Visualizações desde 2005

quarta-feira, 11 de maio de 2011

MATER ET MAGISTRA – 50 ANOS - 15 DE MAIO DE 1961

– Entrevista para o IHU

• Em 2011, completam-se os 50 anos de um dos principais documentos oficiais da Igreja sobre a questão social, a encíclica “Mater et Magistra” de João XXIII. A que conjuntura mundial o Papa buscava se dirigir com esse texto, especificamente nesse momento?

O subtítulo da MM apontava como horizonte de sua conjuntura “a recente evolução da questão social”, tomando como ponto de partida a mensagem de Pio XII, na festa de Pentecostes de 1941, por ocasião do cinquentésimo aniversário da Rerum Novarum de Leão XIII .
Para os vinte anos que se seguiram, João XXIII assinalou mudanças em três diferentes áreas:
1. No campo científico, técnico e econômico: “a descoberta da energia nuclear, as suas primeiras aplicações para fins bélicos e depois a sua utilização cada vez maior para fins pacíficos; as possibilidades ilimitadas abertas pela química aos produtos sintéticos; a difusão da automatização e da automação no setor industrial e no dos serviços de utilidade geral; a modernização do setor agrícola; o quase desaparecimento das distâncias nas comunicações, sobretudo por causa do rádio e da televisão; a rapidez crescente dos transportes; e o princípio da conquista dos espaços interplanetários” (MM 47).
2. No campo social: “a difusão dos seguros sociais e, nalgumas Nações, economicamente desenvolvidas, o estabelecimento de sistemas de previdência social; a formação e extensão, nos movimentos sindicais, duma atitude de responsabilidade perante os maiores problemas econômicos e sociais; a elevação progressiva da instrução de base; um bem-estar cada vez mais generalizado; a crescente mobilidade social e a conseqüente remoção das barreiras entre as classes; o interesse do homem de cultura média pelos acontecimentos diários de repercussão mundial. Além disso, o aumento da eficiência dos sistemas econômicos, em cada vez maior número de Países, evidencia mais ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre o setor agrícola, por um lado, e o setor da indústria e dos serviços de utilidade geral, por outro; e entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas menos desenvolvidas no interior de cada País. No plano internacional são mais melindrosos ainda, os desequilíbrios econômicos e sociais entre países economicamente desenvolvidos e Países em via de desenvolvimento” (MM 48).
3. No campo político: “em muitos Países, a participação na vida pública dum número cada vez maior de cidadãos de diversas condições sociais: a difusão e a penetração da atividade dos poderes públicos no campo econômico e social. Acresce, além disso, no plano internacional, o declínio dos regimes coloniais e a conquista da independência política conseguida pelos povos da Ásia e da África; a multiplicação e a complexidade das relações das relações entre os povos e o aumento da sua interdependência; a criação e o desenvolvimento de uma rede cada vez mais estreita de organismos de projeção mundial, com tendência a inspirar-se em critérios supranacionais: organismos de finalidades econômicas, sociais, culturais e políticas” (MM 49).

Por detrás de cada um dos campos mencionados, encontravam-se eventos, alguns dramáticos, outros espetaculares: na área técnica e científica, a entrada do mundo na era nuclear, com o holocausto da população civil de Hiroshima e Nagasaki, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945; e sua entrada na era espacial, com o lançamento, em 1957, do Sputnik, o primeiro satélite artificial da terra, e a 12 de abril de 1961, do primeiro homem ao espaço, o cosmonauta soviético, Yuri Gagarin, a bordo da nave Vostok 1.
No campo social, o Papa apontava o papel crescente dos sindicatos na melhoria das condições de trabalho e da previdência social, mas também o desequilíbrio entre um setor agrícola “atrasado” frente à rápida “modernização” da indústria e dos serviços.
Na esfera internacional, acenava já para as desigualdades e tensões entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos que estariam no centro da encíclica Populorum Progressio (1967) do seu sucessor, Paulo VI.

No campo político, apontava o abalo dos colonialismos, com a sucessão das independências dos países colonizados pelo império britânico, (Índia e Paquistão, 1947; Sudão, 1956, Gana, 1957, Nigéria, 1960), holandês (Indonésia, 1949), italiano (Líbia, 1951, Somália italiana, 1960), francês (Vietnã, 1954; Tunísia e Marrocos, 1956); espanhol (Marrocos espanhol, 1956). A conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, deu vida ao novo protagonismo internacional de muitas ex-colônias da Ásia e África agrupadas no Movimento dos Países não alinhados, consubstanciando seu desejo de escapar do círculo de ferro da guerra fria que opunha Estados Unidos e União Soviética. O ano de 1960 foi marcado pela tumultuada independência do Congo belga e das colônias francesas africanas (Camarões, Togo, Senegal, Madagascar, Benin, Niger, Burkina Fasso, Costa do Marfim, Chade, Congo Brazaville, Gabão, Mali, Mauritânia), com exceção da Argélia que só foi liberada, após sangrenta guerra que durou de 1954 a 1962. Do ponto de vista eclesial, João XXIII respondeu ao movimento de descolonização africana, de forma rápida e corajosa, substituindo os arcebispos e bispos nomeados dentre os missionários franceses, belgas, ingleses, por uma centena de jovens presbíteros locais, muitos deles apenas entrados em sua terceira década de vida. Ao serem substituídos por bispos africanos, alguns desses bispos missionários estrangeiros na África vieram parar no Brasil, como Mons. José Florisberto Cornelis, monge beneditino belga, arcebispo de Lubumbashi (Elisabethville no Katanga congolês), e que foi acolhido como auxiliar de Salvador na Bahia e, posteriormente, como bispo de Alagoinhas, BA (1974-1986) e Mons. Gérard Milleville, francês, arcebispo de Conakry (1954-1962), na República da Guiné, recebido por Dom Delgado, como se auxiliar, em Fortaleza (CE), em 1964.
Em meio à euforia das independências, a Encíclica já advertia para a sombra insidiosa do neo-colonialismo, sob o disfarce de cooperação técnica e financeira e de ajuda ao desenvolvimento:
“Onde quer que isto se verifique, deve-se declarar, explicitamente, que estamos diante de uma nova forma de colonialismo, a qual, por mais habilmente que se disfarce, não deixará de ser menos dominadora que a antiga, que muitos povos deixaram recentemente. E essa nova forma prejudicaria as relações internacionais, constituindo ameaça e perigo para a paz mundial” (MM 172).
João XXIII prega, ao contrário, uma nova postura de cooperação internacional desinteressada e solidária.


