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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

As proposições do Sínodo: que Igreja para o futuro?

Quinta, 22 de novembro de 2012 "A dinâmica metodológica interna do evento Sinodal e a consequente elaboração das Proposições possibilita-nos analisar como o episcopado católico pretende conduzir a Igreja nos próximos anos, inspirados pelos 50 anos do Concílio Vaticano II e pelos 20 anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica. Meu objetivo é verificar qual projeto futuro de Igreja está por traz do conceito de 'Nova Evangelização'”, Sérgio Ricardo Coutinho, mestre em História Social pela Universidade de Brasília – UnB e doutorando na mesma área pela Universidade Federal de Goiás – UFG. É professor do curso de pós-graduação em História do Cristianismo Antigo na UnB e de História da Igreja no Instituto São Boaventura, de Brasília, além de presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil). Eis o artigo. Introdução Em outro artigo publicado aqui no IHU, me arrisquei propor uma análise sobre as disputadíssimas hermenêuticas acerca do Concílio Vaticano II (ruptura ou continuidade?). Naquela oportunidade, procurei estabelecer um diálogo, no campo da Teoria da História, com o historiador alemão Heinhart Kosseleck por meio das categorias de “espaço de experiência” (passado) e “horizonte de expectativas” (futuro) para compreender melhor os projetos históricos por de trás de cada uma daquelas abordagens. Agora, venho novamente arriscar uma leitura, a partir do mesmo autor, das Proposições (cf. aqui a versão em inglês) elaboradas pelos Padres Sinodais neste último Sínodo, encerrado em 28/10, em Roma, intitulado A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã. A dinâmica metodológica interna do evento Sinodal e a consequente elaboração das Proposições possibilita-nos analisar como o episcopado católico pretende conduzir a Igreja nos próximos anos, inspirados pelos 50 anos do Concílio Vaticano II e pelos 20 anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica. Meu objetivo é verificar qual projeto futuro de Igreja está por traz do conceito de “Nova Evangelização”. Por isso, a proposta metodológica da “história dos conceitos” de Kosseleck nos será de grande valia aqui. Como bem afirmou ele, “a história dos conceitos é (...) um método especializado na crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político”, consequentemente, “uma análise histórica dos respectivos conceitos deve remeter (...) também a dados da história social, pois toda semântica se relaciona a conteúdos que ultrapassam a dimensão linguística” (1). O “evento” Sínodo sobre a Nova Evangelização Do ponto de vista do “evento sinodal”, apesar de não expressar a colegialidade de toda a Igreja, pois o mesmo é apenas um instrumento consultivo do papa, em si mesmo procurou ser o mais participativo. O Sínodo contou com a participação de 263 Padres Sinodais (2), sendo que 172 foram eleitos por suas Conferências Episcopais (pela CNBB foram Dom Odilo Scherer, Dom Geraldo Lyrio, Dom Sérgio da Rocha e Dom Leonardo Ulrich Steiner), 10 pela União dos Superiores Gerais, 40 foram eleitos diretamente pelo Papa (entre eles Dom Benedito Beni dos Santos), 37 participaram ex officio (possuem cargos na Cúria Romana) e 3 designados pelas Igrejas Católicas Orientais. De todos esses, 6 eram Patriarcas, 49 Cardeais, 3 Arcebispos maiores, 71 Arcebispos, 120 Bispos e 14 padres. Fizeram parte também do Sínodo: 20 delegados fraternos representantes de Igrejas e Comunidades Eclesiais, 45 especialistas e consultores, 49 ouvintes (mulheres e homens) e um inúmero grupo de assistentes, técnicos, tradutores e colaboradores da Secretaria Geral do Sínodo. Os primeiros dias do Sínodo foram dedicados a um amplo “agir comunicativo”. Deu-se tempo para os oradores (cardeais, arcebispos e bispos) se inscreverem para comentar algum aspecto do documento Instrumento de Trabalho. Cada um teve cinco minutos para falar, usando uma das 5 línguas oficiais (inglês, francês, italiano, espanhol e alemão), e todos, na Assembleia, acompanhavam com o texto do pronunciamento em mãos e tradução simultânea. Após, seguiam-se debate livre e restrito a intervenções de 4 minutos. Aqui fica evidente a presença da “modernidade” na Igreja: é o que J. Habermas chama de razão comunicativa, onde os atores do processo buscam o entendimento e um consenso normativo por meio da “linguagem pragmática”. O próprio Regulamento do Sínodo assim expressa este objetivo: “(...) pode parecer enfadonho ter que escutar em vários dias tantos discursos. Mas, na realidade, trata-se de uma escuta muito útil para alimentar a colaboração e a amizade entre todos, para obter, da variedade de falas, os elementos comuns, os problemas mais importantes e as questões que mais preocupam os responsáveis pela Evangelização em todo o mundo. O trabalho em comum exige paciência” (Art. 38 d). Os bispos brasileiros também fizeram uso da palavra. Dom Odilo Scherer fez um pronunciamento afirmando que ao longo da história da Igreja, já houve muitos momentos de “nova evangelização”, com a atuação de grandes santos e pastores, entre os quais citou Dom Bosco. A Igreja, mais do que estrategistas pastorais, precisa hoje de novos e santos evangelizadores que anunciem o Evangelho com a própria vida e testemunho. Dom Leonardo Steiner falou da importância dos leigos na nova evangelização. Referiu-se também aos jovens, como um novo areópago da Igreja hoje, das boas experiências com jovens missionários