As forças progressistas, da Teologia da Libertação, incluindo teólogos/as, pastorais sociais, Cebs, agentes de pastoral, religiosos/as, leigos e leigas, se mobilizaram para participar da Conferencia de Aparecida (2007) - uma des suas ações foi a Tenda dos Mártires, como espaço aberto, celebrativo, por 15 dias, enquanto durou a Conferência. A Tenda dos Mártires foi um alerta à toda Igreja para não esquecer seus mártires, sua caminhada, sua identidade de libertação.
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terça-feira, 9 de abril de 2013
Verdade: uma tentativa de compreensão
Esclarecimento: Esta conferência a pedido da Comissão Nacional da Verdade foi preparada no intuito de provocar uma reflexão e um debate em torno da questão da verdade. Entretanto, no dia da apresentação na Assembléia Legislativa de São Paulo, 25 de março de 2013, ela pareceu-me inadequada diante da emoção provocada pela memória dos sofrimentos de tantas mulheres vítimas da ditadura militar brasileira. Apesar dos limites, meu texto é oferecido a todas elas, especialmente a Inês Etienne Romeu, que através de sua vida cheia de coerência, sofrimentos, pequenas vitórias e alegrias testemunha que vale a pena lutar pela dignidade humana.
Ivone Gebara
Breve Introdução
O que queremos dizer quando buscamos a verdade ou quando criamos uma Comissão Nacional da Verdade? Num primeiro momento podemos dizer que se estamos buscando a verdade é porque vivemos uma injustiça, um erro, um equivoco, uma mentira, uma situação dúbia, um engodo, uma falta de clareza que nos impedem de viver com dignidade e no respeito à nossa história. Nessa linha temos que perguntar quem é esse “nós” que vive nessa situação precisa? Há um nós pessoal, um nós grupal e um nós nacional mais amplo. Para cada caso é preciso enfrentar essa busca através de caminhos semelhantes e diferentes sendo que nenhum deles é isento das contradições e das motivações individualistas ou parciais que nos caracterizam. Quando se trata de um “nós” nacional parece que se quer corrigir uma história escrita e contada, se quer fazer aparecer o que não está presente na oficialidade contada em um tempo determinado, se quer lembrar o que permaneceu esquecido, embora vivo na memória e nos corpos de muitas e de muitos. E, nesse processo, queremos restaurar algo que chamamos verdade. Mas que verdade é esta? O que é essa verdade? A quem pertence? Haveria uma verdade para além dos fatos relatados, para além de nossas relações cotidianas sempre interpretadas segundo nossos critérios e as percepções de nossos corpos? Haveria algo que nos seria possível captar para além das muitas interpretações dos fatos e acontecimentos de nosso dia a dia? Haveria algo para além da história relatada nos jornais, divulgada pelos poderes estabelecidos, presente nos arquivos de muitas fontes ou narrada apenas por alguns? Haveria um valor talvez intrínseco aos acontecimentos que necessitasse aparecer e que pudesse ser chamado de “a verdade”? As perguntas se multiplicam, mas as respostas convincentes são escassas. Entretanto, o que fala mais alto é o sentimento de muitas/os de que há retificações, há novas informações que precisam ser dadas para sairmos de algumas das armadilhas nas quais nossa história coletiva dos tempos da ditadura militar no Brasil caiu. E, nessa história quero enfatizar de maneira particular algo da história das mulheres heroínas da liberdade e vítimas do obscurantismo do regime.
A reflexão que proponho tenta de certa forma desatar alguns nós que a questão da verdade nos faz encontrar. O surpreendente é que ao tentar desatar um deles percebemos que seu interior é constituído por outros tantos nós menores de tal forma que acabamos nos convencendo que esse processo é sem fim. Entretanto, empreender tal caminho enche-nos de entusiasmo e de desejos de descobrir mais alguns fios ocultos do tecido humano que nos constitui, muito embora sempre deparemos com a maior complexidade da vida e de nossa história comum. Apesar delas, vale à pena adentrar um pouco mais nos múltiplos meandros daquilo que chamamos “verdade” para aprender algo mais de nossa própria humanidade. Nesse aprendizado conhecer algo da constituição etimológica de algumas palavras que usamos correntemente é uma vereda que poderá nos ajudar a entender a história do que buscamos. Nesse sentido podemos dizer que a “verdade” tem história, e uma história sem fim na própria história da humanidade.
