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terça-feira, 26 de abril de 2011

Os problemas de governo da Igreja

. Artigo inédito de José Comblin



“Ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exercício do primado que,sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova”

Joao Paulo II, Ut unum sint,1995, n.95

Na encíclica Ut unum sint o Papa João Paulo II aludiu a um problema fundamental mostrando que estava bem consciente.

Já Paulo VI havia manifestado que estava preocupado.

Mas nada saiu dessas preocupações que hoje em dia são preocupações da Igreja inteira.

O governo central da Igreja não funciona bem. Em lugar de adaptar a Igreja ao mundo atual, paralisa a Igreja no seu passado. Muitas coisas deviam ser reformadas na Igreja para responder às necessidades dos tempos. Mas a máquina de governo impede toda mudança.


O sistema impede a mudança. Ninguém tem poder para tomar decisões. O Papa não tem condições para tomar as decisões necessárias. Eis algumas expressões dessa situação do governo.

1. A eleição do Papa

Primeiro os eleitores. O sistema atual foi feito quando o Papa fazia poucas intervenções fora da diocese de Roma e das dioceses vizinhas. Os cardeais eram o clero de Roma e das cidades vizinhas. Hoje em dia, o Papa decide tudo o que acontece no mundo inteiro e tem uma grande administração com milhares de funcionários. O Papa devia ser eleito por uma representação de todos os continentes. Os cardeais nem sequer representam as Igrejas dos seus países porque foram escolhidos pelo próprio Papa e não representam nenhuma Igreja particular.

Se o Papa fosse eleito por uma verdadeira representação da Igreja universal, teria mais força onde se apoiar contra o poder da Cúria. Agora ele depende da Cúria. Eleito pela Igreja poderia invocar o peso da Igreja contra o peso da administração central. Os presidentes das conferencias episcopais, por exemplo, teriam mais caráter de representatividade. Além disso, muitos cardeais são funcionários da Cúria e não representam nenhuma Igreja porque são funcionários da administração.

Em segundo lugar, o modo da eleição. Há dois tipos de eleitores. Há os cardeais da Cúria. Estes se conhecem e formam círculos secretos. Esses são os que intrigam para preparar a eleição. Formam partidos e trabalham na sombra para que o seu partido possa ganhar. O que aconteceu nas últimas eleições , é edificante Depois, há os cardeais de fora. Esses não se conhecem, Chegam para o conclave e não se conhecem. Não sabem quais são as intrigas que estão fazendo os cardeais da Cúria (com os seus conselheiros!). Em cada país a Conferência episcopal exorta os católicos para conhecer bem os candidatos e os seus programas de tal maneira que possam fazer um voto consciente. Mas os cardeais não têm condições de fazer um voto consciente porque não conhecem os candidatos, nem os seus programas.

Depois da eleição de João Paulo II perguntamos ao cardeal Silva de Santiago de Chile porque tinha votado no cardeal polonês. Ele disse: ”Nós não o conhecíamos, mas disseram-nos que era um bom candidato e então votamos nele”. Se o paroquiano explicasse assim o seu voto ao seu vigário, este lhe diria que é um inconsciente.

Sabemos quem foi quem disse que era um bom candidato. Foi o cardeal Koenig arcebispo de Viena na Áustria. Koenig tinha grande fama de homem de grande projeção intelectual e de grande prestigio internacional. Mas estava muito ligado ao Opus Dei que tinha feito uma campanha eleitoral muito ativa. Sabemos que foi ele, porque ele mesmo o disse antes de morrer, e disse que estava muito arrependido de ter feito isso. O cardeal Silva não sabia que o cardeal polonês era adversário do Concílio Vaticano II.

Os eleitores devem ter tempo para se conhecer e saber quais são os candidatos apresentados pelos colegas e quais são os programas dos candidatos. Se isso se exige por eleições comuns, poderia pensar-se que na Igreja essa exigência de direito natural vale com mais força. Na prática o quer acontece é que os cardeais fazem um voto de confiança, exatamente o que se denuncia em todas as eleições políticas. O votante não sabe o que quer o seu candidato. Ainda bem que o povo católico não sabe como se faz essa eleição, porque ficaria envergonhado. Compreendo que os bispos guardem silêncio sobre isso. Mas essa situação não pode continuar. O pior é quando se diz que quem decide a eleição é o Espírito Santo. quando se sabe muito bem o que aconteceu e não houve nenhum momento de revelação do Espírito Santo. Porque enganar os católicos como se fossem todos infantis?

2. A descentralização

Uma administração centralizada inevitavelmente quer defender os seus poderes e aumentá-los. O que busca a administração central é em primeiro lugar o seu próprio bem, ou seja, o aumento do seu poder: fazer mais leis, mais obrigações, mais formulários, mais papéis impressos, mais exigências.

Na Igreja não é diferente. O que busca a administração é assegurar mais poder. O bem da Igreja é um pretexto. Isso é parte da natureza humana, e, se todos os funcionários da Cúria fossem santos o problema continuaria. Seria pior porque se fossem mais santos, queriam trabalhar mais ainda, e fazer mais imposições ainda. O principio de subsidiariedade vale para todos os seres humanos e quando um sacerdote ou um bispo é ordenado a sua natureza humana não muda.Precisa descentralizar: as nomeações episcopais,o direito canônico, a liturgia, a formação do clero, a organização do ensino, das obras de caridade e outras obras. Tudo pode ser organizado, por exemplo, em cada continente ou cada totalidade cultural. Nos primeiros séculos a Igreja foi organizada em patriarcados, que eram unidades culturais. A existência dentro da ortodoxia católica de Igrejas de diversos ritos orientais mostra que isso pode funcionar muito bem. A centralização atual é o resultado de razões puramente históricas.