de jovens principalmente através da música e da mídia em geral. Dom Geraldo Lyrio Rocha discursou sobre a dimensão evangelizadora da Liturgia. Falou da “arte de celebrar”, da importância da homilia, dos ritos que comunicam o mistério e sobre o papel mistagógico da Liturgia, ou seja, os ritos, bem celebrados, por si só são uma catequese através dos sinais que favorecem à educação da fé. Dom Benedito Beni dos Santos afirmou que a Nova Evangelização está em fase de desenvolvimentona América Latina nos projetos de missão permanente. No Brasil, estes projetos acontecem com os movimentos e as novas comunidades como Canção Nova e Arautos do Evangelho. Já Dom Sérgio da Rocha chamou a atenção para desenvolver com maior esforço a iniciação cristã como autêntico processo evangelizador e que, para isso, seria importante “configurar para o catequista um ministério estável e instituído dentro da Igreja”. A palavra foi dada também a algumas mulheres e leigos que participavam na condição de auditrices (ouvintes), como a Ir. Mary Lou Wirtz, presidente da União das Superioras Gerais, Sra. Maria Voce, Superiora Geral dos Focolarinos (sucessora de Chiara Lubich), a Ir. Maria Antonieta Bruscato, Provincial das Irmãs Paulinas (brasileira) e Lydia Jiménez González, fundadora das Cruzadas de Santa Maria. Entre os leigos, o mais conhecido a falar, foi Francisco José Gomes (Kiko) Argüellos Wirtz, fundador do Neocatecumenato. Após os discursos, todo o material foi organizado já em vista da elaboração de, inicialmente, 50 proposições e distribuídas em 4 grandes conjuntos temáticos: 1) A natureza da Nova Evangelização; 2) O contexto atual do Ministério da Igreja; 3) As respostas pastorais às atuais circunstâncias e 4) Agentes e participantes da Nova Evangelização. Para isso, os dias seguintes foram dedicados aos trabalhos em grupos. Todos os quase 400 participantes foram divididos em 12 grandes grupos, chamados Circuli Minores, usando como critério de divisão as cinco línguas oficiais (4 grupos de língua inglesa, 3 de língua italiana, 2 de língua francesa, 2 de língua espanhola e 1 de língua alemã). Cada grupo com cerca de 40 pessoas sob a coordenação de um Moderador e que tinham a missão de redigir as Proposições. Recolhendo as discussões realizadas em um dos grupos de língua hispânica (3), é possível observar, com rara oportunidade, como um determinado conceito é construído. No caso deste “atual” conceito de “Nova Evangelização” (a partir de agora NE), este seria elaborado de forma intersubjetiva, apesar dos desafios e das dificuldades que tal pragmática linguística ilocucionária pressupõe (a busca do consenso). Muito diferente do “antigo” conceito de NE que, construído teoricamente e levado a cabo politicamente pelo Papa João Paulo II, chegou-nos de forma perlocucionária (4). Sobre esta, voltaremos mais adiante. De modo geral, foi rejeitado por todos os participantes do grupo que a tal NE significasse toda a pastoral da Igreja, ou seja, onde cada um a entende como quer, deixando tudo como estava antes, sem mudar nada. Seria um modo de fugir dos problemas e dos desafios. Daí ser importante evitar que se crie mais um slogan que todos repetem, mas sem nenhum conteúdo consistente. Para alguns dos participantes do grupo, a NE seria uma proposta para enfrentar a descristianização de antigas Cristandades, como é o caso da Europa (compreensão semelhante a de João Paulo II). Para outros, como uma espécie de diálogo para encarar o mundo hostil contra a presença pública da Igreja na sociedade. Não poucos a interpretavam como projeto da Igreja para recuperar o prestígio perdido pelo desaparecimento da Cristandade. Já os latino-americanos identificavam a NE com o projeto que nasce dos documentos de Aparecida, de uma Igreja missionária, que busca gerar e formar discípulos missionários. Outros sugeriram que se busquem as razões pelas quais estamos falando agora de NE. Uma intervenção sugeriu que se aprofundassem os fundamentos antropológicos, teológicos, eclesiológicos e bíblicos dessa proposta da Igreja, pois ela não pode continuar dando respostas para perguntas que ninguém faz: quais seriam mesmo as questões às quais a Nova Evangelização quer responder? Nesse sentido, alguns criticaram a falta de um status questionis, ou seja, uma espécie de ver a realidade concreta, esclarecer por que estamos aqui falando desse assunto? O que nos leva a nos preocupar com uma Nova Evangelização? Bispos de países de recentíssima evangelização, como o Timor-Leste, afirmaram: “Nós nem ainda acabamos de realizar uma verdadeira evangelização entre o nosso povo, e por que já temos que pensar numa nova? Que novidade é essa tendo em vista ao que já estamos a duras penas fazendo?” Ao término de todo este processo de debates nos Circuli Minores, chegou-se a algumas orientações em vista das Proposições: a) necessidade de esclarecer melhor o que seja NE. Concordou-se, após várias intervenções, que fosse melhor apresentar as características da NE que buscar uma definição completa; b) O texto das Proposições precisaria ser mais de caráter propositivo, alegre e entusiasta. Ele mesmo deveria espelhar o espírito da NE; c) insistir no caráter sobrenatural da NE: é de iniciativa divina, depende da graça de Deus e precisa começar no coração de cada um, a começar dos pastores; d) O novo da NE está na conversão do coração dos evangelizadores e não tanto nos projetos, metodologias ou planos mirabolantes. Ela deve se basear, em primeiro lugar, no testemunho de vida, a começar dos evangelizadores; e) O