• Quais foram as grandes novidades do documento – em termos eclesiais, econômicos e sociais – e, analisando os percursos históricos desde então, quais foram as suas limitações?

Em termos eclesiais, destacamos três novidades:
- A Igreja apresenta-se, assim o sublinha o próprio título da Encíclica, como Mater et Magistra, Mãe e Mestre. A ênfase, entretanto, recai sobre sua dimensão de Mãe, que mais anima do que reprova, mais corrige do que condena, mais ama do que recrimina. Insiste-se na justiça, mas acompanhada de misericórdia, e faz-se apelo às reservas de altruísmo, bondade e solidariedade presentes nos seres humanos e mesmo nas Nações, contrariando o mote corrente, de corte exclusivista e egoísta de que “Nações não têm amigos, mas só interesses”.
- Antecipa o que será a marca registrada de sua encíclica de dois anos depois, a Pacem in Terris, em que, por primeira vez, um documento pontifício é endereçado não apenas ao “episcopado, ao clero e aos fieis”, mas “a todos os homens de boa vontade”. Dirigindo-se João XXIII a grande multidão de fieis reunidos na Praça São Pedro, no dia 14 de maio de 1961, às vésperas do dia em que deveria ser proclamada a Encíclica, ele deixa escapar quais eram, segundo seu coração, os destinatários da mesma:
“Queremos confessar-vos que o nosso plano era, na verdade, oferecer-vos e a toda a Igreja Católica, justamente no dia do faustíssimo transcurso dos 70 anos da Rerum Novarum – 1891 – 15 de maio – 1961 – este terceiro documento de valor universal, em forma de Carta Encíclica: ampla, solene. Temos a alegria de vos assegurar que a promessa está mantida: a Encíclica está pronta. Mas a solicitude de fazê-la chegar a todos os que acreditam em Cristo e a todas as almas retas espalhadas pelo mundo (grifo nosso), à mesma hora, no texto oficial latino e nas várias línguas faladas, Nos aconselha a retardar um pouco a entrega do texto” .
A preocupação de que texto chegasse, ao mesmo tempo e em todo o mundo, nas diversas línguas, em não apenas em latim, fez com que a Encíclica só fosse divulgada dois meses depois em 15 de julho de 1961. Essa preocupação do Papa, que ele chamou de “solicitude”, demonstra cabalmente que sua Carta Encíclica estava dirigida não tanto aos estreitos círculos eclesiásticos, que presumivelmente podiam ler e entender o latim, mas aos cristãos comuns e, para além das fronteiras da Igreja e dos crentes, a “todas as almas retas, espalhadas pelo mundo”.

- Ao apontar os trabalhadores e os leigos em geral como protagonistas da ação pela transformação das estruturas injustas na esfera econômica e social, o Papa rompe o círculo estreito do mundo eclesiástico. Afirma que a construção de um mundo mais justo é tarefa de todas as pessoas e também das instituições civis nacionais e internacionais, dos Estados e dos sindicatos. É neste sentido que se deve compreender o inusitado apoio oferecido, num documento pontifício, a duas organizações internacionais, a Organização Internacional do Trabalho, a OIT e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, a FAO .
Sobre a OIT, assim se expressa o Papa:
“Nem podemos aqui deixar de dirigir nossas homenagens e manifestar nossa estima à Organização Internacional do Trabalho. Há anos ela vem trabalhando, de maneira inteligente e eficaz, para implantar em todo o mundo uma ordem econômica e social conforme as normas de justiça e de humanidade, na qual os legítimos direitos dos trabalhadores sejam reconhecidos e respeitados” (MM 103).
Acerca da FAO declara João XXIII:
“Não podemos deixar de manifestar aqui, a nossa especial estima às iniciativas da instituição conhecida abreviadamente por FAO, que se ocupa do problema da alimentação dos povos e do fomento da agricultura. Com efeito, esta organização se propõe, especialmente, apoiar as relações mútuas dos povos, promover a modernização da agricultura nos países economicamente menos desenvolvidos e, enfim, ajudar os povos vítimas das penúrias da subalimentação” (MM 156) .