O sistema atual ainda é na Igreja a continuação do colonialismo. Chegando a Puebla João Paulo II condenou as comunidades de base, condenou o movimento bíblico, condenou a teologia latino-americana. Conseqüência: em 30 anos, somente no Brasil, 30 milhões de católicos deixaram a Igreja católica para aderir a igrejas ou movimentos pentecostais ou neo pentecostais, conseqüência da pastoral imposta. O Papa escutou alguns conselheiros que tinham intenções políticas muito claras. Não procurou saber mais, recorrendo a instâncias mais representativas. Pensou que o problema era o comunismo e não era o comunismo e ele tinha possibilidade de receber outras informações. Alguns podiam dar-lhe a informação de que América Latina não é Polônia e nem sequer é Europa Nós estávamos aí sabendo o que ia acontecer, mas nada podíamos fazer. O cardeal dom Aloísio Lorscheider sentiu imediatamente tudo e procurou consertar, mas não tinha peso suficiente e não era da confiança do Papa.

3. Um sistema de governo em que uma pessoa sozinha decide tudo sem que haja debate público e instância deliberativa, chama-se ditadura. Um sistema em que as verdadeiras motivações das decisões do governo, são escondidas com certeza não responde as exigências do direito natural. Os cidadãos têm o direito de saber quais são os fundamentos das decisões tomadas. Por exemplo, quando Paulo VI condenou o uso de meios anticoncepcionais artificiais, não se soube que os cardeais consultados na sua maioria não concordavam, que as comissões nomeadas pelo Papa para estudar o assunto também não concordavam. Lembro-me muito bem de ter ouvido os comentários do cardeal Suenens, que era o meu bispo.

Muito bem. Uma geração depois, o Conselho da Família envia aos bispos um comunicado em que diz que já não se deve fazer perguntas às penitentes sobre a a sua prática de limitação de nascimento. Se não se pode fazer perguntas, é porque não se deve considerar como pecado. O próprio Alfonso López Trujillo teve que comunicar secretamente essa revogação implícita da encíclica Humanae Vitae. Mas porque não se disse publicamente? A maioria dos católicos ainda o ignora, embora não aceite a condenação. Os católicos não conhecem os métodos da Cúria romana; Não sabem que nunca se publica a revogação de uma ordem dada anteriormente. Mas se diz que não se devem fazer perguntas aos penitentes. Até o papado de Bento XIV no século XVIII, nunca se havia revogado a condenação dos juros, o que proibia que católicos trabalhassem em bancos. Mas o Papa disse então aos confessores que já não se deviam fazer perguntas aos penitentes.

Porque não se disse que agora a autoridade tinha mudado? Por que as mulheres não podem saber que a Igreja já não condena os meios artificiais de limitação de nascimentos? Muitas ainda acreditam que a Igreja as segue condenando e tratando como pecadoras. Essas são práticas de ditaduras Numa ditadura o governo nunca erra. Nunca reconhece que foi um erro. Na Igreja só se reconhece depois de quatro séculos. Se houvesse instancias de deliberação, poderiam ser evitados muitos erros que vêm da precipitação, criando depois a dificuldade de reconhecer o erro.

Se não se fazem essas reformas, nenhuma outra reforma pastoral será possível. Tudo depende do centro, tudo depende do papel do Papa. Paulo VI sabia-o e João Paulo II sabia-o também. Ainda não sabemos o que pensa o Papa atual. Mas acredito que não deve pensar diferente do seu antecessor.

Não é questão de santidade. O Papa Pio X foi um santo. Mas cometeu erros colossais em matéria bíblica que explicam uma boa parte dos problemas atuais da Igreja no meio do mundo! O problema é que o Papa é homem também e tem os mesmos limites da natureza humana. A sabedoria humana aprendeu a construir sistemas de governo adaptados à condição humana. Jesus não definiu nenhum sistema de governo. E não estamos mais nos tempos de Gregório VII. O problema é que tudo depende de uma pessoa só!

As reformas podem demorar séculos se não aparece um dia o Papa que toma a decisão de mudar o modo de exercício do ministério de Pedro. Em princípio, teria que ser um homem mais jovem. Precisa suprimir esse preconceito que é melhor um homem já de idade para que não permaneça na frente tanto tempo. Mas há outra maneira: o Papa pode aplicar-se a si mesmo a norma dada aos bispos. Antigamente os seres humanos viviam poucos anos, uma media de uns 30 anos. Hoje em dia a media já atinge 80 anos e vai subir mais. Não é normal que uma instituição tão complexa tenha que ser dirigida por um homem com mais de 80 anos de idade.

Tanta gente na Igreja pensa assim! Talvez sejam mais sábios do que eu pensando que de qualquer maneira nada vai mudar e é melhor conformar-se, do que gastar energia numa causa perdida de antemão. O que me consola, é que não estou sozinho. Já há muitas pessoas que estão escrevendo essas coisas

José Comblin
Fonte IHU

*
Ele foi escrito "na última semana que esteve entre nós", informa Monica Maria Muggler. Segundo Monica, "considerações que achou por bem fazer, a partir da repercussão de entrevistas recentes que havia dado sobre questões eclesiais. Enviou a algumas pessoas e deixou para divulgar mais tarde, pois considerava que o assunto ainda não está na ordem do dia em nosso continente, embora na Europa já se começa a falar a respeito".

terça-feira, 12 de abril de 2011

Comblin: pedagogo, profeta e santo.

