante dos fatos. Por essas razões, para além das muitas razões emocionais ou justificações racionais que damos a alguns atos violentos, sobretudo no momento em que são realizados temos que admitir certo caráter objetivo do mal para que a própria vida em sociedade seja viável. Este caráter significa que houve de alguma maneira diminuição da qualidade de vida, uma produção de sofrimento atroz, uma violência desmesurada de uns contra outros e isto pode ser constatável para além da atribuição das responsabilidades. É isso que chamo de caráter objetivo. Esse caráter objetivo é de certa forma anterior a qualquer julgamento ou qualquer juízo de valor ou qualquer merecimento ou responsabilidade pessoal visto que é uma exigência de convivência humana. Somos seres interiores e exteriores ao mesmo tempo. E, essa realidade me permite proclamar também certo caráter objetivo da verdade, embora inscrito nas mil e uma interpretações e justificações subjetivas. Este claro-escuro de nosso “estar no mundo” é manifestado na própria etimologia grega da palavra verdade e na diversidade de suas expressões nos vários campos da atividade humana. A partir dessa perspectiva gostaria de abrir nossa reflexão para o campo das relações entre verdade, cultura e religião visto que essa teve um papel fundamental não só no estabelecimento da ditadura como na luta contra ela. E, além disso, creio ser muito importante compreender como a religião contribuiu para o desenvolvimento de uma cultura da submissão e da naturalização de muitos comportamentos de maneira particular em relação às mulheres. 2. Verdade, Cultura e Religião Quando fazemos a relação entre verdade e religião as coisas se complicam dada a complexidade do fenômeno religioso. A religião, sobretudo a do Livro Sagrado, se pretende fundada em verdades de forma que os membros de uma ou outra instituição religiosa têm a convicção de que orientam suas vidas pela verdade ou ao menos por uma verdade. É como se afirmassem a existência de uma verdade pré-factual, para além dos acontecimentos embora, mostrando-se nos acontecimentos, uma verdade pré-existente e ao mesmo tempo revelada aos fiéis. Não posso entrar no caráter da verdade religiosa nesse espaço apesar de sua grande importância. Fico no tema das influencias que alguns conteúdos religiosos tiveram na história e política do período da ditadura militar seguindo as investigações da Comissão Nacional da Verdade. Dada a cultura religiosa brasileira de corte majoritariamente cristão muitas vezes cometemos o equivoco de pensar o período da ditadura militar apenas a partir da cumplicidade das autoridades religiosas. De fato não podemos negar certa cumplicidade, sobretudo quando desde o governo de João Goulart as igrejas cristãs temiam o avanço do que chamavam comunismo. Tinham medo, sobretudo, que o comunismo ateu pudesse até banir as igrejas cristãs da vida do país. O cristianismo como parte constitutiva da cultura nacional tinha que ser preservado e mantido nas suas diferentes expressões históricas e na sua representação das forças sociais. Entende-se o medo de muitos e inclusive o espanto quando, por exemplo, operárias e empregadas domésticas católicas foram presas e acusadas de comunismo por pertencerem a JOC (Juventude Católica Operária). Elas, que também eram contra o comunismo foram ser acusadas de comunistas. As razões de sua prisão não eram claras e isso era parte do terrorismo do Estado ditatorial e da incompetência de seus funcionários. O que me parece importante lembrar é que muitos dos torturadores, dos delegados, dos militares em todos os escalões declaravam-se cristãos. E seu cristianismo tinha uma espécie de característica de cruzada ou de combate pela fé contra seus inimigos reais ou imaginários. Veja-se, por exemplo, a importância dos santos guerreiros na cultura popular brasileira como São Jorge e Santo Expedito. É nesse sentido que para muitos, os militares foram bem-vindos como defensores da fé cristã ou como um caminho importante para se combater o novo deicídio tramado pelas esquerdas do país com apoio de governos estrangeiros declaradamente ateus. Por isso, alguns consideraram as ditaduras militares como movimentos de restauração da cultura cristã ameaçada pelos novos infiéis do século XX. Nessa época não só a