- Num plano mais delicado, a MM, aborda a cooperação dos católicos, na construção de um mundo mais justo, com pessoas de outros credos e, ainda, com os que declaram agnósticos ou ateus - leia-se, nas entrelinhas, pessoas engajadas em movimentos sociais e políticos de corte socialista. Naquele momento, era vivo o debate na Itália acerca de uma ”apertura alla sinistra”, “abertura à esquerda”, que propugnava uma aliança entre a Democracia Cristã e o Partido Socialista. No Brasil, era grande a tensão da hierarquia com a JUC (Juventude Universitária Católica), por causa de sua aliança com estudantes de outras forças de esquerda, tendo em vista a conquista nas eleições para a direção da União Nacional de Estudantes (UNE).
Sobre o tema, assim se exprime a Encíclica:
“Os católicos no exercício de suas atividades econômicas e sociais, não raro se relacionam com pessoas que têm uma concepção de vida diferente. Nessas ocasiões, eles devem ter todo o cuidado em permanecer sempre coerentes consigo mesmos, sem admitir concessões que representem qualquer prejuízo para a integridade da religião ou da moral. Por outro lado, mostrem-se solícitos em acolher com equidade e boa vontade, o parecer dos outros, sem referir tudo aos próprios interesses, e estejam prontos a colaborar com lealdade e união de forças (grifo nosso), no que for bom por sua natureza ou redutível ao bem” (MM 239).
A questão é retomada de maneira mais explícita e aberta na Pacem in Terris (157-160), afirmando o dever de os católicos se empenharem na busca da justiça e da paz, tendo para tanto que cooperar com pessoas com outras concepções de vida, militando nos mais diversos espectros políticos:
“A aplicação delas (linhas doutrinais) oferece, por conseguinte, aos católicos vasto campo de colaboração tanto com cristãos separados desta Sé Apostólica, como com pessoas sem nenhuma fé cristã, nas quais, no entanto, está presente a luza da razão e operante a honradez natureza…” (PT 157).
Prossegue a Encíclica com a distinção que se mostrou cada vez acertada e liberadora. O Papa propõe que se distinga o erro, da pessoa que erra e, sobretudo, os movimentos sociais e sua evolução histórica das ideologias que os inspiraram:
“158. Não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa nem perde nunca a dignidade do ser humano e, portanto, sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade. Nem lhe faltam nunca neste intuito os auxílios da Divina Providência. Quem, num certo momento de sua vida, se encontra privado da luz da fé ou tenha aderido a opiniões errôneas, pode depois de iluminado pela divina luz, abraçar a verdade. Os encontros nos vários setores da ordem temporal, entre católicos e pessoas que não têm fé em Cristo ou têm-na de modo errôneo, podem ser para estes ocasião ou estímulo, de chegarem à verdade.
159. Além disso, cumpre não identificar falsas idéias filosofias sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem, com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas idéias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquela que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto é suscetível de alterações profundas. De resto, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos, dignos de aprovação.
160. Pode, por conseguinte, acontecer que encontros de ordem prática, considerados até então inúteis, possam vir a ser amanhã, verdadeiramente frutuosos. Decidir se já chegou tal momento ou não, e estabelecer em que modos e graus se hão de conjugar esforços na demanda de objetivos econômicos, sociais, culturais, políticos, que se revelem desejáveis e úteis, para o bem comum, são problemas que só pode resolver a virtude da prudência, moderadora de todas as virtudes, que regem a vida individual e social. No que se refere aos católicos, compete tal decisão, em primeiro lugar, aos que ocupam cargos responsabilidade nos setores específicos da convivência, em que tais problemas ocorrem, sempre, contudo, de acordo com os princípios do direito natural, com a doutrina social da Igreja e as diretrizes da autoridade eclesiástica” (PT 158-160).

Em termos econômicos e sociais, a novidade da MM foi trazer para o horizonte da questão social, até então, praticamente identificada com a questão operária, os graves problemas do setor agrícola e dos trabalhadores do campo; o grito dos que passam fome, a dificuldade do acesso à terra para os que nela trabalham, os desequilíbrios entre a agricultura, a indústria e os serviços e ainda as injustas disparidades entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, vistas como grave ameaça à paz mundial. O tema será amplamente retomado e desenvolvido seis anos depois por Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio, expresso de maneira lapidar na frase tantas vezes repetida: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” .

Levantando-se a questão das limitações da encíclica, vistas a partir de hoje, a mais flagrante talvez, seja sua posição no campo da demografia e da família e na questão do meio ambiente.
Ao tratar do primeiro tema, a Encíclica minimiza o desequilíbrio entre o crescimento da população e os meios de subsistência, dizendo:
“A bem dizer, no plano mundial a relação entre o aumento demográfico e os meios de subsistência não cria graves dificuldades, seja no momento, seja em um futuro próximo” (MM 188).