Entrevista com D. Sebastião Soares e D. Luiz Cappio

(Publicado em IHU – Unisinos - Instituto Humanitas Unisinos – www.adital.com.br )
Pe. José Comblin vivia em Barra, no interior da Bahia, há dois anos. Escolheu viver lá porque achava que a diocese da cidade era uma das poucas que estava, efetivamente, ao lado dos pobres. D. Luiz Cappio conviveu com ele durante esses últimos anos de vida e conta, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, sobre como foram esses últimos momentos da vida de Comblin. "Nós estabelecemos um entrosamento muito grande por ocasião do meu segundo jejum em Sobradinho, quando ele esteve lá comigo durante um tempo bastante grande, sendo muito solidário e muito fraterno na nossa luta contrária ao projeto de transposição de águas do rio São Francisco”, conta D. Cappio que, então convidou Comblin para residir na diocese de Barra.
Dom Luiz Flávio Cappio vive na Bahia, onde está à frente da diocese de Barra. Em 2005 e 2007 fez jejum em protesto contra o projeto do governo federal de transposição do rio São Francisco. Em 2008, a organização Pax Christi Internacional (Bélgica) lhe deu o prêmio da Paz do mesmo ano, por sua luta em defesa da vida na região do São Francisco. Em 2009, recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant (Alemanha).
"Sem dúvida a morte de José Comblin é um momento de grande dor para a Igreja e particularmente para quem o conheceu mais de perto". Dom Sebastião Armando Gameleira Soares, bispo da Diocese Anglicana do Recife,reconhece que falar postumamente sobre o grande teólogo e amigo é desafiador. Porém, "ouso acrescentar que é um grande momento de ressaltar a relevância da profecia na Igreja e na sociedade". Ele também concedeu uma entrevista, por e-mail, à IHU On-Line sobre Pe. Comblin.
Nascido em Alagoas, Dom Sebastião Armando Gameleira Soares é bispo da Diocese Anglicana do Recife (região Nordeste), da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. É mestre em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, e em Ciências Bíblicas, pelo Instituto Bíblico de Roma, e em Filosofia, pela Universidade Lateranense, também em Roma. É também especialista em sociologia e bacharel em direito. Há mais de 25 anos, assessora o Centro de Estudos Bíblicos - Cebi, tendo assumido sua Direção Nacional e sua Coordenação Nacional do Programa de Formação, além da coordenação e da assessoria do Curso Extensivo de Formação de Biblistas. Também colabora na assessoria ao Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e à Educação Popular - Cesep, de São Paulo.