1. Buscando compreender a palavra “verdade”
A palavra verdade vem do grego alethea que significa desvelamento, desocultamento. Mas, o que é desocultado ou desvelado? A palavra LETE constitutiva da palavra alethea = verdade, tem a ver com a mitologia grega. Lete é um dos rios do Hades e conta-se que aqueles que bebessem de suas águas ou mesmo as tocassem experimentariam o completo esquecimento de seus atos. O fato é que todos nós em porções maiores ou menores bebemos das águas de Lete e por isso mesmo Lete corre em nossas veias e é constitutivo de nosso corpo e de nossas ações. Encobrir, esquecer é próprio dos seres humanos. Entretanto, o esquecimento total nos aniquila como seres humanos e não nos permite sermos íntegros uns com os outros. Por isso apesar de sermos Lete somos mais do que isso, visto que o esquecimento ou o ocultamento dos nossos atos tem conseqüências sociais imensas. Algumas tradições míticas falam também de outro rio, o Mnemósine cujas águas frias eram propícias à memória. Beber delas fazia recordar coisas esquecidas e podia-se até alcançar a onisciência. Por isso podemos dizer que em todos os acontecimentos somos memória e esquecimento, somos Lete e Mnemósine. É nesse sentido que aletheia é a suspensão do esquecimento, é a lembrança daquilo que foi esquecido, é a reconstituição e recuperação dos pedaços de nossa história deixados de lado.
Nesse sentido, creio que uma Comissão da Verdade tem que beber da Mnemósine coletiva, ou seja, da memória coletiva para finalmente tocar algo mais do mundo de alethea sempre em movimento, sempre sendo de novo interpretada, redescoberta por outras e outros, contada sempre de novo, pois ninguém é dono da totalidade de nossa história.
Para além das muitas interpretações filosóficas sobre o que seria verdade, das múltiplas explicações subjetivas que damos a ela e das emoções que nos envolvem dependendo do que estamos vivendo, há alguns pontos que a meu ver permitem observar aspectos que poderiam ser chamados “objetivos”. Tomo a palavra “objetivo” num sentido bastante factual e pragmático sabendo das contradições que envolvem esse termo. Por exemplo, se houve um acidente de carro na rua e um morto exposto no chão. Antes de saber como foi o acidente, de quem é a culpa, se ele morreu por escolha ou por outra causa, vejo-me diante de um fato: há um morto na rua, vítima de um acidente. Este acontecimento não pode ser simplesmente negado e não é sem conseqüências para a sociedade. Para além das interpretações que podem envolver essa morte há um “objeto”, o cadáver que os passantes podem ver ou o cadáver exposto num salão funerário ou o cadáver do qual constatamos a existência, mas que desapareceu de nossos olhos. As testemunhas são as responsáveis primeiras para informar sobre o acontecimento e delinear assim sua interpretação.
Para além de todas as interpretações econômicas, políticas e sociais da fome na Biafra ou em outro lugar do mundo há um fato observável e inegável: Pessoas morrem de fome! Trata-se de poder sentir com nosso corpo, ver com nossos olhos e ouvir com nossos ouvidos a destruição terrível de seres humanos que morrem por falta de alimento. Mais uma vez as testemunhas falam disso e a elas nos fiamos quando somos convidadas a fazer algo. Há o fato envolto em meio às muitas interpretações.
A proximidade do morto, do faminto, do humilhado através de nossos laços afetivos permite que sintamos essa “verdade da morte” ou a “verdade da fome” ou a “verdade da violência contra as mulheres” de forma mais envolvente e de certa forma mais aguda do que em outras situações. E, a partir desse envolvimento emocional as nossas razões de buscar a verdade se encontram de certa forma diante da impossível neutralidade diante dos fatos. Por essas razões, para além das muitas razões emocionais ou justificações racionais que damos a alguns atos violentos, sobretudo no momento em que são realizados temos que admitir certo caráter objetivo do mal para que a própria vida em sociedade seja viável. Este caráter significa que houve de alguma maneira diminuição da qualidade de vida, uma produção de sofrimento atroz, uma violência desmesurada de uns contra outros e isto pode ser constatável para além da atribuição das responsabilidades. É isso que chamo de caráter objetivo. Esse caráter objetivo é de certa forma anterior a qualquer julgamento ou qualquer juízo de valor ou qualquer merecimento ou responsabilidade pessoal visto que é uma exigência de convivência humana. Somos seres interiores e exteriores ao mesmo tempo. E, essa realidade me permite proclamar também certo caráter objetivo da verdade, embora inscrito nas mil e uma interpretações e justificações subjetivas. Este claro-escuro de nosso “estar no mundo” é manifestado na própria etimologia grega da palavra verdade e na diversidade de suas expressões nos vários campos da atividade humana.