A Encíclica apostava que o progresso científico e técnico seria capaz de cobrir a demanda por alimentos e outros bens por parte de uma crescente população mundial. Aposta errônea, pois hoje mais de um bilhão de pessoas segue padecendo de fome crônica, embora não fosse de todo disparatada sua previsão. Com efeito, os rendimentos agrícolas mais que triplicaram em muitos lugares, com a extensão da irrigação, o uso de sementes melhoradas, de técnicas de correção e conservação do solo, utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas, aplicação da genética na melhoria dos rebanhos e na produção de carne, leite, ovos, etc. Por outro lado, agravou-se a escassez de água doce, visto que a agricultura e pecuária são responsáveis por mais de 85% do seu uso e aumentou enormemente a contaminação do solo, do ar e das águas, plantas, animais e seres humanos pelos agrotóxicos. O uso de organismos geneticamente modificados elevou os riscos para a saúde humana. O controle da cadeia produtiva por parte das grandes multinacionais do agronegócio que produzem sementes transgênicas, fertilizantes e defensivos agrícolas prejudicou ou mesmo alienou a agricultura familiar, vem provocando o desaparecimento da diversidade genética e das sementes caboclas e dificultando o cultivo de produtos orgânicos livres de agrotóxicos. Por sua vez, a produção de alimentos é hoje suficiente para alimentar com folga toda a humanidade, mas o acesso aos mesmos por parte de todos é travado pelo seu alto custo, pela disparidade de renda e pobreza de muitos consumidores, por protecionismos, problemas de transporte e armazenamento e especulação do mercado.

Ao tratar do planeta terra, a Encíclica afirma:
“Além disso, Deus, em sua bondade e sabedoria, ao mesmo tempo em que espalhou pela natureza, uma capacidade quase inesgotável de produzir, dotou o homem de inteligência arguta para que, servindo-se dos meios técnicos adequados, posa transformar os produtos naturais, a fim de satisfazer as exigências e necessidades de sua vida” (MM 190).
Visão ingênua esta sobre a capacidade inesgotável da terra, hoje sobre-explorada e incapaz de refazer-se da degradação a que foi submetida.

É certo que um pouco mais adiante, ao retomar o tema do “crescei e multiplicai-vos” e do “povoai a terra e dominai-a”, a Encíclica introduz uma advertência explícita:
“O segundo desses mandamentos, longe de ter em vista a destruição das coisas, destina-as, ao contrário, à utilidade da vida humana” (MM 197).
Frente à questão demográfica minimizada pela Encíclica, apenas quatro anos depois, o Concílio Vaticano II, tomou posição em favor da paternidade e maternidade responsáveis, admitindo que os esposos “podem achar-se em circunstâncias em que, ao menos, por certo tempo, o número de filhos não deve crescer” (GS 360) e que os governos, dentro dos limites da ética, carregam responsabilidades nesse campo. O Concílio faz ainda apelo aos cientistas, tendo em vista o controle da natalidade:
“Os especialistas em ciência, mormente biológicas, médicas, sociais e psicológicas, podem contribuir grandemente para o bem do matrimônio e da família e a paz das consciências, se, mediante estudos comparados, se esforçarem por esclarecer mais profundamente as condições que favorecem a honesta regulação da procriação humana” (GS 367).

Muitas das perspectivas e portas abertas pelo Concílio foram assumidas pela Encíclica Humane Vitae (1968), na sua primeira parte, em que coloca o amor conjugal e o mútuo afeto entre os cônjuges como o centro do matrimônio, amor ao mesmo tempo fecundo e responsável. Apela para uma paternidade e maternidade responsáveis. Trava, porém, a utilização dos meios chamados “artificiais” de controle da fecundidade e, mais especificamente, da pílula anticoncepcional, considerando legítimo apenas o recurso aos períodos infecundos da mulher. A Humanae Vitae trouxe conflitos de consciência para muitos casais, mas provocou, em seguida, um gradativo e silencioso afastamento de suas normas, comprovado pelo o crescente uso dos meios contraceptivos pela população em geral, incluindo-se os casais católicos praticantes.

. Que impactos a encíclica provocou no Brasil, em seu contexto político, econômico, eclesial e social de então (período pré-ditadura, ligas camponesas, reforma agrária, legalidade etc.), especialmente nas questões da propriedade, da terra e do bem comum?

O país vivia grande efervescência no início dos anos 60, com a inauguração de Brasília, do breve e agitado governo de Jânio Quadros que condecorara Che Guevara e cujo vice-presidente, João Goulart, encontrava-se na China, quando de sua renúncia; inflação galopante e recessão econômica, tanto mais desconcertante quanto o país havia experimentado décadas seguidas de constante crescimento econômico.