Confira a entrevista com Sebastião Gameleira Soares.
IHU On-Line – Na sua opinião, qual foi a contribuição de José Comblin à teologia e ao pensamento teológico contemporâneo?
Sebastião Gameleira Soares – Comblin foi, durante muitos anos, professor de Teologia em seminários e universidades. Por isso, teve de lidar também com os chamados tratados clássicos nos quais se organiza normalmente o ensino e a formação teológica de estudantes. Mas, desde cedo, seus olhos se voltaram para a realidade viva da Igreja e do mundo. No que fazia e nos temas que abordava, estava a indicar claramente que não pretendia trabalhar por uma "teologia de corte" que atendesse aos "interesses do príncipe". O edifício clássico da Teologia cristã era para ele como o depósito de grandes tesouros das intuições milenares do Cristianismo, as quais deviam ser resgatadas de modo a dizerem hoje uma palavra nova e relevante à sociedade.
Não pretendia fazer como tantos que apenas elaboram Teologia para respaldar afirmações do Magistério eclesiástico e consolidar o sistema estabelecido e, desse modo, nada dizem de novo ao mundo, só repetem, o que é um péssimo serviço à Tradição. O Evangelho nos diz que apenas repetir, sem provocar nada de novo na vida das pessoas e da sociedade, é palavra vazia, sem novidade e, sobretudo, sem autoridade para afastar de nós os "espíritos impuros" e destrutivos, o contrário de Jesus (cf. Mc 1, 21-28).
Ao chegar a nosso continente, pelo que escrevia e por suas brilhantes conferências, estava bem claro qual era a direção de seu olhar, o horizonte no qual se daria sua reflexão entre nós. Ou seja, o horizonte hermenêutico de preocupações e perguntas a partir das quais olhava a herança milenar do Cristianismo. Teologia para ele era momento teórico da prática cristã na história. Não se tratava de mero discurso religioso, mas de momento da práxis humana e cristã, isto mesmo antes de a Teologia da Libertação elaborar seus conhecidos princípios metodológicos.
Teologia para ele tinha particularmente a função de criticar, à luz da Bíblia e da experiência cristã, a prática missionária, pastoral e sociopolítica. É por isso que se entende que, desde o começo, se preocupou por pesquisar a história e o processo de evangelização da América Afrolatíndia e as marcas que configuraram o Cristianismo no Continente.
Hoje, se acende o debate em torno da importância de uma "Teologia Pública". Ora, já o vemos antecipar, quando lança obras de fôlego como Teologia da Cidade, Teologia da Paz, Teologia da Revolução. Foi por isso que resolveu enfrentar a Ideologia da Segurança Nacional e denunciá-la como idolatria. Em suas conferências, a análise dos sistemas econômicos e políticos e seu julgamento teológico estavam sempre presentes. E, naturalmente, a denúncia da vinculação das estruturas do Cristianismo a esses sistemas, com a indicação inclusive de suas raízes históricas. Nisso, foi mestre.
IHU On-Line – O site da sua diocese destacou a notícia sobre a morte do teólogo, que era padre católico. Sem dúvida, um sinal ecumênico por parte da sua comunidade. Qual a importância de Comblin para o ecumenismo, especialmente na região do Recife, onde ele viveu por alguns anos?
Sebastião Gameleira Soares – Não se pode dizer que tenha sido um "militante" do Ecumenismo. O que se deve dizer é que foi, como gente e como intelectual e pedagogo (como educador é que foi pastor), uma pessoa radicalmente ecumênica. O foco de todo o seu trabalho intelectual e pedagógico não era a instituição eclesiástica, mas sim a relevância do Cristianismo na vida das pessoas e na sociedade em geral. Estava presente onde o Cristianismo estivesse querendo recuperar-se como fermento de animação de uma sociedade nova e onde pessoas de quaisquer procedências estivessem dispostas a lutar pela justiça. Não é por acaso que recebia convites de seminários e faculdades protestantes e, nos últimos anos, reunia periodicamente em sua casa um grupo de pastores protestantes para reflexão e debates.
Sua atitude ecumênica tem tudo a ver com o que hoje se chama de "Ecumenismo de Base", ou a partir da vida do povo. Porque tocava justamente nos problemas que a todo mundo interessam, os problemas do dia a dia da vida e que não perguntam primeiro por confissões de fé, mas por soluções de fé, como eu gosto de dizer.
Ora, particularmente no Nordeste do Brasil, como no tempo de Jesus em Sua terra, só quem estava interessado em discutir em primeiro lugar questões religiosas e "de Teologia" eram os segmentos integrados no sistema estabelecido (escribas, fariseus, saduceus), o povo mesmo procurava Jesus para sentir a dignidade recuperada, as enfermidades curadas ou pelo menos cuidadas, a fome saciada... Comblin o compreendeu muito bem, tratou dessas questões e assim assumiu a largueza "ecumênica" do coração de Deus, à imitação de Jesus. Sua paróquia realmente era o mundo, no dizer do grande profeta John Wesley, inspirador do Metodismo.
IHU On-Line – Pessoalmente, como o senhor analisa a teologia e a obra de Comblin? Pelo que sabemos, o senhor foi seu aluno. É isso? Que recordações e lembranças desse grande teólogo ficarão gravadas em sua memória?
Sebastião Gameleira Soares – Na verdade, não tive a graça de ser seu aluno. Quando ele se tornou professor do Instituto de Teologia do Recife - Iter, trazido por convite de Dom Helder [Câmara] depois do golpe militar, eu estava a estudar em Roma, aonde cheguei em outubro de 1964. Só o conheci pessoalmente depois que já era eu mesmo professor do Iter e em seguida também Coordenador dos Estudos.
Às vezes, quando tinha algum intervalo que coincidisse com sua aula, procurava escutá-lo. Também tive a felicidade de escutá-lo em conferências ou em seminários de estudo que promovíamos, especialmente no Departamento de Pesquisa e Assessoria - Depa. Impressionava-nos a capacidade que tinha de escutar as questões e discorrer sobre os mais variados temas por toda uma jornada sem ter nas mãos uma folha de papel sequer. Dizíamos que era cabeça de computador. Amplíssimo nível de informações, tanto de história quanto da conjuntura mundial, e agilidade para refletir e aprofundar os temas com intuições originais.
Um dos aspectos que mais me fascinavam em seu jeito de fazer Teologia é sua capacidade de ir ao tesouro da Tradição e penetrar além da letra, "por trás das palavras", como gosta de dizer nosso amigo Carlos Mesters, na busca de resgatar as intuições mais profundas que estão por detrás das afirmações doutrinais, sempre naturalmente condicionadas pela consciência possível de cada época. De alguns professores em Roma e, especialmente dele, algo disso eu aprendi, de modo que um dia cheguei a mostrar a um amigo luterano que a doutrina católica do purgatório, rejeitada pela Reforma, é, na verdade, uma das afirmações mais luteranas no Catolicismo, uma forma bem da cultura medieval de reconhecer o princípio de simul justus et peccator (simultaneamente justo e pecador), um dos princípios basilares do Protestantismo. Se fizéssemos esse esforço sistematicamente, quantos equívocos desmascararíamos, como foi feito há alguns anos com a questão da "justificação pela fé" no documento conjunto católico-luterano!