propriedade privada estava ameaçada, mas também os valores cristãos, a crença em um Deus criador e todo poderoso e especialmente a família. Isto explica em parte o sucesso da Cruzada do Rosário, fundada pelo padre irlandês radicado nos Estados Unidos – Patrick Peyton. Os que encabeçavam as manifestações de rua não eram apenas membros do clero católico, mas, sobretudo senhoras de classe média do Rio de Janeiro que bravamente empunhavam seu rosário e rezavam Ave - Maria enquanto João Goulart e Leonel Brizola discursavam. Queriam mostrar que o rosário da virgem era capaz de salvar a pátria das ameaças comunistas. Queriam mais uma vez mostra a importância do “Brasil para Cristo” lema tantas vezes repetido por diferentes movimentos religiosos. Essa cultura cristã católica é em certo sentido mais do que o nome de um arcebispo ou de um cardeal ou mesmo de um padre ou pastor muito embora não se possa diminuir a responsabilidade deles. Entretanto, quero sublinhar que a responsabilidade pelos crimes da ditadura é maior e mais ampla do que se pensa, especialmente no que se refere a nossa formação cultural cristã. Houve sem dúvida uma cultura da ordem e da obediência desenvolvida por um tipo de cristianismo católico romano e protestante que não apenas formou as elites capitalistas do país de forma a manter privilégios e hierarquias. Formou também o povão para igualmente manter as hierarquias e fazer respeitar a ordem estabelecida muitas vezes identificada à vontade divina. Isto explica por que funcionários do governo, militares, diretores e diretoras de escolas públicas, vigias e guardas privados foram obedientes às ordens e em alguns casos chegaram a denunciar “o mal” que descobriam nos colegas. Caso contrário não apenas perderiam seus cargos ou seu emprego, mas seriam considerados inimigos do regime e desobedientes às leis da Igreja. Estas afirmações me fazem lembrar um jovem torturador ao qual fui exposta quando minha amiga Carmen fora presa em 1970. No dia da prisão eu estava com ela e fomos do colégio estadual Giacomo Stávale na Freguesia do Ó, à sua casa com a polícia militar nos acompanhando. Um dos policiais, jovem ainda, que foi também seu torturador vasculhou na minha presença seu quarto. Encontrou em uma das gavetas um crucifixo. Pegou-o com reverência e olhando para ele disse: “faço tudo por ele. É ele que me dá forças”. Para mim esse é um pequeno exemplo de que o espírito religioso é complexo e pode ter varias posturas segundo as convicções ideológicas de cada um. Não combate necessariamente a tortura infligida aos outros pelo simples fato de que este é um ato ilícito. Mas quando esse ato vem justificado como defesa da pátria, da família e de Deus muita coisa é permitida. Por isso não só os freqüentadores assíduos das igrejas são religiosos, mas há uma cultura religiosa da ordem e da submissão que impregna ainda hoje nossa cultura nacional. Esta é de certa forma responsável pela produção da violência simbólica e cultural que convive conosco. O presidente Pinochet do Chile era católico romano declarado. Nunca deixou de comparecer as missas privadas que eram celebradas em sua residência e foi valorizado por muitos fiéis e eclesiásticos por sua fé e, sobretudo quando declarou a Virgem Maria patrona do exército chileno. O símbolo feminino máximo do catolicismo romano tornara-se de certa forma cúmplice das ações do exército chileno na sua luta anticomunista. A Virgem Maria podia estar nos altares e ser venerada e exaltada. Mas as mulheres de carne e osso, estas continuavam submissas, violadas e aprisionadas. A distância entre o simbolismo religioso cultural e a vida cotidiana das mulheres é enorme. A cultura da obediência às hierarquias, o respeito às autoridades civis, militares e religiosas criou em nós também uma cultura de subserviência muitas vezes apenas formal, mas bastante forte, sobretudo por ocasião dos regimes ditatoriais. A delação e a culpabilização do chamado infrator ou infratora sem a verificação das causas de sua infração fizeram parte dessa cultura autoritária na qual ainda vivemos em parte. A autoridade quase sempre tem razão. Além disso, o apelo ao demônio e suas garras assim como a necessidade de estar sempre vigilantes foi uma constante na educação cristã. Mais uma vez, sem negar a