A intensa repercussão da encíclica de João XXIII no Brasil e sua pronta recepção pela Igreja local, em que pesem as polêmicas e divisões que suscitou na sociedade e na própria Igreja, só são compreensíveis à luz de três considerações relativas à Encíclica, ao país e à Igreja.
Quanto à encíclica, esta aborda dois problemas até então mantidos na sombra da doutrina social da Igreja, mas que se encontravam no centro do momento histórico brasileiro: o do subdesenvolvimento e o da questão social no campo. Juscelino Kubitscheck (1956-1960) havia convocado a nação a superar seu atraso econômico, crescendo 50 anos em 5. O país cresceu, modernizou-se aceleradamente, mas ao mesmo tempo colocou a nu o profundo empobrecimento do campo, chamado a favorecer a acumulação do capital industrial e a fornecer alimentos a baixo preço para as massas que migraram para as cidades. Aumentaram também as diferenças regionais entre o sul industrializado, urbanizado e enriquecido e um nordeste abandonado e empobrecido. O exemplo explosivo de Cuba e de sua revolução, expropriando os grandes latifúndios e entregando terra aos camponeses repercutiu profundamente no nordeste canavieiro, onde se viviam situações semelhantes de miséria e opressão no campo.
É no contexto, pois, da rápida radicalização no campo e no cenário político urbano, frente ao problema do sub-desenvolvimento e de suas saídas e de crescente envolvimento da Igreja brasileira nos embates sociais, que chega a encíclica Mater et Magistra.
Três episódios permitem colher o clima e as condições em que se dá a recepção da MM na sociedade brasileira e na Igreja. Todos buscam valer-se da palavra do Papa para legitimar posições cada vez mais antagônicas no campo social e político:
1. Os textos pontifícios eram tradicionalmente publicados no país pela Editora Vozes de Petrópolis. A MM sai também publicada por editoras leigas, como a José Olympio, em dois formatos, um popular e outro em dois volumes, com amplos comentários. A encíclica é ainda publicada em jornais de grande circulação e por sindicatos. Conhece ademais edições financiadas por grupos diametralmente opostos no espectro político, por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e líder do PTB e pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Sob uma fachada inocente de estudos sociais, o IPES patrocinava a desestabilização do Governo João Goulart. Tentava aglutinar setores importantes do empresariado, tanto nacional quanto internacional e atrair setores da Igreja, das universidades, da grande imprensa e de sindicatos não combativos. Trabalhou intimamente com a CIA e a Embaixada norte-americano, financiando campanha eleitoral de candidatos anti-comunistas através do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e preparando o golpe de 1964 que levou o país a sofrer 21 anos de ditadura militar. O IPES foi também um dos responsáveis por preparar projetos “alternativos” de reforma agrária, destinados apenas a bloquear a tramitação do projeto de reforma agrária do Governo Goulart.
Inversamente, no RS, o governador Leonel Brizola, empenhado em iniciar a reforma agrária no seu estado, face às hesitações e tergiversações do congresso nacional, onde a maioria conservadora bloqueava a sua discussão e aprovação, mandou imprimir e distribuir largamente o texto da MM, utilizando-o em sua campanha pela reforma agrária no estado.

2. Enquanto o centenário jornal “O Estado de São Paulo”, tradicional defensor dos interesses da grande propriedade rural e depois industrial e financeira, dizia que a MM consagrava a inviolabilidade do direito de propriedade e por isso condenava a reforma agrária, camponeses sem terra do Rio Grande do Sul, em número de 5 mil, armavam, um grande acampamento em terras públicas no município de Sarandi, Ali, ergueram um grande crucifixo de maneira e levantaram faixas com os dizeres: “Acampamento João XXIII. Somos cristãos. Queremos terras” .

3. Em 1960, reagindo à tímida reforma agrária de Carvalho Pinto no governo paulista, que alocava pequenos lotes de terras públicas ociosas a trabalhadores rurais sem terra, dois bispos, Dom Antônio de Castro Mayer de Campos, RJ e Dom Geraldo Proença Sigaud, na época, bispo de Jacarezinho, PR e, posteriormente, arcebispo de Diamantina, MG, escreveram com o conhecido fundador da TFP (Tradição, Família e Propriedade), Plínio Correa de Oliveira, e com o economista de associações patronais, Luiz Mendonça de Freitas, o alentado volume: Reforma Agrária: Questão de Consciência . O livro descreve toda e qualquer reforma agrária, que tocasse a propriedade da terra, como programa intrinsecamente socialista e anti-cristão. O arcebispo de Goiânia, Dom Fernando Gomes, reagiu á publicação do livro, interpelando os autores, para que explicitassem qual seria a “reforma agrária de inspiração cristã” que estes se diziam dispostos a apoiar. Denunciava, ao mesmo tempo, sua “preocupação absorvente de ver ‘socialismo’ em quase tudo” . Dom Castro Mayer respondeu longamente ao arcebispo, reiterando seus pontos de vista . Dom Fernando voltou a a responder-lhe, valendo-se desta vez da recém-publicada MM e buscando colocar um ponto final na polêmica:
“Quanto às outras considerações do artigo… temos, para júbilo de todos, a palavra autorizada e esclarecedora do Santo Padre, João XXIII, na recente encíclica MM. Que mais poderíamos dizer? Nela, o caminho seguro para a solução dos problemas sociais de nossa época. Nela, em termos altos e definidos, os princípios de uma Reforma Agrária Cristã” .

Na prática, a MM deu vigoroso impulso à linha de compromisso social da Igreja do Brasil e, de modo particular, ao seu crescente engajamento nas questões relativas à reforma agrária, à sindicalização rural e à educação de base no campo .
A 05 de outubro de 1961, a Comissão Central da CNBB publicou declaração programática, tomando por base a MM e aplicando-a à realidade brasileira.
Após manifestar seu regozijo pela publicação da encíclica, diz que a mesma era “oportuna para o mundo e oportuníssima para o caso especial do Brasil” .
Do conjunto dos temas tratados na Encíclica, a CNBB volta-se exclusivamente para o meio rural:
“[…] cuja situação é grave e que mereceu todo um longo capítulo da Encíclica, a propósito de ‘exigências de justiça em relação aos setores de produção’. Dele extraímos um roteiro de atividades que, para os católicos, é um programa ideal, mas que é válido para todos, independentemente de religião” .