A partir dessa perspectiva gostaria de abrir nossa reflexão para o campo das relações entre verdade, cultura e religião visto que essa teve um papel fundamental não só no estabelecimento da ditadura como na luta contra ela. E, além disso, creio ser muito importante compreender como a religião contribuiu para o desenvolvimento de uma cultura da submissão e da naturalização de muitos comportamentos de maneira particular em relação às mulheres.
2. Verdade, Cultura e Religião
Quando fazemos a relação entre verdade e religião as coisas se complicam dada a complexidade do fenômeno religioso. A religião, sobretudo a do Livro Sagrado, se pretende fundada em verdades de forma que os membros de uma ou outra instituição religiosa têm a convicção de que orientam suas vidas pela verdade ou ao menos por uma verdade. É como se afirmassem a existência de uma verdade pré-factual, para além dos acontecimentos embora, mostrando-se nos acontecimentos, uma verdade pré-existente e ao mesmo tempo revelada aos fiéis. Não posso entrar no caráter da verdade religiosa nesse espaço apesar de sua grande importância. Fico no tema das influencias que alguns conteúdos religiosos tiveram na história e política do período da ditadura militar seguindo as investigações da Comissão Nacional da Verdade.
Dada a cultura religiosa brasileira de corte majoritariamente cristão muitas vezes cometemos o equivoco de pensar o período da ditadura militar apenas a partir da cumplicidade das autoridades religiosas. De fato não podemos negar certa cumplicidade, sobretudo quando desde o governo de João Goulart as igrejas cristãs temiam o avanço do que chamavam comunismo. Tinham medo, sobretudo, que o comunismo ateu pudesse até banir as igrejas cristãs da vida do país. O cristianismo como parte constitutiva da cultura nacional tinha que ser preservado e mantido nas suas diferentes expressões históricas e na sua representação das forças sociais. Entende-se o medo de muitos e inclusive o espanto quando, por exemplo, operárias e empregadas domésticas católicas foram presas e acusadas de comunismo por pertencerem a JOC (Juventude Católica Operária). Elas, que também eram contra o comunismo foram ser acusadas de comunistas. As razões de sua prisão não eram claras e isso era parte do terrorismo do Estado ditatorial e da incompetência de seus funcionários.
O que me parece importante lembrar é que muitos dos torturadores, dos delegados, dos militares em todos os escalões declaravam-se cristãos. E seu cristianismo tinha uma espécie de característica de cruzada ou de combate pela fé contra seus inimigos reais ou imaginários. Veja-se, por exemplo, a importância dos santos guerreiros na cultura popular brasileira como São Jorge e Santo Expedito. É nesse sentido que para muitos, os militares foram bem-vindos como defensores da fé cristã ou como um caminho importante para se combater o novo deicídio tramado pelas esquerdas do país com apoio de governos estrangeiros declaradamente ateus. Por isso, alguns consideraram as ditaduras militares como movimentos de restauração da cultura cristã ameaçada pelos novos infiéis do século XX. Nessa época não só a propriedade privada estava ameaçada, mas também os valores cristãos, a crença em um Deus criador e todo poderoso e especialmente a família. Isto explica em parte o sucesso da Cruzada do Rosário, fundada pelo padre irlandês radicado nos Estados Unidos – Patrick Peyton. Os que encabeçavam as manifestações de rua não eram apenas membros do clero católico, mas, sobretudo senhoras de classe média do Rio de Janeiro que bravamente empunhavam seu rosário e rezavam Ave - Maria enquanto João Goulart e Leonel Brizola discursavam. Queriam mostrar que o rosário da virgem era capaz de salvar a pátria das ameaças comunistas. Queriam mais uma vez mostra a importância do “Brasil para Cristo” lema tantas vezes repetido por diferentes movimentos religiosos.