necessidade de apontar os responsáveis mais diretos pelos crimes da ditadura e das muitas formas de autoritarismo social e cultural é preciso reconhecer os limites de nossa responsabilidade individual em muitas situações. Lembro-me do livro “Ressurreição” de Léon Tolstoi em que o personagem principal, o príncipe Niekhliudof observa prisioneiros/as levados aos trabalhos forçados na Sibéria em pleno verão russo. As condições físicas e psíquicas das centenas de presos, muitos dos quais sem clareza sobre seus pretensos crimes, eram bastante precárias. Alguns morreram pelo caminho antes de chegar ao seu destino. As condições de transporte eram incomodas e precárias faltando até água para saciar a sede dos prisioneiros. Niekhliudof se pergunta então sobre os responsáveis pelos assassinatos visto que ele mesmo conclui que essas pessoas mantidas nessas condições estavam sendo literalmente assassinadas. Quem as está assassinando? Teria sido o responsável por assinar a sentença condenatória, teriam sido os policiais da prisão, a guarda responsável pelo traslado, os funcionários do trem, o imperador... Mas todos individualmente pareciam ser pessoas boas, dóceis, cordiais, bons chefes de família. Nenhum deles poderia ser acusado pelo crime e nenhum assumia que era também um criminoso. No entanto os mortos e os moribundos estavam ali. Quem os matou e quem os estava matando? De fato podemos dizer que os governos são os responsáveis, mas não só. A cultura hierárquica da obediência, a valorização dos que têm poder econômico, político e religioso, a crença numa divindade toda poderosa são também formadores desta cultura de violência e privilégios. São capazes de gerar regimes que torturam: homens que torturam homens, homens que violam mulheres, mulheres que enganam homens, acusações vazias, crenças vazias e violência plena. Essa dimensão coletiva da construção social e cultural na linha da espiral da violência com todas as conseqüências criminosas não pode ser esquecida. Vivemos numa sociedade onde apesar das responsabilidades mais diretas, todos nós, somos igualmente responsáveis na medida em que apenas cumprimos ordens sem nos interessarmos pela vida daquelas e daqueles a quem estas ordens estão dirigidas. A máquina administrativa privada, pública e religiosa quer apenas funcionar bem e guardar privilégios. Por isso qualquer compaixão, quaisquer atos de misericórdia precisam ser esquecidos ou simplesmente eliminados das leis que regem as instâncias punitivas da sociedade. O Cristianismo como instituição religiosa oficial na sua pluralidade social e política quase sempre esteve do lado dos reis, príncipes, imperadores, ditadores. Permaneceu do lado da chamada ordem social vigente sendo assim legitimadores dessa ordem através das crenças religiosas e do “poder espiritual” que detinham. Entretanto, também houve os párias cristãos, aquelas e aqueles que intuíram algo diferente na experiência do Movimento de Jesus. Intuíram que os grandes poderes se equivalem e que são capazes de tirar a vida, sobretudo dos pequenos. Por isso seu deus não está nas alturas, mas na carne múltipla da terra e no corpo da humanidade. Por essa fé e essa aposta na vida reinterpretaram a tradição do Movimento de Jesus reinventando-o segundo o sentido que encontravam na sua vida e na história. Propuseram-se a fermentar a massa, a curar corações feridos, a ajudar os prisioneiros a desatar suas correntes. E seguem até hoje no anonimato da grande história. Esse/as párias também atuaram de forma anônima nos tempos da ditadura. Lembro-me de Ir Catarina (da Congregação de S. Vicente de Paulo) que trabalhava como enfermeira no Hospital Militar do Recife. Através de sua maneira de ser conseguia descobrir os nomes dos presos hospitalizados e até mandar mensagens de suas famílias para alguns. 