A Declaração repassa, resumidamente, os principais tópicos da Encíclica, para concluir com dois blocos de recomendações especiais, voltadas para a situação brasileira:

“Na esperança de ver, quanto antes, aplicadas a nosso meio rural essas diretrizes, merecem-nos recomendações especiais, os seguintes movimentos:

- Ação Católica Rural (ACR), a Juventude Agrária Católica (JAC) e a Liga Agrária Católica (LAC) são dignas de apoio prioritário, traduzido em tempo, interesse e sacrifício. São, por excelência, a presença de Cristo entre os trabalhadores do campo. Ajudar a afirmar a Ação Católica Rural e assegurar ao meio rural mística bastante forte para contrabalançar e superar a mística comunista.

- Sindicalização Rural. A experiência iniciada no Nordeste, de formação de líderes para a sindicalização rural é digna de ser estendida a todos os centros rurais, sobretudo quando agitados por reivindicações justas, mas conduzidas com segundas intenções.
O Secretariado Geral de nossa Conferência está apto a fornecer aos Bispos interessados pelo assunto todos os dados necessários.

- Frentes Agrárias. Sugerimos à dioceses rurais que acompanhem, com o mais vivo interesse, a experiência das Frentes Agrárias surgidas no Paraná e no Rio Grande do sul. Talvez, um dia, se possa pensar na articulação nacional das Frentes.

- Movimento de Educação de Base. Para a divulgação do Roteiro de atividades, como para expansão da JAC, da sindicalização Rural e das Frentes Agrárias, o instrumento providencial que temos em mãos é o Movimento de Educação de Base (MEB), através de Escolas Radiofônicas. Reiteramos nossa confiança no MEB e estamos certos de que, sem educação de base, será vão o esforço de mera recuperação econômica, por mais aparato técnico de que se revista o planejamento.

- Planejamento apostólico. A Comissão Central da CNBB vê, com o maior interesse, as experiências pastorais que se realizam em diversas diocese, dentro da prudência e do zelo apostólico, adaptadas às exigências da hora atual” .

Por outro lado, o documento não esconde sua preocupação com a movimentação dos partidos de esquerda, ao arrepio do tradicional controle da Igreja sobre as populações rurais. Alarmava-se com o sucesso das Ligas Camponesas de Francisco Julião na zona canavieira de Pernambuco e dos estados vizinhos, no Nordeste e denunciava improvável movimento guerrilheiro na região:

“Em face da expansão comunista no meio rural. Os comunistas, no campo ou na cidade, não se interessam realmente pelas soluções. Ao contrário, para eles, quanto pior melhor.
Mas o fato grave que denunciamos é que os agitadores vermelhos, em várias frentes, se preparam para a tática de guerrilhas, de acordo com os melhores exemplos cubanos e chineses.
Assim, como não podemos parar no mero anticomunismo, simplista e contraproducente, não podemos ser ingênuos a ponto de entregar-nos a grandiosos planos de recuperação econômico-social dos meios rurais (alusão às divergências quanto ao trabalho da SUDENE no Nordeste – nota do autor), esquecidos da retaguarda e dos flancos invadidos pelos guerrilheiros. “Em cada diocese, cabe à perspicácia do Pastor descobrir os meios práticos de defender o rebanho” .
Os bispos, ao mesmo tempo em que se posicionam claramente pelas reformas e pelo compromisso da Igreja em sua efetivação, vêem todos os perigos subirem pelo lado da esquerda. É interessante notar que, na mesma época, o principal líder do laicato católico apontava as nuvens que se acumulavam noutro horizonte, com prenúncios de golpe pela direita:
“Ora, quem procura combater a miséria, transformar o regime latifundiário num regime de propriedade rural mais bem distribuída, atender ao que há d justo nos programas socialistas ou comunistas, por em prática a Mater et Magistra e a Pacem in Terris, neutralizar a ação de certos líderes, incorporando-os a um esquema ‘ reformista’ do Governo, está fazendo o oposto do que convém aos totalitários sejam comunistas, sejam neofacistas (…). O perigo neofascista no Brasil, como proclamo há muito tempo, é mais premente do que o perigo comunista” .

A encíclica que havia tirado as questões ligadas ao secular problema do latifúndio e da exploração dos trabalhadores no campo de manifestações isoladas, como a do Bispo de Campanha, Dom Inocêncio Engelke, com sua pastoral de 1950, “Conosco, sem nós ou contra nós, se fará a Reforma Rural”, ou de pronunciamentos regionais, como o do episcopado paulista de 05 de dezembro de 1960, acabou trazendo-as para um amplo debate nacional, como vimos acima .
Ensejou também a mais contundente manifestação do Episcopado Brasileiro sobre o tema, preparada para o dia 1º. de maio de 1963, logo depois da publicação da Pacem in Terris e que abaixo transcrevemos, :