importante do título do Sínodo não é a NE, mas sua finalidade: a transmissão da fé. Portanto NE é anunciar, falar de Jesus e seu Evangelho; é catequese, evangelização; f) a NE deve ter duas grandes frentes: por um lado, a pastoral “normal” do Povo de Deus para defender, alimentar e fazer crescer a fé; por outro, uma dimensão missionária de primeiro anúncio e de evangelização para aqueles que não conhecem Jesus Cristo ou estão afastados da Igreja. O “Horizonte de Expectativas” nas Proposições Queremos aqui retomar com um pouco mais de detalhes, antes de nos deter sobre as Proposições, a compreensão perlucionária da antiga concepção de NE a partir do projeto histórico-eclesial do papa João Paulo II. Para a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, o Papa João Paulo II, diante de um mundo moderno hostil a Igreja e com o desejo de manter o regime de autoridade no qual o sistema romano sempre se apoiou, desenvolveu duas estratégias complementares com traços suscetíveis de serem identificados: a de compensação profética (5) e a da antecipação messiânica. Na análise do conceito de NE, nos interessa aqui a segunda estratégia. Na “antecipação messiânica” estava contido todo o “horizonte de expectativas” do Papa João Paulo II. Esta estratégia projeta em um futuro radicalmente transformado um mundo novo no qual poderia ser plenamente restituída a plausibilidade da mensagem da Igreja. Esta estratégia, segundo Léger, se cristalizou no conjunto abundante das mensagens pontifícias relativas à NE. A expressão foi formulada pela primeira vez por João Paulo II em um discurso para os bispos do CELAM, no Haiti, em 1983. Depois, em 1985, na “Carta dirigida a todos os jovens do mundo”, e nos discursos pronunciados aos jovens reunidos por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (Compostela-1989; Czestochowa-1991; Denver-1993; Manila-1995) oferecem exemplos numerosos da essência do projeto: um apelo a uma mobilização católica (ou “concentração católica”), única capaz de servir de alavanca a uma regeneração global do mundo moderno. Esta visão encontra sua expressão mais acabada na Carta Apostólica “Quando se avizinha o terceiro milênio da era cristã” (Tertio Millenio Adveniente), de 1994 (6). Esta carta situava aquele momento presente em que se impunha a recristianização de um “Ocidente que se desliga de suas raízes cristãs” e, por este motivo, tornava-se “terreno de missão sob a forma dos diferentes areópagos” que são “as vastas áreas da civilização contemporânea e da cultura, da política e da economia” (7). Em outras palavras, NE era outro nome para Cristandade. O pressuposto era o mesmo dos líderes católicos da reação contrarrevolucionária do séc. XVIII: não há verdadeira civilização nem autêntica convivência humana fora da Cristandade, fora de uma sociedade onde a Igreja dite as regras e valores do viver social (8). Pois bem, as Proposições parecem caminhar por outro princípio que não o da Cristandade. Neste sentido, a concepção de NE (9) que nasce dos Padres Sinodais está em descontinuidade com a concepção anterior. Isto porque o “espaço de experiência” que, de certo modo, informa o projeto futuro contido neste documento são as comemorações dos 50 anos do Concílio Vaticano II e os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica. Antes de tudo, precisamos falar alguma coisa sobre o gênero literário das Proposições (10). Como o próprio termo diz, é uma ação de “pôr diante dos olhos”, de propor a exame ou deliberação. No caso, os bispos “colocam diante dos olhos” do papa o que pensam sobre a NE. De fato, logo na Introdução, fica claro que o gênero deste texto é o de municiar o papa com os conteúdos para uma futura publicação da Exortação Apostólica Pós-Sinodal: “(...) os padres sinodais consideram importantes as seguintes Proposições. (...) pedem também humildemente ao Santo Padre que considere a conveniência de um documento sobre a transmissão da fé cristã através de uma Nova Evangelização” (Prop. 1). Na percepção dos Padres Sinodais, o princípio que deve orientar toda a proposta de NE é a Santíssima Trindade. Daí que valoriza muito a comunhão eclesial e a vida em comunidade, seja ela diocesana, paroquial, pequenas comunidades, religiosas e carismáticas. Na Prop. 4 temos: “A Igreja e sua missão evangelizadora têm a sua origem e fonte na Santíssima Trindade de acordo com o plano do Pai, a obra do Filho, que culminou em sua morte e gloriosa ressurreição, e da missão do Espírito Santo. A Igreja continua a missão do amor de Deus em nosso mundo. (...) A Nova Evangelização reconhece a primazia da graça de Deus e de como, pelo batismo, vem viver em Cristo. Esta ênfase na filiação divina deve levar os batizados a uma vida de fé que manifesta claramente sua identidade cristã em todos os aspectos de sua atividade pessoal”. Daí, a consequente necessidade da Igreja ser missionária (11): “Deus, nosso Salvador, quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1 Tm 2, 4). Uma vez que a Igreja acredita neste plano divino de salvação universal, ela deve ser missionária (cf. Evangelii nuntiandi, 14, Catecismo da Igreja Católica, 851)”. (Prop. 6) Em sintonia com a eclesiologia do Concílio Vaticano II, a “Igreja local”, a “comunidade eclesial diocesana” é o lugar por excelência da NE: “A igreja particular, liderada pelo bispo, auxiliada por padres e diáconos, com a colaboração das pessoas consagradas e os leigos, é o sujeito da Nova Evangelização. É assim porque, em cada lugar, a Igreja particular é a manifestação concreta da Igreja