Essa cultura cristã católica é em certo sentido mais do que o nome de um arcebispo ou de um cardeal ou mesmo de um padre ou pastor muito embora não se possa diminuir a responsabilidade deles. Entretanto, quero sublinhar que a responsabilidade pelos crimes da ditadura é maior e mais ampla do que se pensa, especialmente no que se refere a nossa formação cultural cristã. Houve sem dúvida uma cultura da ordem e da obediência desenvolvida por um tipo de cristianismo católico romano e protestante que não apenas formou as elites capitalistas do país de forma a manter privilégios e hierarquias. Formou também o povão para igualmente manter as hierarquias e fazer respeitar a ordem estabelecida muitas vezes identificada à vontade divina. Isto explica por que funcionários do governo, militares, diretores e diretoras de escolas públicas, vigias e guardas privados foram obedientes às ordens e em alguns casos chegaram a denunciar “o mal” que descobriam nos colegas. Caso contrário não apenas perderiam seus cargos ou seu emprego, mas seriam considerados inimigos do regime e desobedientes às leis da Igreja. Estas afirmações me fazem lembrar um jovem torturador ao qual fui exposta quando minha amiga Carmen fora presa em 1970. No dia da prisão eu estava com ela e fomos do colégio estadual Giacomo Stávale na Freguesia do Ó, à sua casa com a polícia militar nos acompanhando. Um dos policiais, jovem ainda, que foi também seu torturador vasculhou na minha presença seu quarto. Encontrou em uma das gavetas um crucifixo. Pegou-o com reverência e olhando para ele disse: “faço tudo por ele. É ele que me dá forças”. Para mim esse é um pequeno exemplo de que o espírito religioso é complexo e pode ter varias posturas segundo as convicções ideológicas de cada um. Não combate necessariamente a tortura infligida aos outros pelo simples fato de que este é um ato ilícito. Mas quando esse ato vem justificado como defesa da pátria, da família e de Deus muita coisa é permitida. Por isso não só os freqüentadores assíduos das igrejas são religiosos, mas há uma cultura religiosa da ordem e da submissão que impregna ainda hoje nossa cultura nacional. Esta é de certa forma responsável pela produção da violência simbólica e cultural que convive conosco.
O presidente Pinochet do Chile era católico romano declarado. Nunca deixou de comparecer as missas privadas que eram celebradas em sua residência e foi valorizado por muitos fiéis e eclesiásticos por sua fé e, sobretudo quando declarou a Virgem Maria patrona do exército chileno. O símbolo feminino máximo do catolicismo romano tornara-se de certa forma cúmplice das ações do exército chileno na sua luta anticomunista. A Virgem Maria podia estar nos altares e ser venerada e exaltada. Mas as mulheres de carne e osso, estas continuavam submissas, violadas e aprisionadas. A distância entre o simbolismo religioso cultural e a vida cotidiana das mulheres é enorme.
A cultura da obediência às hierarquias, o respeito às autoridades civis, militares e religiosas criou em nós também uma cultura de subserviência muitas vezes apenas formal, mas bastante forte, sobretudo por ocasião dos regimes ditatoriais. A delação e a culpabilização do chamado infrator ou infratora sem a verificação das causas de sua infração fizeram parte dessa cultura autoritária na qual ainda vivemos em parte. A autoridade quase sempre tem razão. Além disso, o apelo ao demônio e suas garras assim como a necessidade de estar sempre vigilantes foi uma constante na educação cristã.
Mais uma vez, sem negar a necessidade de apontar os responsáveis mais diretos pelos crimes da ditadura e das muitas formas de autoritarismo social e cultural é preciso reconhecer os limites de nossa responsabilidade individual em muitas situações. Lembro-me do livro “Ressurreição” de Léon Tolstoi em que o personagem principal, o príncipe Niekhliudof observa prisioneiros/as levados aos trabalhos forçados na Sibéria em pleno verão russo. As condições físicas e psíquicas das centenas de presos, muitos dos quais sem clareza sobre seus pretensos crimes, eram bastante precárias. Alguns morreram pelo caminho antes de chegar ao seu destino. As condições de transporte eram incomodas e precárias faltando até água para saciar a sede dos prisioneiros. Niekhliudof se pergunta então sobre os responsáveis pelos assassinatos visto que ele mesmo conclui que essas pessoas mantidas nessas condições estavam sendo literalmente assassinadas. Quem as está assassinando? Teria sido o responsável por assinar a sentença condenatória, teriam sido os policiais da prisão, a guarda responsável pelo traslado, os funcionários do trem, o imperador... Mas todos individualmente pareciam ser pessoas boas, dóceis, cordiais, bons chefes de família. Nenhum deles poderia ser acusado pelo crime e nenhum assumia que era também um criminoso. No entanto os mortos e os moribundos estavam ali. Quem os matou e quem os estava matando? De fato podemos dizer que os governos são os responsáveis, mas não só. A cultura hierárquica da obediência, a valorização dos que têm poder econômico, político e religioso, a crença numa divindade toda poderosa são também formadores desta cultura de violência e privilégios. São capazes de gerar regimes que torturam: homens que torturam homens, homens que violam mulheres, mulheres que enganam homens, acusações vazias, crenças vazias e violência plena. Essa dimensão coletiva da construção social e cultural na linha da espiral da violência com todas as conseqüências criminosas não pode ser esquecida.