“Ninguém pode desconhecer a situação de milhões de nossos irmãos que vivem nos campos, sem poder participar dos benefícios do nosso desenvolvimento, em condições de miséria que constituem uma afronta à dignidade humana. Sabemos que o simples acesso à erra não é solução cabal para o problema. Mas o julgamos inadiável para a realização do direito natural do homem à propriedade (Pacem in Terris), medida a ser concomitantemente tomada, segundo as condições peculiares das diversas regiões do País, com outras de ordem educacional, técnica, assistencial e creditícia. Para a realização desse imperativo, a desapropriação por interesse social não contraria em nada a doutrina social da Igreja, mas é uma das formas viáveis de realizar, na atual conjuntura brasileira, a função social da propriedade rural. Evidentemente, esta desapropriação, que visa a garantir o exercício do direito de propriedade ao maior número, não pode desrespeitar e destruir este mesmo direito. Daí a necessidade da justa indenização, que deverá ser feita dentro dos critérios da justiça, atendendo às possibilidades do país e às exigências do bem comum. Não cremos constituir um atentado contra o direito de propriedade uma indenização total ou parcialmente em dinheiro ou em títulos da dívida pública., dando-se a estes títulos as garantias de revalorização, de vencimentos e de poder liberatório pelos quais constituam uma adequada compensação pelos bens desapropriados.
Não cabe, entretanto, a nós definir que fórmula, poderá melhor responder às condições atuais da realidade brasileira. Lembramos que, na consecução do objetivo visado, é responsabilidade grave da União e dos Estados dar exemplo e estímulo, começando, desde já, com a distribuição equitativa de suas terras, quando não constituírem reservas patrimoniais, como no caso das reservas florestais preservadoras da flora, da fauna e dos mananciais de água e do regimen das chuvas e do clima ameno. Nem menos urgente é a utilização imediata de latifúndios improdutivos, seja através de uma pesada tributação, seja através de sua repartição oportuna.
Fazemos, porém, uma grave advertência aos responsáveis pelo problema da reforma agrária, que no desempenho de suas funções nunca se deixem levar por paixões pessoais ou políticas, mas tenham sempre em vista os imperativos indeclináveis do bem comum.
Toda nova ordem que se deseja para o meio rural deve obedecer ao princípio “de que os promotores do desenvolvimento econômico, do progresso social, do soerguimento cultural nos meios rurais devem ser os próprios interessados, os agricultores” (Mater et Magistra).

Ao admitir que as desapropriações de terra não precisassem ser pagas, no ato e em dinheiro, como exigiam estridentemente os grandes proprietários, inclusive de terras ociosas e mantidas a título de especulação imobiliária, mas que podiam ser indenizadas em títulos da dívida agrária e a longo prazo, a CNBB se colocava ao lado dos que tentavam viabilizar a reforma agrária desenhada pelo Governo Goulart e ameaçada tanto pela ferrenha oposição ideológica, quanto pela falta de recursos imediatos.



• Como ela foi recebida também por parte da Igreja latino-americana e brasileira? Houve algum tipo de aprofundamento regional das questões evocadas no texto papal por parte da Igreja junto aos governos?

Na Igreja latino-americana as reações não foram, nem podiam ser uniformes. O México já havia passado pela revolução camponesa de Emiliano Zapata, em 1910 e pela reforma agrária de Lázaro Cárdenas na década de 30, com a Igreja sendo mantida longe das questões sociais, desde a violência anti-religiosa do governo de Plutarco Elias Calles (1924-1928) e dos acordos que se seguiram ao levante Cristero; Bolívia havia conhecido sua revolução camponesa e a reforma agrária, em 1953. Na década de 60, à raiz da revolução cubana, por toda a América Latina o tema da reforma agrária estava entrando na agenda social e política dos movimentos sociais e partidos políticos, mas também das Igrejas. Neste clima, foi intensa a repercussão da Mater et Magistra e, em todo o continente. Ela plantou as sementes do amplo movimento de apoio da Igreja aos movimentos camponeses e indígenas que ganhou corpo com Medellín, em 1968. No Brasil, a herança mais fecunda da MM encontra-se na criação e nos trabalhos da Pastoral da Terra, fundada em junho de 1975 e no documento da CNBB,maduro e inovador, em termos de doutrina social da Igreja, A Igreja e os problemas da terra (1980) . Ali se introduz a distinção entre “terra de trabalho” e “terra de negócio”, ao lado da “terra comunitária” dos povos indígenas e se proclama o apoio da Igreja às iniciativas e organizações dos trabalhadores e dos seus movimentos, assim como à reforma agrária e à mobilização dos trabalhadores para exigir sua aplicação.

• A MM foi publicada alguns meses antes da convocação do Concílio Vaticano II, em dezembro do mesmo ano. Que aspectos a encíclica já prediz ou destaca a respeito dos debates que ocorreriam no Concílio diante dos desafios desse período histórico e eclesial?

A Encíclica feriu muito dos temas que foram posteriormente discutidos e aprofundados no Vaticano II. A tomada de posição da Gaudium et Spes sobre o acesso à terra nos países mais pobres, inspira-se diretamente na Mater et Magistra:

“Em muitas regiões economicamente menos desenvolvidas existem grandes ou também extensíssimas propriedades rurais, pouco cultivadas, ou sem cultura alguma, à espera de valorização, enquanto a maior parte do povo não tem terra ou dispões somente de parcela mínimas, e, por outra parte, o desenvolvimento da produção nos campos se apresenta de urgência evidente. Não raro, os que contratados pelos donos para o trabalho, ou que cultivam uma parte a título de locação, recebem somente um salário ou produção indignos do homem, são privados de habitação decente e são explorados pelos intermediários. Sem segurança alguma, vivem debaixo de tal servidão pessoal, que lhes é tirada quase toda a possibilidade de iniciativa e responsabilidade, sendo-lhes proibida qualquer promoção cultural humana e participação na vida social e política. Portanto, em vários casos, as reformas são necessárias para o crescimento das remunerações, o melhoramento das condições de trabalho, o aumento de segurança no emprego, o incentivo à iniciativa de trabalho e, também, a distribuição das terras insuficientemente cultivadas com aqueles que consigam torná-las mais produtivas. Em tal caso, devem ser fornecidos os recursos e meios necessários, sobretudo os subsídios de educação e as possibilidades de uma justa organização de cooperativas. Todas as vezes que o bem comum exigir uma expropriação, deve ser estipulada indenização de acordo com a equidade, levando-se em conta todas as circunstâncias” (GS 438).