3. Verdade e Política Idealmente podemos falar da importância do bem comum e entendê-lo como cuidado dos cidadãos e cidadãs na manutenção de relações justas e igualitárias. Esse ideal é também o objetivo da política, ou seja, a arte de organizar a convivência comum nos diferentes setores da vida humana garantindo aos cidadãos e cidadãs o direito a uma vida digna. Entretanto, quando saímos desse ideal de reconhecida importância, dessa espécie de horizonte que nos ajuda a caminhar na história, deparamos com a realidade cotidiana das relações humanas e com a dificuldade de explicá-las e entendê-las. Deparamos com a transgressão das leis, a mentira nas relações sociais mais amplas, a competição entre poderes fruto da busca de benefícios pessoais e do conhecido egoísmo humano. Essa é uma história bem conhecida muito embora cada vez que a constatamos no nosso hoje nos surpreenda como se fosse uma grande novidade. Em grandes rasgos quero retomá-la em relação à responsabilidade política coletiva que temos, sobretudo nesse momento de restauração da verdade dos sofrimentos e esperanças de tantas pessoas vítimas da insanidade da ditadura militar. Creio que há uma ilusão em pensarmos que se pode chegar à verdade como se chega ao final de uma rua. O mesmo acontece quando se fala da justiça e do amor. É fácil ouvir as pessoas dizerem “queremos a verdade dos fatos”, “queremos que a verdade apareça” ou “queremos justiça” ou “a solução é amar”, sobretudo quando o leite já foi derramado. Mas o que buscamos a partir desses desejos genéricos? Suspeito que cada grupo tem a sua versão da verdade e que embora para alguns ela seja uma mentira, ela não deixa de ser objeto de lutas e litígios para a manutenção dessa mentira. O conflito entre as muitas versões da verdade política têm a ver com o caráter ideológico partidário que se move entre os interesses das elites donas do poder, da classe média querendo usufruir dos benefícios e da grande maioria em situação de pobreza querendo aceder aos benefícios que a sociedade poderia lhes oferecer. Não há inocentes muito embora se possa falar de diferença de responsabilidades. Entretanto esse esquema parece ser cada vez mais simplista quando nos enfrentamos aos sujeitos atuantes em nossa história e mais especialmente quando se trata de crimes políticos. A justificativa dada pelo poder estabelecido em relação aos crimes políticos tem quase sempre a ver com o caminho necessário para a defesa do povo, a defesa dos princípios morais de uma nação, a necessidade de manutenção da ordem contra intervenções estrangeiras ou contra aventureiros que querem se apossar do poder do país. E esta justificativa tende a revestir-se de um caráter pretensamente ético em vista do bem da maioria como se o bem de uma elite significasse o bem de toda a população. Entretanto, infelizmente a grande maioria das pessoas entra nos jogos do poder, pois se extasiam diante daquilo que ele pode oferecer. Acolhe a versão da oficialidade quase como uma crença misturada com o medo e o desejo de auto-conservação da vida. E, se possível até desenvolvem o anseio de aceder a uma situação de vida como aquela que os bem nascidos ou os bem sucedidos usufruem. Podem, entretanto duvidar no seu foro íntimo da retidão das políticas das elites, mas o enfrentamento real do povão é muitas vezes coibido pelo medo à repressão ou pelo medo de perder os poucos privilégios que têm e em parte pelo desejo íntimo de ser favorecido por algum benefício concedido pelos poderosos. Isso explica como certos conhecimentos de pessoas influentes e até a propina funcionou e funciona para abrandar certos julgamentos de crimes contra a nação. A verdade do jogo de poderes, sobretudo econômicos, não consegue ser totalmente desvendada, não aparece à luz do dia como um jogo de forças desiguais e interesses opostos. Alguns possuem os poderes de repressão e outros de saquear, roubar, matar a luz do dia de diferentes formas. A cumplicidade entre esses poderes e funções é cada vez maior. Basta lembrar-se dos altos salários que recebem deputados, juízes e outros funcionários dos governos. Por isso podem se permitir reservar parte de seus benefícios à instituição da propina e à corrupção daqueles dos quais necessitam para manter seu segredo de enriquecimento ilícito vestido de árduo trabalho em favor da população. E nem falo dos crimes das empresas de serviço público e de suas políticas tecnológicas que acabam impedindo a continuação de uma reivindicação justa e vencendo as pessoas pelo cansaço. A morosidade no atendimento, as longas esperas, as distâncias a percorrer inviabilizam cada vez mais o acesso dos menos favorecidos aos bens e direitos disponíveis. A burocratização das relações e dos serviços é uma nova ditadura que impede a