IHU On-Line – Quais são as grandes fontes matriciais do pensamento de Comblin (teológicas ou não)? Que pensadores e obras fundamentaram a sua teologia?
Sebastião Gameleira Soares – Primeiramente, dominava a bibliografia teológica mundial e tinha aguda capacidade de síntese pessoal. Conhecia a história da Teologia, e não só da teologia católica romana. Além disso, era doutor em Ciências Bíblicas com tese sobre O Cristo no Apocalipse, em um tempo em que muito pouca gente se interessava por esse livro da Bíblia. Quem sabe, já era a intuição de que o grande confronto da atualidade é entre Cristo e o Império...
Tinha formação em Sociologia e amplo conhecimento da História da sociedade ocidental, particularmente da História da Cultura, ajudada pela Sociologia da Cultura, e da História da Igreja, especialmente da grande trajetória do Catolicismo. Conhecia muito bem o Marxismo. Seu raio de leituras era amplíssimo, inclusive na área de Economia e da Política. Finalmente, tinha nítida percepção da importância do papel da Igreja na formação da sociedade ocidental (Europa) e na empresa colonial legitimada pelas missões (outros continentes). Sua luta se dava no sentido de resgatar a relevância da herança da Igreja na reconstrução de uma sociedade onde os pobres achassem seu lugar e fossem sujeitos da recuperação de sua dignidade.
Entre os fundamentos de sua obra teológica, não por último, deve ser mencionada a profunda fé no Deus da história – o Deus bíblico – e sua espiritualidade centrada no discipulado de Jesus, o que lhe dava o poder de ser simples e modesto, pobre, e de sentir-se bem entre os pobres e dedicar a eles e elas sua vida.
IHU On-Line – Comblin sempre esteve perto dos leigos e leigas cristãos, como indicam alguns de seus livros como Curso Básico para Animadores de Comunidades de Base (Paulus, 1997), Cristãos Rumo ao Século XXI (Paulus, 1997) e O Povo de Deus (Paulus, 2002). Que laicato desponta do pensamento de Comblin?
Sebastião Gameleira Soares – Seu profundo vínculo com o laicato se revela particularmente quando seus projetos de educação teológica visam a formar pessoas, clérigos e pessoas leigas que cheguem a optar por estar em caminhada missionária junto com o povo pobre das comunidades, especialmente a gente camponesa humilhada do interior. Para ele, isso seria um golpe certeiro no que se faz habitualmente com os estudos teológicos, a saber, servem para criar e fortalecer uma elite que, "entronizada" acima do povo, o domina. A seu ver, ordinariamente, os estudos teológicos são um dos fortes sustentáculos do sistema clerical, do qual o povo de Deus em geral está excluído.
Já no Chile, foi um formulador desse novo sistema de formação. No Nordeste do Brasil, junto com um grupo de seminaristas e do saudoso Padre René Guerre (francês, ex-assistente nacional da Juventude Operária Católica - JOC francesa, trazido ao Recife por Dom Helder), orientou a famosa "Teologia da Enxada", que supunha os estudantes cursarem Teologia estando inseridos no meio de camponeses, junto aos quais, como primeiro passo dos estudos, pesquisavam qual era a formulação popular da fé cristã.
Com o amadurecimento de suas experiências e de sua análise do sistema eclesiástico, tomou a decisão de não mais colaborar em seminários para formação do clero e dedicar-se totalmente à educação teológica e missionária de gente leiga. Fazia isso especialmente no interior da Paraíba e da Bahia, ao lado de suas conferências e seminários de estudo em outras partes do Brasil e no Exterior.
Várias são as iniciativas das quais era o grande inspirador e pedagogo: Centro de Formação Missionária, Associação de Missionários e Missionárias do Nordeste, Curso da Árvore, "Seminário" de formação para gente leiga dos sertões da Bahia, Fraternidade do Discípulo Amado... Recomendou e escreveu sobre isto: o povo leigo das Comunidades de Base devem organizar-se em associações autônomas para assim resistir ao poder do sistema eclesiástico. Tinha plena razão. Muito de todo o esforço das comunidades ficou prejudicado por falta de terem dado esse passo. Sem autonomia jurídica, que seria dada por associações civis legalmente constituídas, é fácil, como tem sido, para o poder na Igreja anular a iniciativa do laicato, sobretudo do laicato mais pobre e frequentemente iletrado.
É bom ressaltar que em torno dele sempre estiveram muitas mulheres que assim têm sentido a dignidade resgatada e sua capacidade de influir na Igreja e na sociedade, tanto leigas como freiras.
IHU On-Line – Que figuras foram centrais na vida de Comblin, como impulsionadoras ou críticas ao seu pensamento?
Sebastião Gameleira Soares – Penso que há outras pessoas com bem mais autoridade para responder sobre isso. Ousaria lembrar que admirava sobremaneira a figura do "Apóstolo do Nordeste", o Padre [José Antônio Maria] Ibiapina. Sobre ele chegou a escrever um livro e trabalhou intensamente pela restauração do Memorial com seu nome em Santa Fé, na serra paraibana. Lá quis ser enterrado. Padre Ibiapina assumiu o ministério depois de aposentado como juiz de Direito e viúvo. Dedicou a vida ao povo dos sertões e teve a intuição de que é o povo sertanejo, pobre, que deve ser o agente missionário de sua região.
Em função disso, por exemplo, fundou as famosas "casas de caridade", onde se reuniam em comunidade mulheres do lugar para estarem a serviço das necessidades do povo. Ele, Ibiapina, era inspirador e orientador. Esse modelo correspondia justamente aos ideais de Comblin, uma Igreja que nascesse do Espírito Santo a partir da iniciativa do povo agindo autonomamente a serviço de seus iguais.
Depois vêm figuras como Dom Helder Camara, Dom Oscar Romero, Dom Leonidas Proaño e tantas outras dentre os Pais da Igreja da América Afrolatíndia. Sem falar de seus e suas colegas de tarefa de elaboração teológica. Nestes últimos anos, aproximou-se intimamente de Dom Fr. Luis Cappio, Bispo da Barra, na Bahia, confessor da fé e apóstolo do povo ribeirinho do São Francisco. Transferiu-se mesmo para a Bahia e foi lá que faleceu. Tinha dito que no curso final de sua vida queria estar perto de um santo filho de São Francisco para ter perto de si um exemplo de santidade e assim se preparar melhor para a grande viagem...
IHU On-Line – Alguns dos livros de Comblin abordam especificamente questões bíblicas. Que aspectos centrais o senhor destacaria na "leitura bíblica” de Comblin?