Vivemos numa sociedade onde apesar das responsabilidades mais diretas, todos nós, somos igualmente responsáveis na medida em que apenas cumprimos ordens sem nos interessarmos pela vida daquelas e daqueles a quem estas ordens estão dirigidas. A máquina administrativa privada, pública e religiosa quer apenas funcionar bem e guardar privilégios. Por isso qualquer compaixão, quaisquer atos de misericórdia precisam ser esquecidos ou simplesmente eliminados das leis que regem as instâncias punitivas da sociedade.
O Cristianismo como instituição religiosa oficial na sua pluralidade social e política quase sempre esteve do lado dos reis, príncipes, imperadores, ditadores. Permaneceu do lado da chamada ordem social vigente sendo assim legitimadores dessa ordem através das crenças religiosas e do “poder espiritual” que detinham. Entretanto, também houve os párias cristãos, aquelas e aqueles que intuíram algo diferente na experiência do Movimento de Jesus. Intuíram que os grandes poderes se equivalem e que são capazes de tirar a vida, sobretudo dos pequenos. Por isso seu deus não está nas alturas, mas na carne múltipla da terra e no corpo da humanidade. Por essa fé e essa aposta na vida reinterpretaram a tradição do Movimento de Jesus reinventando-o segundo o sentido que encontravam na sua vida e na história. Propuseram-se a fermentar a massa, a curar corações feridos, a ajudar os prisioneiros a desatar suas correntes. E seguem até hoje no anonimato da grande história. Esse/as párias também atuaram de forma anônima nos tempos da ditadura. Lembro-me de Ir Catarina (da Congregação de S. Vicente de Paulo) que trabalhava como enfermeira no Hospital Militar do Recife. Através de sua maneira de ser conseguia descobrir os nomes dos presos hospitalizados e até mandar mensagens de suas famílias para alguns.
3. Verdade e Política
Idealmente podemos falar da importância do bem comum e entendê-lo como cuidado dos cidadãos e cidadãs na manutenção de relações justas e igualitárias. Esse ideal é também o objetivo da política, ou seja, a arte de organizar a convivência comum nos diferentes setores da vida humana garantindo aos cidadãos e cidadãs o direito a uma vida digna. Entretanto, quando saímos desse ideal de reconhecida importância, dessa espécie de horizonte que nos ajuda a caminhar na história, deparamos com a realidade cotidiana das relações humanas e com a dificuldade de explicá-las e entendê-las. Deparamos com a transgressão das leis, a mentira nas relações sociais mais amplas, a competição entre poderes fruto da busca de benefícios pessoais e do conhecido egoísmo humano. Essa é uma história bem conhecida muito embora cada vez que a constatamos no nosso hoje nos surpreenda como se fosse uma grande novidade.
Em grandes rasgos quero retomá-la em relação à responsabilidade política coletiva que temos, sobretudo nesse momento de restauração da verdade dos sofrimentos e esperanças de tantas pessoas vítimas da insanidade da ditadura militar.
Creio que há uma ilusão em pensarmos que se pode chegar à verdade como se chega ao final de uma rua. O mesmo acontece quando se fala da justiça e do amor. É fácil ouvir as pessoas dizerem “queremos a verdade dos fatos”, “queremos que a verdade apareça” ou “queremos justiça” ou “a solução é amar”, sobretudo quando o leite já foi derramado. Mas o que buscamos a partir desses desejos genéricos?
Suspeito que cada grupo tem a sua versão da verdade e que embora para alguns ela seja uma mentira, ela não deixa de ser objeto de lutas e litígios para a manutenção dessa mentira. O conflito entre as muitas versões da verdade política têm a ver com o caráter ideológico partidário que se move entre os interesses das elites donas do poder, da classe média querendo usufruir dos benefícios e da grande maioria em situação de pobreza querendo aceder aos benefícios que a sociedade poderia lhes oferecer. Não há inocentes muito embora se possa falar de diferença de responsabilidades. Entretanto esse esquema parece ser cada vez mais simplista quando nos enfrentamos aos sujeitos atuantes em nossa história e mais especialmente quando se trata de crimes políticos. A justificativa dada pelo poder estabelecido em relação aos crimes políticos tem quase sempre a ver com o caminho necessário para a defesa do povo, a defesa dos princípios morais de uma nação, a necessidade de manutenção da ordem contra intervenções estrangeiras ou contra aventureiros que querem se apossar do poder do país. E esta justificativa tende a revestir-se de um caráter pretensamente ético em vista do bem da maioria como se o bem de uma elite significasse o bem de toda a população. Entretanto, infelizmente a grande maioria das pessoas entra nos jogos do poder, pois se extasiam diante daquilo que ele pode oferecer. Acolhe a versão da oficialidade quase como uma crença misturada com o medo e o desejo de auto-conservação da vida. E, se possível até desenvolvem o anseio de aceder a uma situação de vida como aquela que os bem nascidos ou os bem sucedidos usufruem. Podem, entretanto duvidar no seu foro íntimo