de Cristo e, como tal, inicia, coordena e realiza as ações pastorais através da qual a Nova Evangelização se dará. (...) as dioceses são ‘uma porção do povo de Deus sob o cuidado pastoral do bispo, ajudado por seu presbitério’ (Christus Dominus, 11)”. (Prop.41 e 43) O documento apresenta uma compreensão do mundo, lugar por excelência da atividade missionária, bem diferente daquela empreendida pelo papa João Paulo II. O mundo não precisa de conversão, mas de testemunhas que vivam uma fé autêntica. Por isso, há um abandono, pelo menos neste documento, das estratégias de compensação profética e de antecipação messiânica. Há o desejo de a Igreja retomar sua “autoridade” não pela imposição de uma “norma” (como era a prática em épocas de Cristandade), mas pelo sentido dado por seus membros. Assim, temos: Somos cristãos vivendo em um mundo secularizado. Considerando que o mundo é e continua sendo a criação de Deus, a secularização se insere na esfera da cultura humana. Como cristãos, não podemos ficar indiferentes ao processo de secularização. Estamos, de fato, em uma situação semelhante à dos primeiros cristãos e, como tal, devemos ver isso tanto como desafio e possibilidade. Vivemos neste mundo, mas não somos deste mundo (cf. Jo 15,19;17,11-16). O mundo é criação de Deus e manifesta seu amor. Em e através de Jesus Cristo, recebemos a salvação de Deus e somos capazes de discernir o progresso de sua criação. Jesus abre as portas para nós de novo, de modo que, sem medo, possamos abraçar amorosamente as feridas da Igreja e do mundo (cf. Bento XVI) (Prop. 8). Na Prop. 13, os padres sinodais reconhecem que, para proclamar a Boa Nova nos mais diferentes contextos do mundo, marcados pela globalização e secularismo, a Igreja se vê diante de desafios também diferentes: ora diante de perseguições, ora diante de indiferenças, ora diante de interferências, restrições ou de assédios. Por isso, o “Evangelho oferece uma visão da vida e do mundo que não pode ser imposto, mas apenas proposto, como a boa notícia do amor gratuito de Deus e da paz. A mensagem de verdade e de beleza pode ajudar as pessoas a fugir da solidão e da falta de sentido onde muitas vezes estão relegadas nas condições da sociedade pós-moderna. Portanto, os crentes devem se esforçar para mostrar ao mundo o esplendor de uma humanidade baseada no mistério de Cristo”. De uma estratégia de “compensação profética”, os bispos sinodais propõem a “reconciliação” como a estratégia desta “nova” NE: “Em um mundo que está cindido por guerras e violência, um mundo ferido por um individualismo muito difundido, que separa os seres humanos entre si, e coloca um contra o outro, a Igreja deve desempenhar o seu ministério de reconciliação de maneira calma e firme. (...) a Igreja tem que fazer um esforço para derrubar os muros que separam os seres humanos. (...) ela tem que pregar a novidade do Evangelho salvífico de Nosso Senhor, que veio para nos libertar de nossos pecados e para nos convidar a construir a paz, harmonia e justiça entre os povos”. (Prop. 14) Por outro lado, os padres sinodais sabem que para uma NE neste mundo é necessário fazer uma opção prévia e radical: a opção pelos pobres. A crise econômica atual afeta seriamente os pobres, diz o texto. Há novos rostos pobres e da pobreza: famintos, sem-teto, doentes e abandonados, viciados em drogas, os migrantes e os marginalizados, refugiados políticos e ambientais, os povos indígenas. “A opção preferencial pelos pobres nos leva a buscar os pobres e para trabalhar em seu nome, de modo que eles podem se sentir em casa na Igreja. São tanto destinatários como atores numa Nova Evangelização” (Prop. 31). O projeto propriamente dito de NE aparece na Prop.7: “Evangelização pode ser entendida em três aspectos. Em primeiro lugar, a evangelização ad gentes é o anúncio do Evangelho aos que não conhecem a Jesus Cristo. Em segundo lugar, ele também inclui o crescimento contínuo na fé, que é a vida ordinária da Igreja. Finalmente, a Nova Evangelização é dirigida especialmente para aqueles que se tornaram distantes da Igreja”. Para isso a Igreja precisa de uma “conversão pastoral”, a começar pelos próprios bispos. Sair de uma ação pastoral de manutenção (pôr um fim à Cristandade) para uma pastoral decididamente missionária é o desejo dos padres sinodais. Para isso, é necessário fazer “mudança nas estruturas”. Neste ponto, a contribuição dos bispos latino-americanos foi decisiva, pois esta proposição é quase que uma cópia literal do Documento de Aparecida: Muitos bispos falaram da necessidade de renovação na santidade em suas próprias vidas, se quiserem ser verdadeiros e efetivos agentes da Nova Evangelização. A nova evangelização requer a conversão pessoal e comunitária, novos métodos de evangelização e a renovação das estruturas pastorais, para ser capaz de passar de uma ação pastoral de manutenção para uma ação pastoral verdadeiramente missionária. A Nova Evangelização nos orienta para uma autêntica conversão pastoral que nos leva a atitudes e iniciativas que conduzem para avaliações e mudanças na dinâmica das estruturas pastorais que já não respondem às exigências evangélicas da época atual. (Prop. 22) Entre estas estruturas está aquela que mais carrega o peso da Cristandade: a paróquia. Mesmo sendo vista como “a presença primária da Igreja nos bairros, no lugar”, segundo as proposições 26 e 44, os padres sinodais desejam que a paróquia encontre maneiras adequadas para dar mais ênfase na evangelização, animando seus membros a serem agentes da NE, incluindo