Sebastião Gameleira Soares – Sobretudo desde vários anos para cá, Comblin compreendeu sua tarefa de escritor como dever produzir livros que falassem de Teologia da Missão, da Palavra como elemento dinâmico e transformador da vida e da sociedade, do Espírito Santo como suscitador de iniciativas de missão, de Jesus como centro em redor do qual estamos nós em atitude de discipulado.
Esses escritos têm uma fortíssima inspiração bíblica e espiritual. Querem colher na raiz o testemunho que nos deixaram as Escrituras e suscitar em nós atitudes novas, à imitação de Jesus. Lembremos de livros como Cristãos do Século XXI, Povo de Deus, A Liberdade Cristã, O Caminho.
Sobre Jesus, escreveu sempre e a partir dos evangelhos. Participou do Comentário Ecumênico Brasileiro com alguns livros sobre as Epístolas Paulinas e os Atos dos Apóstolos. Estava no mesmo rumo do que chamamos de Leitura Popular e Comunitária da Bíblia. A vida como contexto de leitura da Bíblia e a Bíblia como testemunho da vida de nossos pais e mães na fé, para que possamos perceber a força transformadora da Palavra que Deus nos dirige hoje, na atualidade de nossa existência.
IHU On-Line – Para finalizar, deseja acrescentar mais alguma coisa sobre Comblin?
Sebastião Gameleira Soares – Acrescentaria apenas o seguinte: é impressionante perceber em Comblin – Padre José ou Padre Zé, como o povo lhe chamava – uma personalidade paradoxal. Quase tímido e ao mesmo tempo de coragem e determinação de aço. Até na morte não caiu aos poucos, mas tombou de repente, como as palmeiras que caem de um só golpe, trabalhou até morrer. "O justo é como a palmeira plantada nos átrios de Deus". Quase silencioso, de voz mansa e fina ironia, a arma dos pobres, e ao mesmo tempo voz que soava por cima dos telhados e atravessava continentes.
Diante de sua palavra crítica, isto é, que instaura a crisis, a ditadura militar tremeu e por isso o expulsou do país, e as hierarquias eclesiásticas ainda agora tremem temerosas da influência que pode ter na mente dos fiéis. Privilegiadamente inteligente, teólogo famoso, e ao mesmo tempo modesto, pobre, quase escondido. Fiel aos pobres, ao ser convidado para conferências e seminários, ao que me consta, nunca se interessou pelo que teria de gratificação financeira, nunca teve "preço" nem cedeu ao sistema de mercado, permaneceu pobre a serviço de pobres.
Escreveu para teólogos e letrados e com mais amor ainda escreveu para pobres e gente de poucas letras. Fez conferências em grandes auditórios de universidades e gastou precioso tempo com freiras tão sem poder nas estruturas eclesiásticas, camponeses, missionários e missionárias do campo, mulheres pobres. Grande intelectual e, ao mesmo tempo, de profunda espiritualidade radicada na fé e no amor a Jesus e a Seu caminho, por isso capaz de celebrar a fé junto com o povo.
Viveu da tarefa de formular pensamentos e teoria, suas aulas eram "monótonas", isto é, sua voz tinha sempre o mesmo tom, só as seguia quem era capaz de se encantar pelo conteúdo e não dependia tanto de "recursos didáticos", e ao mesmo tempo foi um dos maiores pedagogos que temos conhecido por sua capacidade de inspirar e suscitar iniciativas e comunicar às pessoas a perspectiva de se tornarem autônomas no pensamento e na ação.
Foi "pedagogo", isto é, Guia para a descoberta da Verdade da vida. Foi Profeta para denunciar a mentira dos sistemas de opressão e anunciar a Verdade do Reino de Deus. É santo para nos inspirar a perseverar no Caminho.
Confira a entrevista com Dom Cappio.
IHU On-Line – Onde o senhor conheceu José Comblin?
Dom Cappio – Falar do Padre José Comblin é falar de um grande amigo e irmão que eu tive a felicidade de ter nos últimos dois anos de sua vida, quando ele decidiu vir morar aqui comigo na cidade da Barra, na Bahia. Esta convivência com ele foi uma convivência muito amiga, muito fraterna e de identificação mútua. Eu o conheci através dos seus livros, dos seus gritos como estudante de Teologia. Muitos dos assuntos de pesquisa eu estudava em seus livros, pois ele era uma fonte de pesquisa para mim. Ele me ajudou muito no curso de Teologia que fiz. E depois, ao longo da minha vida sacerdotal e também episcopal, sempre procurei em seus livros um enriquecimento para o meu conhecimento e atualização teológica.
Além dos livros, também o conheci pessoalmente quando fiz o curso de bispos. Fui convidado a participar desta formação há mais ou menos dez anos. Depois nós estabelecemos um entrosamento muito grande por ocasião do meu segundo jejum em Sobradinho, quando ele esteve lá comigo durante um tempo bastante grande, sendo muito solidário e muito fraterno na nossa luta contrária ao projeto de transposição de águas do rio São Francisco. Foi desta maneira que conheci o Padre José Comblin. Fiz o convite para que ele viesse residir aqui na nossa diocese e ele prontamente aceitou e aqui permaneceu até os seus últimos dias.
IHU On-Line – Por que ele decidiu viver em Barra, na Bahia?
Dom Cappio – Segundo o que Padre Comblin dizia, era porque ele entendia que Barra era uma das últimas dioceses do Brasil que tinha feito a opção pelos mais pobres, mais carentes, por um povo bastante esquecido e bastante empobrecido. E ele, no seu desejo muito grande de viver à risca e até os limites o evangelho de Jesus, optou passar os seus últimos dias, os seus últimos tempos de vida, aqui na diocese da Barra, onde se concentrava certa porção de uma das partes mais carentes do povo de Deus. Ele sempre dizia: "eu vim para a diocese da Barra porque aqui residem os pobres, aqui é uma igreja que está a serviço dos pobres e às comunidades que são organizadas para servir aos pobres. É por isso que vim para a diocese da Barra, para viver com eles”.
IHU On-Line – A vontade de Comblin era ser enterrado no mesmo santuário onde Pe. Ibiapina foi sepultado. Quem foi este padre? O senhor sabia desse desejo do Pe. Comblin?
Dom Cappio – Padre Ibiapina, padre mestre Ibiapina, foi um grande missionário que viveu no Nordeste. Ele nasceu em Sobral, no Ceará, em 1806, e morreu em Santa Fé, na Paraíba, em 1883. Ibiapina se tornou padre já bem idoso, ele primeiro foi advogado, depois foi juiz de direito, mas quando percebeu que a Justiça estava apenas a serviço dos grandes senhores da época, ele abandonou a sua carreira jurídica e se ordenou padre. Assim, ele se embrenhou pelos interiores do sertão nordestino, criando toda uma infraestrutura que possibilitasse a vida das comunidades mais carentes do sertão do Nordeste, construindo açudes, construindo os primeiros hospitais da região, construindo casas para acolher crianças que morriam, para acolher pessoas idosas que não tinham quem as cuidasse.