da retidão das políticas das elites, mas o enfrentamento real do povão é muitas vezes coibido pelo medo à repressão ou pelo medo de perder os poucos privilégios que têm e em parte pelo desejo íntimo de ser favorecido por algum benefício concedido pelos poderosos. Isso explica como certos conhecimentos de pessoas influentes e até a propina funcionou e funciona para abrandar certos julgamentos de crimes contra a nação. A verdade do jogo de poderes, sobretudo econômicos, não consegue ser totalmente desvendada, não aparece à luz do dia como um jogo de forças desiguais e interesses opostos. Alguns possuem os poderes de repressão e outros de saquear, roubar, matar a luz do dia de diferentes formas. A cumplicidade entre esses poderes e funções é cada vez maior. Basta lembrar-se dos altos salários que recebem deputados, juízes e outros funcionários dos governos. Por isso podem se permitir reservar parte de seus benefícios à instituição da propina e à corrupção daqueles dos quais necessitam para manter seu segredo de enriquecimento ilícito vestido de árduo trabalho em favor da população. E nem falo dos crimes das empresas de serviço público e de suas políticas tecnológicas que acabam impedindo a continuação de uma reivindicação justa e vencendo as pessoas pelo cansaço. A morosidade no atendimento, as longas esperas, as distâncias a percorrer inviabilizam cada vez mais o acesso dos menos favorecidos aos bens e direitos disponíveis. A burocratização das relações e dos serviços é uma nova ditadura que impede a vivência do direito e da liberdade. Este é o poder dos que se mantém no poder com seus múltiplos privilégios e benefícios.
Por outro lado aparecem os criminosos/as políticos. Quem são eles e elas? A história dos povos nos ensina que foram tecidos de várias classes sociais e de várias formações culturais e religiosas movidos pelo ideal de mudar as regras do jogo de privilégios. Dele participaram pessoas as mais diferentes com desejos políticos diferentes, com paixões conflituosas, mas que num momento histórico preciso uniram forças para lutar contra quem julgavam ser o inimigo maior do povo. Eram tomados pela chama da liberdade e ela embora os motivasse e impulsionasse não os impedia de viver em contradições individuais flagrantes. Basta ver o tratamento sexista que movimentos de esquerda da década de 1960 e 1970 davam às mulheres e as publicações posteriores sobre esse período. Havia uma imagem dos revolucionários que povoava a esquerda latino-americana e brasileira. Eram os jovens barbudos parecidos com Che Guevara que habitavam os sonhos revolucionários inclusive das mulheres. Sobre o período da ditadura se falava do movimento estudantil, sobre os presos políticos e as lutas do povo no masculino como se quisesse ainda uma vez invisibilizar a ação e a vida de tantas mulheres. O resgate dessa memória feminina revolucionária é uma conquista de nosso século.
Mas, a grande questão é que estas pessoas, homens e mulheres, eram consideradas criminosas políticas porque se organizavam de diferentes maneiras para defender os interesses populares muito embora não tivessem diretamente o apoio das massas populares. Despertavam ódio dos donos do poder e no tempo da ditadura militar no Brasil foram perseguidas, presas, torturadas e mortas como inimigas do bem da pátria. Os criminosos/as políticos foram idealistas convencidos da possibilidade de instaurar relações justas entre as pessoas e os povos. E seus ideais também os levaram a excessos que lhes permitiram usar as mesmas armas dos que oprimiam o povo. Mediram forças e sucumbiram na tomada do poder. Entretanto, foram vitoriosos na história da inspiração dos grandes humanismos que caracterizam a história humana.
Os poderes estabelecidos criam as situações de intolerância e são intolerantes com os que os criticam como formas de manter seu poder. A contaminação desses vícios de poder é tremenda, de forma que a corrupção pequena ou grande passa a ser uma moeda de troca para se viver mais ou menos bem na sociedade. Hoje, apesar de alguns avanços, ainda é assim. Inventamos formas mais sutis, porém mais eficazes de dominação e adormecimento das consciências. E é ainda nesse meio que outros modelos de “criminosos /as políticos” nos vários setores da sociedade continuam levantando suas vozes para proclamar o amor da humanidade pela humanidade apesar dos crimes, traições e assassinatos do passado e do presente. Nós mulheres tivemos e temos um papel de grande importância nessa “criminalidade política” e luta contra os sistemas de naturalização dos comportamentos. Essa criminalidade é sem dúvida às avessas porque na realidade é uma luta por nossa dignidade que se manifesta de diferentes maneiras e especialmente a partir de uma nova maneira de compreender as relações entre os seres humanos. Sem dúvida falar de criminalidade pode induzir a equívocos. Entretanto ao menos provisoriamente quero manter a expressão equivocada para indicar essa mistura de razões e irracionalidades de nossa história e do necessário discernimento diante dela.