missões populares (prática típica do Brasil) e programas de renovação. E apelam para que elas, juntamente com suas “pequenas comunidades cristãs” (leia-se aqui “comunidades eclesiais de base”, termo várias vezes usados pelos bispos da África e da Ásia), devam ser “células vivas” e lugares para “promover o encontro pessoal e comunitário com Cristo, experimentar a riqueza da liturgia, para dar inicial e permanente formação cristã, e para educar todos os fiéis na fraternidade e na caridade, especialmente para com os pobres”. Para uma NE que renove as estruturas, é necessária uma Ação Pastoral Orgânica. Cada diocese como comunidade primária da missão da Igreja, deve animar e conduzir uma atividade pastoral renovada integrando a variedade de carismas, ministérios, estados de vida e recursos. Todas elas coordenadas dentro de um projeto orgânico missionário, a partir do diálogo e da cooperação de todos os membros da diocese: paróquias, pequenas comunidades cristãs, as comunidades educativas, comunidades de vida consagrada, associações, movimentos e fiéis individualmente. “Cada plano pastoral deve transmitir a verdadeira novidade do Evangelho, centrada em um encontro pessoal e vivo com Jesus”. (Prop. 42) No entanto, os bispos do Sínodo apostam ainda nos movimentos e nas “novas comunidades” eclesiais em função de seus ideais de santidade e de unidade, e “as incentiva a utilizar seus carismas em estreita colaboração com as dioceses e as comunidades paroquiais, que por sua vez, irão beneficiar o seu espírito missionário”. (Prop. 43) Conclusão De fato, as Proposições trazem um desejo contido vindo dos quatro cantos do mundo católico romano por uma Igreja mais crível. É plausível o “projeto futuro” da Igreja contido nelas? Parece-nos que o projeto de Igreja que nasce da Conferência de Aparecida é muito mais ousado, mas nestes anos fica evidente a pouca vontade política de implantá-la. A próxima tarefa é observar o quanto das mesmas estará plenamente contemplado na próxima Exortação Apostólica Pós-Sinodal de Bento XVI, além de todo o trabalho de implantação do projeto da NE pelo recém-criado Dicastério romano, conduzido por Dom Rino Fisichella. Enquanto isso, aqui no Brasil, continuemos trabalhando pela “conversão pastoral” da Igreja para que seja de fato “povo de Deus”. Notas 1. KOSSELECK, Heinhart. “História dos Conceitos e História Social” in Idem. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2011 (2ª reimpress.), p.103. 2. Durante a realização do evento e nas votações das Proposições, o número de Padres Sinodais ficou em torno de 255. 3. Neste grupo estavam presentes os latino-americanos de língua espanhola e portuguesa, africanos de língua portuguesa, timorenses e espanhóis. O acesso a estas informações só foi possível graças aos boletins quase que diários enviados pelo Pe. Luiz Alves de Lima, sdb, um dos peritos deste Sínodo. 4. Na “Teoria dos Atos de Fala”, amplamente estudados por J. L. Austin e utilizado por J. Habermas em sua “Teoria do Agir Comunicativo”, pelos atos locucionários o falante diz “algo”; pelos atos ilocucionários, o falante realiza uma ação “ao dizer” algo; e, enfim, pelos atos perlocucionários, o falante causa algo no mundo “pelo fato” de agir quando diz algo. Enquanto que para os atos ilocucionários o que é constitutivo é o “significado do enunciado”, para os atos perlocucionários o que é capital é a “intenção” do agente. Por isso é que Habermas só entende por agir comunicativo “as interações mediadas pela linguagem nas quais todos os participantes buscam atingir fins ilocucionários, e tão somente fins como esses. Ao contrário, considero agir estratégico mediado pela linguagem as interações em que ao menos um dos participantes pretende ocasionar com suas ações de fala efeitos perlocucionários em quem está diante dele”. (HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, vol. 1: Racionalidade da ação e Racionalização social, 2012, p.510). 5. Esta estratégia se baseia no seguinte raciocínio: “se a Igreja não é ouvida, não é porque seu discurso seja inadaptado, mas sim porque trata-se de um discurso profético que, por definição, está na contramão das tendências e expectativas da opinião pública”. Ou então no sofisma: “há uma recusa em ouvir os que têm razão. Ora, não sou ouvido; portanto, tenho razão...”. HERVIEU-LÉGER, Danièle. “O bispo, a Igreja e a modernidade” in LUNEAU, René & MICHEL, Patrick. Nem todos os caminhos levam a Roma: as mutações do catolicismo. Petrópolis: Vozes, 1999, pp.319-321. 6. Um pouco antes, em Santo Domingo, no discurso inaugural da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho (1992), João Paulo II assim se expressava sobre a NE: “A nova evangelização há de ser uma resposta integral, pronta, ágil, que fortaleça a fé católica nas suas verdades fundamentais, nas suas dimensões individuais, familiares e sociais” (SD, Discurso Inaugural, n. 11). Sobre os detalhes deste projeto cf. LIBANIO, João Batista. Igreja contemporânea: encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2000, pp. 153-184. 7. “(...) com as tumultuosas experiências do século XX, atribulado pela primeira e segunda guerra mundial, pela experiência dos campos de concentração e por massacres horrendos” (n.18), “(...) Com a queda dos grandes sistemas anticristãos no continente europeu — o nazismo primeiro e depois o comunismo —, impõe-se a tarefa urgente de oferecer de novo aos homens e mulheres da Europa a mensagem libertadora do Evangelho.” (n. 57), “O sucedido mostra que o mundo tem, mais que nunca, necessidade de purificação; precisa de conversão”. (n. 18) 8. MENOZZI, Daniele. A Igreja Católica e a secularização. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 15. 9. O termo “Nova Evangelização” e seus derivados “evangelizar”, “evangelizador”, “evangélico” aparecem 161 vezes ao longo do texto. Se acrescermos o termo “Evangelho” chegamos ao número de 193 citações. 10. O texto-final foi aprovado com 58 Proposições. Cada proposição recebeu, em média, uma votação bem expressiva: 230 placet, 15 non placet e 5 Abstenções. 11. Os termos missão(ões), missionário(a) aparecem 36 vezes ao longo do texto. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515715-as-proposicoes-do-sinodo-que-igreja-para-o-futuro