vivência do direito e da liberdade. Este é o poder dos que se mantém no poder com seus múltiplos privilégios e benefícios. Por outro lado aparecem os criminosos/as políticos. Quem são eles e elas? A história dos povos nos ensina que foram tecidos de várias classes sociais e de várias formações culturais e religiosas movidos pelo ideal de mudar as regras do jogo de privilégios. Dele participaram pessoas as mais diferentes com desejos políticos diferentes, com paixões conflituosas, mas que num momento histórico preciso uniram forças para lutar contra quem julgavam ser o inimigo maior do povo. Eram tomados pela chama da liberdade e ela embora os motivasse e impulsionasse não os impedia de viver em contradições individuais flagrantes. Basta ver o tratamento sexista que movimentos de esquerda da década de 1960 e 1970 davam às mulheres e as publicações posteriores sobre esse período. Havia uma imagem dos revolucionários que povoava a esquerda latino-americana e brasileira. Eram os jovens barbudos parecidos com Che Guevara que habitavam os sonhos revolucionários inclusive das mulheres. Sobre o período da ditadura se falava do movimento estudantil, sobre os presos políticos e as lutas do povo no masculino como se quisesse ainda uma vez invisibilizar a ação e a vida de tantas mulheres. O resgate dessa memória feminina revolucionária é uma conquista de nosso século. Mas, a grande questão é que estas pessoas, homens e mulheres, eram consideradas criminosas políticas porque se organizavam de diferentes maneiras para defender os interesses populares muito embora não tivessem diretamente o apoio das massas populares. Despertavam ódio dos donos do poder e no tempo da ditadura militar no Brasil foram perseguidas, presas, torturadas e mortas como inimigas do bem da pátria. Os criminosos/as políticos foram idealistas convencidos da possibilidade de instaurar relações justas entre as pessoas e os povos. E seus ideais também os levaram a excessos que lhes permitiram usar as mesmas armas dos que oprimiam o povo. Mediram forças e sucumbiram na tomada do poder. Entretanto, foram vitoriosos na história da inspiração dos grandes humanismos que caracterizam a história humana. Os poderes estabelecidos criam as situações de intolerância e são intolerantes com os que os criticam como formas de manter seu poder. A contaminação desses vícios de poder é tremenda, de forma que a corrupção pequena ou grande passa a ser uma moeda de troca para se viver mais ou menos bem na sociedade. Hoje, apesar de alguns avanços, ainda é assim. Inventamos formas mais sutis, porém mais eficazes de dominação e adormecimento das consciências. E é ainda nesse meio que outros modelos de “criminosos /as políticos” nos vários setores da sociedade continuam levantando suas vozes para proclamar o amor da humanidade pela humanidade apesar dos crimes, traições e assassinatos do passado e do presente. Nós mulheres tivemos e temos um papel de grande importância nessa “criminalidade política” e luta contra os sistemas de naturalização dos comportamentos. Essa criminalidade é sem dúvida às avessas porque na realidade é uma luta por nossa dignidade que se manifesta de diferentes maneiras e especialmente a partir de uma nova maneira de compreender as relações entre os seres humanos. Sem dúvida falar de criminalidade pode induzir a equívocos. Entretanto ao menos provisoriamente quero manter a expressão equivocada para indicar essa mistura de razões e irracionalidades de nossa história e do necessário discernimento diante dela. 4. Verdade e Gênero Tentar falar das relações entre verdade e gênero no final dessa reflexão é intencional visto que gostaria de chamar a nossa atenção para um problema que passa quase sempre despercebido pela maioria das pessoas. É que a verdade histórica quer na sua relação com as coisas simples da vida cotidiana, quer na religião, na política e nos cárceres é marcada pelas relações de poder entre mulheres e homens. Relações de gênero são relações de poder que atravessam o conjunto de nossa história em diferentes direções e intensidades. Essas relações são expressas através de comportamentos, valores e práticas culturais que de certa forma foram naturalizadas. Em outros termos foram interpretadas como sendo próprias da natureza feminina ou da