Foi um homem que dedicou toda a sua vida na prática da caridade e de ações direcionadas aos mais carentes da sociedade. Padre Ibiapina está em processo de beatificação, é um grande missionário do sertão do Nordeste, pouco ainda conhecido e Padre José Comblin, que também possuía a mesma vocação de viver em função dos pobres e fazer da sua vida uma vida profundamente comprometida com o evangelho de Cristo, viu na vida do Padre Ibiapina um exemplo para sua própria vida. Comblin foi um dos grandes divulgadores da biografia do Pe. Ibiapina e hoje este vem sendo cada vez mais conhecido como um homem de Deus, o grande missionário dos sertões do Nordeste brasileiro graças às pesquisas e ao trabalho de divulgação que Comblin fez. Padre José Comblin era um grande admirador de Padre Ibiapina e um grande devoto de Padre Cícero, por causa do compromisso que este tinha com os mais pobres. Estes são os ícones que viveram do nordeste brasileiro e que serviram para Comblin como exemplos de vida e é por isso que ele escolheu ser sepultado onde o Padre Ibiapina está sepultado. Homens que deram a sua vida pelos homens do Nordeste.
Ele manifestou por diversas vezes essa vontade de ser enterrado junto ao túmulo do Padre Ibiapina, lá no santuário de Santa Fé, na Paraíba.
IHU On-Line – Qual sua impressão da cerimônia de enterro do Pe. Comblin?
Dom Cappio – Dia 27 de março, domingo, ele acordou logo cedinho, tomou o seu banho, se vestiu e saiu. Ele estava no Recanto da Transfiguração, que é uma casa de encontros dirigidos por Gisa Maia, uma leiga consagrada aqui na Bahia. Comblin gostava muito daquele recanto, um lugar que inspira muito a espiritualidade. Como estava chuviscando, ele retornou da caminhada e Gisa o viu e pediu que uma das moças que cuidava da casa fosse levar um guarda-chuva para que ele pudesse vir para a oração da manhã.
Quando a moça chegou aos seus aposentos, ele já estava reclinado, sentado meio deitado, já morto. Foi um enfarte fulminante logo na manhã do domingo. Naquele mesmo dia, celebramos a missa de corpo presente, a funerária levou o seu corpo para ser preparado para o enterro e fizemos a viagem por terra até Santa Fé-PB, onde chegamos na madrugada de terça-feira. Durante toda a manhã deste dia, ele foi velado. Centenas de pessoas da região vieram visitá-lo e, à tarde, às três horas, tivemos uma celebração com seis bispos, aproximadamente 60 padres e muita gente da redondeza, porque ele era muito querido, muito amado por aquele povo. E assim foi o sepultamento dele no santuário de Santa Fé, com a participação de muitos bispos, padres e fiéis. E houve também diversas missas de sétimo dia em muitos lugares onde ele era reconhecido e muito valorizado.
IHU On-Line – Padre Comblin vivia em Barra também. Vocês conversavam sobre a transposição do São Francisco? O que ele dizia sobre sua luta em relação à vida do rio?
Dom Cappio – Sempre conversávamos. Padre Comblin era um profundo defensor da vida, da vida do povo nordestino, da vida do povo ribeirinho, e ele sempre foi contrário ao projeto de transposição, porque ele via que este iria defender os interesses dos grandes grupos da oligarquia econômica, contrária aos interesses populares. Padre José Comblinsempre foi um defensor dos direitos do povo. Quando ele via que este projeto era contrário aos direitos do povo, Comblin se colocou contrário ao projeto de transposição de águas do rio São Francisco e de todos estes projetos faraônicos que agridem a natureza e agridem os direitos da população de ter os seus bens necessários para sua sobrevivência.
Ele via nesse projeto uma agressão à natureza e ao povo que necessita de água. Padre Comblin não conseguia admitir que essa água fosse tirada do povo para servir aos grandes projetos agroindustriais. Ele sempre foi contrário a estes projetos e, por isso, veio à diocese da Barra por ver que aqui havia uma postura muito forte, clara e transparente a defesa dos direitos da população.
IHU On-Line – E, nesse momento, como estão as obras de transposição do São Francisco? Continuam em pé? Que problemas já vêm se apresentando?
Dom Cappio – Elas continuam, mas com muita demora, muita delonga, com muitos contratos sendo revistos. O Ministério da Integração Nacional agora já postergou todos os prazos, não se têm mais datas previstas para a inauguração e nós sempre dizíamos que essas previsões eram um efeito político eleitoreiro, mas o pessoal não acreditava. Agora todas as datas foram postergadas e muitas atividades do projeto de transposição que estavam sendo realizadas foram paradas.
Os grandes canais que foram abertos diante de um Sol clemente, estão com as placas de concreto rachando; os técnicos já estão dizendo que as placas não vão aguentar e que todos os canais terão de ser refeitos. É uma tristeza. Aquilo que nós sempre dizíamos, que o projeto não chegaria ao fim, e eu ainda acredito nisso, está acontecendo. Na medida em que ele vai sendo construído vão aparecendo tantos problemas paralelos que os custos estão sendo tão aumentados, os prazos estão sendo cada vez maiores, por isso tenho certeza de que o projeto não terá condições de chegar ao fim. Portanto, confirma-se aquilo que sempre dissemos: que este projeto era eleitoreiro, ou seja, para garantir as eleições de 2010. O projeto já cumpriu a sua função de garantir os recursos necessários para as eleições presidenciais do ano passado, então agora se ele vai ser levado adiante ou não isso pouco importa para o governo.
IHU On-Line – Sua luta, as greves de fome que o senhor fez em protesto contra as obras de transposição, como o senhor vê agora, diante desse cenário das obras?
Dom Cappio – Eu vejo que foi graças a todas aquelas lutas, àquele grito que foi dado, que fez mostrar para o Brasil e para o mundo o absurdo deste projeto. Na medida em que este projeto avança, a população está percebendo que tudo aquilo que se dizia sobre o projeto é verdadeiro. Há uma total falta de respeito para com as comunidades por onde os canais passam, uma total falta de respeito para com os municípios e estados por onde os canais estão sendo abertos. Também a presença massiva do exército brasileiro que intimida as populações, as indenizações que não estão acontecendo... Na medida em que o projeto avança, está se mostrando para que ele veio, e toda aquela propaganda feita pelo governo –de que seria a redenção do Nordeste–, cada vez mais o povo percebe o quanto era enganosa.
Tudo aquilo que dizíamos, tudo aquilo que apontamos na época em relação ao projeto, tudo isso está se concretizando. Pelo menos o Brasil e o mundo tiveram a oportunidade de saber a verdade a respeito do projeto. Infelizmente, ele foi iniciado e, com o tempo, vai mostrar o grande engano pela qual toda a sociedade brasileira passou com a viabilização do projeto que, tenho certeza, não chegará ao fim.
Um abraço afetuoso. Gilvander Moreira, frei Carmelita.
e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
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skype: gilvander.moreira