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A Teologia da Libertação e as igrejas asiáticas: uma verdadeira sinfonia

Discutir o futuro das Teologias da Libertação asiáticas foi o tema central da conferência do teólogo vietnamita Peter Phan na manhã desta quarta-feira, 10-10-2012, dentro da programação do Congresso Continental de Teologia. A reportagem é de Márcia Junges. Com um bom humor peculiar e esforçando-se para falar em espanhol e português, mas tendo que recorrer ao inglês constantemente, Phan argumentou que a Teologia da Libertação não está morta – longe disso. “Ela está viva, especialmente na Ásia”. Ele estabeleceu uma descrição ampla dos vínculos teológicos entre a vertente latino-americana e a asiática. Em seguida, ofereceu uma visão geral de exemplos representativos da Teologia da Libertaçãonesse continente. Finalmente, deu sugestões sobre como as teologias dos dois continentes podem continuar a se fertilizar e enriquecer. A Teologia da Libertação asiática não surgiu somente depois da Teologia da Libertação da América Latina na década de 1970, observou Phan. Um estudo de suas origens mostrou que essa vertente teológica não surgiu do nada, como uma criatio ex nihilo, mas como resultado do contexto da teologia latino-americana, e isso deveria ser visto como continuação do projeto antigo de fazer uma fé cristã genuinamente asiática. Contudo, as tendências liberacionistas asiáticas não são clones dos seus pares latino-americanos. “Naturalmente, temos muitas coisas em comum com a América Latina, mas não somos clones de ninguém”, frisou Phan. “Somos gêmeos, na verdade, irmãos. Nos parecemos porque começamos com a mesma pergunta: o que o contexto de vida no qual estamos inseridos pode nos ensinar para sermos cristãos?” Uma teologia “glocal” A Teologia da Libertação pode ser considerada a primeira teologia global verdadeira. Ao mesmo tempo, ela é uma teologia verdadeiramente local. Podemos falar, então, de uma teologia glocal, neologismo que une a característica local e universal concomitantemente. Outro aspecto importante a ser debatido é que aTeologia da Libertação é seguida inclusive por não cristãos, como budistas e hinduístas. Na Ásia a Teologia da Libertação é uma verdadeira sinfonia, pois é composta de muitas vozes diferentes. Peter Phan mencionou o exemplo dos dalits, os intocáveis, pessoas que estão fora do sistema de castas da Índia, que são indignos de comporem qualquer uma delas. Pensando em sua vida, no contexto econômico, social e político no qual estão inseridos, surgiu a Teologia da Libertação Dalit, que não busca inculturar a fé cristã, mas criar categorias teológicas e filosóficas hindus exclusivas. “A Teologia da Libertação Dalit privilegia a situação desse povo”, mencionou. A opressão sistemática à qual os dalits são submetidos é o objeto central dessa corrente teológica. Deus servo Os cristãos estão habituados a chamar a Deus de Senhor. Para os dalits, esse título não é justo e nem bom. Deus não é Senhor, ele é servo. Assim como eles, Deus é um servo que cozinha, que limpa e realiza serviços braçais. Peter Phan explicou que a partir disso foi trocada a linguagem teológica junto a esse segmento da sociedade indiana. Os dalits não cantam ao Senhor, mas ao servo, porque essa é a experiência que eles vivenciam. “Eles são sempre servos, e assim não tem dignidade humana, são escravos. O seu Deus, então, é sempre escravo e servo. Essa é uma intuição profunda do cotidiano dos dalits”. Peter Phan relembra a ideia de Arvind P. Nirmal, que fala, inclusive, em Cristo como um dalit. Nessa lógica, ele insiste que os outros cristãos também são dalits cristãos. Mas quem é o Cristo? Jesus Cristo é um dalit, mesmo que fosse judeu. Em segundo lugar, sua humanidade e divindade devem ser entendidas em termos de sua “dalitnidade”. Deus é um dalit. É um espírito consolador de vida, e não transcendente. A Igreja não é uma organização, instituição, mas uma comunidade em solidariedade a todos aqueles que sofrem como um dalit, ponderou Phan. Hemenêuticas pós-colonial A Teologia Feminista asiática e várias de suas expoentes foram mencionadas na conferência de Phan: Marianne Katoppo, Chung Hyun Kyung, Gabriele Dietrich, Aruna Gnanadason, Virginia Fabella, Mary John Manazan, Sun Ai Park, Vandana Mataji, Kwok Pui-Lan. A partir da experiência de múltiplas opressões é que essas teólogas feministas criam uma teologia totalmente liberadora daquela de recorte clássico. Outras Teologias da Libertação na Ásia podem ser encontradas nas Filipinas, com a Teologia da Resistência, bem como na Índia e em Taiwan. Quanto ao futuro dessas teologias asiáticas, Phan mencionou a necessidade de se fazer uma nova interpretação bíblica, composta por hermenêuticas intertextuais. Ele sugeriu que uma página da Bíblia fosse lida seguida por um