natureza masculina e, por isso mesmo, consideradas quase imutáveis. Por exemplo, se fala das necessidades sexuais dos homens como algo evidente enquanto as necessidades sexuais das mulheres como algo secundário. De forma que se vai permitir aos homens uma prática sexual que mesmo sendo desrespeitosa poderá ser justificada pela necessidade que a natureza lhes impôs. O mesmo em relação ao exercício do poder político, antes considerado como prerrogativa da natureza masculina. Essa concepção naturalista tenta a desculpar os homens de eventuais deslizes e culpabilizar as mulheres por comportamentos semelhantes. No processo de dês-velamento próprio da realidade factual que é o mesmo processo da manifestação pública do que chamamos “verdade” no ser humano, há um nó que em geral foi esquecido pelos principais analistas das ditaduras militares da América latina. Trata-se da questão de gênero nos processos repressivos e nos processos de restauração da verdade. Falar da questão de gênero nos processos repressivos é indicar a presença de uma relação particular entre mulheres vítimas e homens torturadores ou inquisidores. Poderia ser o contrário também, mas creio que isto aconteceu bem pouco nos calabouços da ditadura brasileira. O mais comum foi as mulheres sofrerem sevícias sexuais especialmente nas áreas mais sensíveis de sua genitalidade, nos seus seios e mamilos ou serem testemunhas de sevícias feitas as suas crianças. A primeira coisa que gostaria de chamar a atenção é o fato de que a presença das mulheres nas lutas contra a ditadura, nas organizações clandestinas e nas prisões ter sido considerada uma espécie de aberração. Nós mulheres, pela simples participação nessas lutas já estávamos fugindo do destino doméstico que a natureza nos reservou. Pelo simples fato de estarmos lutando já éramos consideradas “desnaturadas” ou traidoras da natureza, desobedientes aos papéis sociais aos quais deveríamos obedecer. Estar ali era de certa forma querer igualar-se a um macho, era simbolicamente querer subir de categoria antropológica e social metendo-nos num lugar que não poderia ser o nosso. Éramos simplesmente intrusas. Por isso, despertávamos uma raiva irracional quase incontida por parte de muitos homens. Quantas mulheres presas não ouviram de seus algozes: “Puta você está aqui porque quer” ou “Puta você saiu do fogão e agora paga”. Muitas de nós fomos penalizadas porque ocupamos lugares considerados impróprios às mulheres porque eram possessões masculinas garantidas pela natureza. Sem dúvida uma concepção patriarcal de natureza que ainda subsiste em muitos meios. Além disso, continuamos a ser objetos de prazer fácil mesmo nas situações trágicas de uma sessão de tortura. Quantas mulheres testemunharam a masturbação dos algozes diante de seus corpos nus! Quantas não se sentiram usadas pelas palavras e gestos obscenos que reduziam seus corpos a objetos de consumo imediato! Até nas prisões os corpos femininos continuaram a ser utilizados como objetos de prazer, uma forma de prazer que denuncia as zonas obscuras de algumas masculinidades perversas. Não é aqui o lugar de enumerarmos as muitas formas desses crimes, mas de refletir como e porque os corpos femininos tiveram um tratamento diferenciado visto que não foram apenas torturados para extrair deles confissões políticas ou como castigo por pertenceram a algum grupo político contra a ditadura dominante. Uma forma de perversão e de ódio se manifestou igualmente. Um ódio e uma atração quase ancestral em relação ao corpo feminino. Uma vontade de possuir e destruir para além dos motivos aparentes alegados. Chamo de ódio e atração ancestral a um comportamento cultural verificado por algumas estudiosas desse fenômeno de agressão do masculino contra o feminino nas situações as mais inusitadas. Para além da reconhecida simetria entre os seres humanos, há uma assimetria fundamental entre feminino e masculino que permite a agressão da genitalidade especialmente da vagina, o orifício visível condutor de vida. É a vagina que é penetrada tantas vezes, sangrada, ferida como se o agressor quisesse destruir algo que o incomoda, algo que tem a ver com a força vital feminina e com a própria história biológica masculina. Sem dúvida, a agressão não é pensada. Irrompe como um impulso animal