terça-feira, 5 de abril de 2011

AGRADECIMENTO A UM MESTRE

José Comblin deixou-nos no dia 27 de março último, depois de completar 88 anos de idade, vividos de modo despojado, fraterno e ecumênico. Pediu para ser enterrado em Solânea, PB, ao lado do grande apóstolo dos sertões nordestinos, o Pe. Ibiapina, para ele, um modelo para a missão, para a promoção humana, espiritual e apostólica dos pequenos e das mulheres e um verdadeiro santo, para nossos tempos.
Louvamos a Deus por sua vida e damos testemunho de sua entrega ao estudo e à formação a serviço dos pobres. Sua lúcida contribuição nos campos bíblico, teológico, pastoral e do compromisso cristão no mundo, sempre foi marcada pela busca da justiça e da transformação social. A partir dos últimos e excluídos, interpelava corajosa e profeticamente os grandes do mundo e da Igreja e as estruturas de opressão e exclusão.
A opção pelos pobres, que marcou sua vida, é um exemplo para nós. Por causa dos pobres, deixou a Bélgica e veio para a América Latina. Aqui, optou pelo nordeste, não o das capitais e sim o do sertão. Da experiência vivida entre os pobres, ele retirou o material básico para sua leitura da bíblia, sua espiritualidade, sua teologia, suas orientações pastorais. Nisso, tornou-se nosso mestre: nunca esquecer que o primeiro lugar no reino de Deus pertence aos pobres.
Comprometido com o projeto comunitário de igreja, Comblin dedicou especial atenção à formação de seminaristas em contato com o povo, visitando suas comunidades para com eles conviver e orientar nos estudos. Pensou num tipo de sacerdote nascido ou vivendo na zona rural, membro atuante de uma comunidade de base, e assim brotou a Teologia da Enxada que evoluiu para a fundação do Seminário rural. Para completar o quadro, Pe Comblin iniciou em Mogeiro-PB, o Centro de Formação para Missionárias do Meio Popular. Durante anos ele se desdobrou indo a pé ou de jipe para orientar a formação dos missionários do Campo e das missionárias do meio popular.
Escreveu muito. Fez inúmeras palestras e conferências. Assumiu uma enormidade de cursos formais ou intensivos para toda categoria de pessoas. Sua palavra foi dirigida a lavradores analfabetos e a doutores em teologia, mulheres da periferia e seminaristas, religiosas inseridas e bispos em assembléia, porque seu desejo era estar presente onde pudesse provocar ou renovar em seus ouvintes e leitores a conversão ao reino de Deus. Não poderemos jamais subestimar o valor dessa lição de disponibilidade como missionário e evangelizador.
Sua radical opção pelos pobres fez de Comblin um severo crítico do sistema capitalista e de seus instrumentos de dominação. Basta lembrar sua crítica lúcida e corajosa à lei de segurança nacional. Não contente com a crítica teórica, ele dedicou seu ministério presbiteral à construção de instrumentos de libertação dos pobres, como comunidades eclesiais de base, pastorais sociais e movimentos populares.
A maior lição do mestre Comblin talvez seja sua teimosa fidelidade à igreja. Foi nela e por meio dela que ele decidiu trabalhar a vida toda.
Este nosso testemunho é apenas pálido eco de milhares de pessoas, comunidades, dioceses e movimentos populares que estão agradecendo a Deus por sua vida e seus trabalhos. Sua palavra, seus escritos, sua coerência intelectual e pastoral são para a Igreja da Libertação uma verdadeira herança que devemos fazer frutificar.

(seguem inúmeras assinaturas)