texto hindu. “Com isso abre-se uma visão totalmente diferente. São modos diversos de conceber Deus, os humanos, o mundo, a teologia, a moral, a ética. Tratam-se de leituras intertextuais frente a textos não cristãos”. Para Phan, os não cristãos também possuem uma revelação. Um Deus que não está presente em todas as religiões não é Deus, argumenta. “É preciso uma hermenêutica pós-colonial. Vivemos um neocolonialismo de mercado”. Quem é Pether Phan? Peter C. Phan é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e doutor em Filosofia pela Universidade de Londres, instituição na qual também obteve doutorado em Teologia Pastoral. Publicou diversas obras sobre vários aspectos da teologia, traduzidos em italiano, alemão, francês, espanhol, polonês, chinês, japonês e vietnamita. É o atual titular da Cátedra Ignacio Ellacuría de Pensamento Social Católico da Universidade de Georgetown. Além disso, já lecionou na Universidade de Dallas, na Catholic University of America de Washington e no Union Theological Seminary de Nova Iorque, dentre outros. Em 2010 foi homenageado com o prêmio John Murray Courtney, a mais alta honraria concedida pela Sociedade Teológica Católica da América, por seu “extraordinário e distinto êxito em Teologia”. Na tarde de quarta-feira, 10-10-2012, Peter Phan concedeu uma entrevista exclusiva à IHU On-Line, pessoalmente. Em breve o material será publicado na revista IHU On-Line, em www.ihuonline.unisinos.br Texto: Márcia Junges Foto: Wagner http://www.unisinos.br/eventos/congresso-de-teologia/en/congress/noticias/219-a-teologia-da-libertacao-e-as-igrejas-asiaticas-uma-verdadeira-sinfonia

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Congresso Continental de Teologia, algo mais do que um congresso

Quinta, 01 de novembro de 2012 Para Cecilio de Lora, o Congresso Continental de Teologia, realizado na Unisinos, contou com “aproximações bíblicas e hermenêuticas; sistemáticas e metodológicas; a partir de perspectivas sociais e também científicas, por parte de teólogos sacerdotes e leigos, homens e mulheres, católicos e protestantes”. Seu artigo é publicado no sítio Ameríndia. A tradução é do Cepat. Eis o artigo. De 7 a 11 de outubro deste ano, 2012, aconteceu na Unisinos, em São Leopoldo - RS, Brasil, o Congresso Continental de Teologia, aos 50 anos do Vaticano II e 40 anos da teologia latino-americana e caribenha. A organização, precisa e delicada, esteve sob a responsabilidade da Ameríndia e de outras agências latino-americanas, com a direção geral de Agenor Brighenti, o bom teólogo brasileiro, hoje à frente da Ameríndia. Esse Congresso veio sendo preparado há três anos, a partir dos Congressos Regionais na extensão geográfica americana e caribenha. Não foi algo improvisado, mas maduramente refletido e minuciosamente preparado. Foi uma alegria coincidir com as datas inaugurais do Sínodo Romano para uma Nova Evangelização, no início do Ano da Fé. Um sinal de comunhão eclesial, em que pastores e rebanhos buscam apaixonadamente a realização do Reino de Deus, a paixão de Jesus. No Congresso estiveram presentes 750 participantes, leigos e leigas, religiosas e religiosos, sacerdotes e bispos (17 provenientes do México, Chile e Brasil), católicos e protestantes de diversas confissões (sobretudo anglicanos), latino-americanos, caribenhos, europeus e até asiáticos. Esta diversidade, alegre e harmoniosa, foi uma manifestação, espontânea e prazerosa, da autêntica catolicidade. Para além do Congresso, esta assembleia cristã foi um verdadeiro Kairós, ou seja, um momento de graça, de comunhão, de esperança... Antes de resenhar outros momentos importantes do encontro, convém ressaltar esta impressão profunda pela qual todos nós saímos do encontro. No ambiente, ressoavam as últimas palavras, sinceras e dolorosas, do cardeal Martini, antes de morrer no dia primeiro de setembro (2012), sobre a necessidade de superar o distanciamento da Igreja cansada... 200 anos atrás da realidade... Porém, também as de Aparecida: “A Igreja necessita de forte impulso que a impeça de se instalar na comodidade, no cansaço e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do Continente. Necessitamos que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo. Esperamos um novo Pentecostes que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente; esperamos uma vinda do Espírito que renove nossa alegria e nossa esperança” (DA 362). Esperança e alegria poderiam resumir adequadamente o que foi vivido na Unisinos. Com efeito, em todos os seus aspectos, esperança e alegria marcaram o Congresso: na participação entusiástica de todos e todas em todos os eventos que começava com a primeira Eucaristia do dia, às 6h30min, até a última Conferência da noite, que se iniciava às 20h00s; na liturgia inicial de cada dia, de preparação criativa e delicada, estética e religiosamente estimulantes; nas relações cordiais, sem distinções – alguns destacavam a horizontalidade e outros a liberdade -, verdadeiramente comunitárias no melhor dos sentidos evangélicos... Tinha-se a impressão de que o Congresso era ponto de chegada de buscas múltiplas e plurais, como também ponto de partida para uma nova tarefa teológica, pastoral... a partir de Cristo, como nos recomendou Bento XVI em sua primeira encíclica, e que vigorosamente a nossa Igreja latino-americana e caribenha acolheu (DA 12). Tudo isso, fiéis ao Espírito que sopra hoje de maneira forte e nova. Vários conferencistas sublinharam a importância, teológica e vital, de uma pneumatologia que também parta de pressupostos