4. Verdade e Gênero
Tentar falar das relações entre verdade e gênero no final dessa reflexão é intencional visto que gostaria de chamar a nossa atenção para um problema que passa quase sempre despercebido pela maioria das pessoas. É que a verdade histórica quer na sua relação com as coisas simples da vida cotidiana, quer na religião, na política e nos cárceres é marcada pelas relações de poder entre mulheres e homens. Relações de gênero são relações de poder que atravessam o conjunto de nossa história em diferentes direções e intensidades. Essas relações são expressas através de comportamentos, valores e práticas culturais que de certa forma foram naturalizadas. Em outros termos foram interpretadas como sendo próprias da natureza feminina ou da natureza masculina e, por isso mesmo, consideradas quase imutáveis. Por exemplo, se fala das necessidades sexuais dos homens como algo evidente enquanto as necessidades sexuais das mulheres como algo secundário. De forma que se vai permitir aos homens uma prática sexual que mesmo sendo desrespeitosa poderá ser justificada pela necessidade que a natureza lhes impôs. O mesmo em relação ao exercício do poder político, antes considerado como prerrogativa da natureza masculina. Essa concepção naturalista tenta a desculpar os homens de eventuais deslizes e culpabilizar as mulheres por comportamentos semelhantes.
No processo de dês-velamento próprio da realidade factual que é o mesmo processo da manifestação pública do que chamamos “verdade” no ser humano, há um nó que em geral foi esquecido pelos principais analistas das ditaduras militares da América latina.
Trata-se da questão de gênero nos processos repressivos e nos processos de restauração da verdade. Falar da questão de gênero nos processos repressivos é indicar a presença de uma relação particular entre mulheres vítimas e homens torturadores ou inquisidores. Poderia ser o contrário também, mas creio que isto aconteceu bem pouco nos calabouços da ditadura brasileira. O mais comum foi as mulheres sofrerem sevícias sexuais especialmente nas áreas mais sensíveis de sua genitalidade, nos seus seios e mamilos ou serem testemunhas de sevícias feitas as suas crianças.
A primeira coisa que gostaria de chamar a atenção é o fato de que a presença das mulheres nas lutas contra a ditadura, nas organizações clandestinas e nas prisões ter sido considerada uma espécie de aberração. Nós mulheres, pela simples participação nessas lutas já estávamos fugindo do destino doméstico que a natureza nos reservou. Pelo simples fato de estarmos lutando já éramos consideradas “desnaturadas” ou traidoras da natureza, desobedientes aos papéis sociais aos quais deveríamos obedecer. Estar ali era de certa forma querer igualar-se a um macho, era simbolicamente querer subir de categoria antropológica e social metendo-nos num lugar que não poderia ser o nosso. Éramos simplesmente intrusas. Por isso, despertávamos uma raiva irracional quase incontida por parte de muitos homens. Quantas mulheres presas não ouviram de seus algozes: “Puta você está aqui porque quer” ou “Puta você saiu do fogão e agora paga”. Muitas de nós fomos penalizadas porque ocupamos lugares considerados impróprios às mulheres porque eram possessões masculinas garantidas pela natureza. Sem dúvida uma concepção patriarcal de natureza que ainda subsiste em muitos meios.
Além disso, continuamos a ser objetos de prazer fácil mesmo nas situações trágicas de uma sessão de tortura. Quantas mulheres testemunharam a masturbação dos algozes diante de seus corpos nus! Quantas não se sentiram usadas pelas palavras e gestos obscenos que reduziam seus corpos a objetos de consumo imediato! Até nas prisões os corpos femininos continuaram a ser utilizados como objetos de prazer, uma forma de prazer que denuncia as zonas obscuras de algumas masculinidades perversas.
Não é aqui o lugar de enumerarmos as muitas formas desses crimes, mas de refletir como e porque os corpos femininos tiveram um tratamento diferenciado visto que não foram apenas torturados para extrair deles confissões políticas ou como castigo por pertenceram a algum grupo político contra a ditadura dominante. Uma forma de perversão e de ódio se manifestou igualmente. Um ódio e uma atração quase ancestral em relação ao corpo feminino. Uma vontade de possuir e destruir para além dos motivos aparentes alegados.