agressor, defensor de si e capaz de destruir os fantasmas e mitos contidos na vagina. A agressão se dá como um impaciente desejo de ver a outra reduzida a pedaços, entregue, submissa, gemendo quase sem vida. Nesse sadismo assassino há como que a experiência da vitória não sobre a mentira ou a falta de liberdade, mas a vitória mórbida contra a raiva ancestral que parece enfim acalmada pelo derramamento de sangue fruto das mãos masculinas. São elas que as fazem sangrar e isto lhes provoca uma complexa mistura de poderes e sentimentos. A outra, a mulher violada frente ao violador deixa de ser um ser humano semelhante e diferente. Deixa de ser parecida com a mãe, a esposa ou a filha para tornar-se coisa, objeto a ser subjugado e contido à força. Nesse particular a arte cinematográfica trouxe às telas muitos filmes em que esse tipo de violência e suas conseqüências foram mostrados de forma contundente. Denunciar os crimes cometidos contra as mulheres nas prisões da ditadura é denunciar ao mesmo tempo uma cultura hierárquica da superioridade masculina que continua presente em nossa sociedade, na política e nas religiões. É denunciar não só o tráfico continuado de corpos, mas a demarcação da territorialidade do poder masculino através da posse das mulheres, sobretudo das jovens. Tal comportamento já foi inúmeras vezes denunciado, sobretudo, nos meios populares onde cada traficante quer ser o rei. Por essa razão denunciar essa cultura de dominação é começar sempre de novo a introduzir processos educativos para que a sexualidade humana não seja o campo de batalha onde uns parecem ser os ganhadores, pois se vingando de corpos sagrados pensam afirmar sua pretensa superioridade. O ódio ancestral é também uma construção cultural que pode ser desconstruída e lentamente substituída pelo respeito ao corpo alheio, à sua intimidade e verdade. Há muito caminho a andar para que nossa humanidade se torne húmus criador uns para os outros. Breve conclusão Tudo isso me leva a uma breve conclusão talvez dissonante em relação ao conjunto acima, talvez como expressão de uma voz em mim meio caótica e obscura, mas que quando a ouço me ajuda a avançar em meio as muitas pedras do caminho. Tenho um sentimento de que muita coisa do que fazemos para restaurar alguns fatos em nome do que chamamos verdade não leva de fato a que nos tornemos melhores ou mais misericordiosos uns com os outros. Às vezes tenho a impressão que corremos o risco de cumprir um formalismo ético ou uma vingança escondida sem avaliar as conseqüências reais do que estamos fazendo, sobretudo em relação aos processos educativos sociais que deveriam ser prioritários. O investimento nacional de uma “Comissão da Verdade” deveria conter não apenas a restauração de aspectos de nossa história passada, mas criar condições mais efetivas para que as diferentes instâncias sociais participem da atual construção nacional de forma mais respeitosa. Essa construção tem em vista o presente, ou seja, a preocupação real com as novas formas de violência em vigor hoje, formas de eliminação sumária de pessoas, conflitos de poderes desde os campos de futebol até os mendigos e homossexuais assassinados nas ruas das grandes cidades, desde os jogos violentos de computação que incitam o virtual a transformar-se em realidade até o tráfico de drogas e de seres humanos. O processo da “aletheia” ou de descobrimento e memória dos fatos só vale na medida em que servir para que o nosso hoje possa ser construído com mais dignidade e que a compaixão possa de fato fazer morada em nossos corações e em nossas políticas locais e nacionais. E isso como ingrediente fundamental que deve estar presente em todas as instâncias sociais e políticas, em todas as religiões e instituições educativas, em todos os hospitais e prisões desse país. Pensar a verdade é apenas um convite para vivê-la no cotidiano de nossas vidas, no enfrentamento conosco mesmas e no enfrentamento com as instituições que construímos e mantemos. Por isso a Comissão Nacional da Verdade mesmo terminando seu trabalho em 2014 deve continuar vivendo em nós como memória e imaginação de um futuro de dignidade para todas e todos nós que vivemos e construímos esse extraordinário país. Ivone Gebara Escritora, filósofa e teóloga feminista. Março 2013.