culturais, espirituais e doutrinais de nossas Igrejas latino-americanas. Os conteúdos foram profundos, enriquecedores, bem articulados. Na sessão inaugural do domingo, dia 7, falaram: Agenor Brighenti, grande inspirador de todo o caminhar antes e durante o Congresso, e o bispo brasileiro dom Demétrio Valentini que durante todo o tempo acompanhou os trabalhos, sendo ele próprio responsável de um seminário sobre “Teologia e renovação eclesial”. A segunda-feira, dia 8, esteve centrada nas “Novas interpelações e perguntas”, a terça-feira, dia 9, nas “Hermenêuticas cristãs”; a quarta-feira, dia 10, na “Práxis e mística”; e na quinta-feira, dia 11, ocorreu a jornada conclusiva, com as “Prospectivas para a teologia”. Ao longo destes dias, houve a apresentação de Conferências gerais para todo o Congresso, pela manhã e ao fim do dia. Além disso, aconteceram vinte Oficinas, continuadas durante três dias, sobre diversos temas relacionados com o desenvolvimento da teologia latino-americana em diversas perspectivas, muito ricas, animadas por especialistas bem conhecidos. Na continuação, alguns painéis abertos, de interesses atuais. Esta logística contou com delicada organização, livre participação e enriquecimentos mútuos. Mais adiante, todos os materiais do Congresso serão publicados, primeiramente de forma virtual e depois impressa. Por isso, não é o caso, nesse momento, apresentar os ricos e variados conteúdos, algo impossível. Cabe, sim, destacar que houve aproximações bíblicas e hermenêuticas; sistemáticas e metodológicas; a partir de perspectivas sociais e também científicas, por parte de teólogos sacerdotes e leigos, homens e mulheres, católicos e protestantes... Uma gama variada, muito rica, da qual parece importante ressaltar, aqui, a figura de Gustavo Gutiérrez. Gustavo – hoje frei Gustavo Gutiérrez – é uma pessoa bem conhecida, cuja presença era esperada com interesse e emoção. E em agradecimento, é claro, pois os quarenta anos de sua obra “Teologia da Libertação” é um ponto de referência importante para o Congresso. Porém, estando disposto a viajar, uma queda lhe impediu de vir (“os acidentes são sempre acidentais”, dizia-nos com bom humor ao começar sua exposição). Esta palestra aconteceu por videoconferência. Sua aparição na tela arrancou longos aplausos, intermináveis e emocionantes, com toda a assembleia em pé. Não é por acaso que é considerado o pai da teologia da libertação. Com seu estilo habitual, profundo, comprometido e até em ocasiões agudamente irônico, Gustavo sublinhou a insubstituível centralidade do pobre no processo da teologia da libertação. Quando lhe perguntaram, em nome dos jovens, o que se podia esperar deles no desenvolvimento desta teologia, Gustavo respondeu quase lapidarmente “vigor, rigor e proximidade com o pobre”. Gustavo, enfim, trouxe para a assembleia a lembrança emocionada de José Comblin (“o professor”) e de Ronaldo Muñoz, recentemente falecido, que tanto contribuíram por meio da vida e obra para o desenvolvimento da teologia da libertação. Além da cortesia, parece também importante destacar a presença e contribuição de Andrés Torres Queiruga, teólogo vindo expressamente da Espanha para falar no Congresso, convidado por seus organizadores. Sua primeira palestra teve como título “Teologia e novos paradigmas”, sendo enriquecedora, trazendo novos pontos de vista ao nosso fazer teológico. Na segunda conferência abordou o tema da “Teologia latino-americana e teologia europeia: interpelações mútuas”, questão não isenta de sérias confrontações interculturais. O espírito acadêmico e a personalidade próxima e cheia de simpatia, do professor emérito de Santiago de Compostela, foram muito apreciados. Ainda ressoa sua expressão mística e profética: Deus nem quer, nem sabe, nem pode fazer outra coisa que amar. A teologia da libertação vive e goza de boa saúde. Antes de tudo, foi importante e gratificante o encontro de três gerações de teólogos da libertação, a primeira das quais, liderada por Gustavo, era generosa e carinhosamente apelidada de dinossauros. Aqui, não são apresentadas listas que podem ser incompletas e, portanto, perigosas. Contudo, entre todos e todas – um bom grupo de teólogas, leigas e religiosas – houve um rico e contínuo diálogo. Particularmente, foi importante a reunião de estudantes de teologia, para firmar acordos e compromissos que, posteriormente, foram compartilhados com a plenária, sendo calorosamente acolhidos e apoiados. A teologia da libertação continuará enquanto houver pobres e pobreza. O título da Mensagem Final, “Perto de Deus... perto dos pobres”, tomado quase literalmente de Aparecida (392), destaca esta centralidade bíblica e teológica, já sublinhada em Medellín (1968). Além disso, esta teologia se abre criativa e esperançadamente aos novos horizontes, inesquecíveis hoje em dia: o da ecologia, o da justiça e a paz, num mundo que globaliza a pobreza, o da mulher, o da teologia indígena e afrodescendente... Enfim, sonhou-se com uma Igreja como João XXIII quis e configurou o Concílio: Luz dos Povos, Povo de Deus, em comunhão com as tristezas e alegrias de nossos povos..., tudo isso matizado por nossas Conferências Episcopais (Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida), a última das quais nos convida, mais uma vez, a um novo Pentecostes, que renove nossa alegria e nossa esperança. Isto, o Congresso Continental da Unisinos quis e viveu. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515091-congresso-continental-de-teologia-algo-a-mais-do-que-um-congresso