Chamo de ódio e atração ancestral a um comportamento cultural verificado por algumas estudiosas desse fenômeno de agressão do masculino contra o feminino nas situações as mais inusitadas. Para além da reconhecida simetria entre os seres humanos, há uma assimetria fundamental entre feminino e masculino que permite a agressão da genitalidade especialmente da vagina, o orifício visível condutor de vida. É a vagina que é penetrada tantas vezes, sangrada, ferida como se o agressor quisesse destruir algo que o incomoda, algo que tem a ver com a força vital feminina e com a própria história biológica masculina.
Sem dúvida, a agressão não é pensada. Irrompe como um impulso animal agressor, defensor de si e capaz de destruir os fantasmas e mitos contidos na vagina. A agressão se dá como um impaciente desejo de ver a outra reduzida a pedaços, entregue, submissa, gemendo quase sem vida. Nesse sadismo assassino há como que a experiência da vitória não sobre a mentira ou a falta de liberdade, mas a vitória mórbida contra a raiva ancestral que parece enfim acalmada pelo derramamento de sangue fruto das mãos masculinas. São elas que as fazem sangrar e isto lhes provoca uma complexa mistura de poderes e sentimentos.
A outra, a mulher violada frente ao violador deixa de ser um ser humano semelhante e diferente. Deixa de ser parecida com a mãe, a esposa ou a filha para tornar-se coisa, objeto a ser subjugado e contido à força. Nesse particular a arte cinematográfica trouxe às telas muitos filmes em que esse tipo de violência e suas conseqüências foram mostrados de forma contundente.
Denunciar os crimes cometidos contra as mulheres nas prisões da ditadura é denunciar ao mesmo tempo uma cultura hierárquica da superioridade masculina que continua presente em nossa sociedade, na política e nas religiões. É denunciar não só o tráfico continuado de corpos, mas a demarcação da territorialidade do poder masculino através da posse das mulheres, sobretudo das jovens. Tal comportamento já foi inúmeras vezes denunciado, sobretudo, nos meios populares onde cada traficante quer ser o rei. Por essa razão denunciar essa cultura de dominação é começar sempre de novo a introduzir processos educativos para que a sexualidade humana não seja o campo de batalha onde uns parecem ser os ganhadores, pois se vingando de corpos sagrados pensam afirmar sua pretensa superioridade. O ódio ancestral é também uma construção cultural que pode ser desconstruída e lentamente substituída pelo respeito ao corpo alheio, à sua intimidade e verdade. Há muito caminho a andar para que nossa humanidade se torne húmus criador uns para os outros.
Breve conclusão
Tudo isso me leva a uma breve conclusão talvez dissonante em relação ao conjunto acima, talvez como expressão de uma voz em mim meio caótica e obscura, mas que quando a ouço me ajuda a avançar em meio as muitas pedras do caminho.
Tenho um sentimento de que muita coisa do que fazemos para restaurar alguns fatos em nome do que chamamos verdade não leva de fato a que nos tornemos melhores ou mais misericordiosos uns com os outros. Às vezes tenho a impressão que corremos o risco de cumprir um formalismo ético ou uma vingança escondida sem avaliar as conseqüências reais do que estamos fazendo, sobretudo em relação aos processos educativos sociais que deveriam ser prioritários.
O investimento nacional de uma “Comissão da Verdade” deveria conter não apenas a restauração de aspectos de nossa história passada, mas criar condições mais efetivas para que as diferentes instâncias sociais participem da atual construção nacional de forma mais respeitosa. Essa construção tem em vista o presente, ou seja, a preocupação real com as novas formas de violência em vigor hoje, formas de eliminação sumária de pessoas, conflitos de poderes desde os campos de futebol até os mendigos e homossexuais assassinados nas ruas das grandes cidades, desde os jogos violentos de computação que incitam o virtual a transformar-se em realidade até o tráfico de drogas e de seres humanos. O processo da “aletheia” ou de descobrimento e memória dos fatos só vale na medida em que servir para que o nosso hoje possa ser construído com mais dignidade e que a compaixão possa de fato fazer morada em nossos corações e em nossas políticas locais e nacionais. E isso como ingrediente fundamental que deve estar presente em todas as instâncias sociais e políticas, em todas as religiões e instituições educativas, em todos os hospitais e prisões desse país.
Pensar a verdade é apenas um convite para vivê-la no cotidiano de nossas vidas, no enfrentamento conosco mesmas e no enfrentamento com as instituições que construímos e mantemos. Por isso a Comissão Nacional da Verdade mesmo terminando seu trabalho em 2014 deve continuar vivendo em nós como memória e imaginação de um futuro de dignidade para todas e todos nós que vivemos e construímos esse extraordinário país.
Ivone Gebara
Escritora, filósofa e teóloga feminista.
Março 2013.
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