Comparecem igualmente na Mater et Magistra e no Concílio, mormente na Gaudium et Spes, outros temas já levantados pela MM, como o do desenvolvimento, cuja critério e medida primeira é o serviço prestado aos homens (MM GS 417); o das exigências de justiça entre os países de desigual desenvolvimento econômico (MM 157-184e GS 421-423), o da solidariedade internacional entre os povos (MM 158-160 e GS 505-507), o da questão demográfica entrelaçada com o desenvolvimento (MM 185-199 e GS 502-504) e vários outros, como a destinação universal dos bens, a função social da propriedade, já recorrentes na doutrina social da Igreja.

DEIXO DE RESPONDER À PERGUNTA ABAIXO, POR ESTAR DE CERTO MODO CONTEMPLADA EM RESPOSTAS ANTERIORES E POSTERIORES
• A MM fundamenta-se em encíclicas anteriores (“Rerum Novarum” e “Quadragesimo Anno”) e também serve de fundamento para textos posteriores (“Pacem in Terris” e “Gaudium et Spes”). Como o senhor analisa, em traços gerais, as questões levantadas por esses documentos oficiais da Igreja e suas interconexões sobre a questão social?

• A partir das idéias defendidas na MM e em suas demais encíclicas, que avaliação o senhor faz da figura de João XXIII dentro do seu contexto histórico? Qual o significado do seu papado e seu legado?

João XXIII é figura maior para a virada de uma Igreja focada menos em si mesma e mais nas necessidades e angústias de toda a humanidade. Ao deslocar o esforço eclesial para estar atento aos sinais dos tempos e para e responder grito dos pobres, escapou da secular armadilha de que bastava enunciar a doutrina correta e condenar os erros, para se resolver os ingentes problemas da humanidade e da Igreja..
O seu papado foi capaz de convocar, abrir e colocar num bom rumo, o Concílio Vaticano II, o mais importante evento eclesial do século XX levado a bom termo por seu sucessor Paulo VI.
João XXIII inseriu a Igreja católica no amplo movimento ecumênico do século XX, abriu o diálogo com os judeus, com os crentes de outras religiões e com os não-crentes, na convicção de que todos os seres humanos fazem parte da mesma família de Deus e têm responsabilidades recíprocas.

Teve decidida atuação em favor da paz, superando os limites, insuficiências e falácias da assim chamada guerra justa, para proclamar com toda clareza que, diante das modernas armas químicas, biológicas nucleares que colocam em risco a sobrevivência da humanidade, nenhuma guerra pode ser considerada justa. Para proteger os fracos de agressões injustificadas pediu o reforço e aperfeiçoamento de instâncias internacionais de diálogo, mediação e superação dos conflitos.


• Desde a publicação da MM até chegarmos à recente encíclica “Caritas in Veritate”, de Bento XVI, que também aborda essa temática, que avaliação o senhor faz do atual ensino social da Igreja? Que aspectos foram corrigidos, aprofundados e ultrapassados desde então? Que outras questões ainda merecem uma atenção maior, diante da contemporaneidade?

A 07 de julho de 2009 Bento XVI publicou, com quase dois anos de atraso em relação à data prevista, sua encíclica social sobre o “desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. Esta propunha comemorar os 40 anos da Populorum Progressio (1967-2007), e ao mesmo tempo retomar e atualizar seus grandes temas. O projeto entrou em compasso de espera frente a grave crise financeira iniciada em 2007 e precipitada em 2008, convertendo-se na mais grave crise econômica mundial desde o desastre de 1929. Provocou imediato desemprego nas economias centrais e depois nas periféricas, com aumento dos preços dos alimentos e conseqüente recrudescimento da fome no mundo.
“Que Bento XVI tenha recordado na Caritas in Veritate que ‘a fome ceifa ainda a vida de muitíssimos Lázaros impedidos de sentar-se à mesa… do rico epulão” (CV 27), que a reforma agrária siga sendo urgente; que o acesso à alimentação e à água sejam direitos universais de todos os seres humanos sem distinção ou discriminações (CV 27) não é nenhum pleonasmo”, comentava Il Regno no seu editorial de apresentação da encíclica . Recordou ainda que “Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra” (CV 27).
O Papa reafirmou também o papel reitor da política na esfera econômica, que não pode ser deixada ao sabor das leis cegas do mercado, sem nenhum controle da parte do Estado, e muito menos subtrair-se às exigências da ética, (CV 39 e 45 a 48), ao dever da cooperação internacional e da solidariedade (CV 47). Suas referências deviam ser, de um lado, o bem comum e, de outro, a centralidade da pessoa humana e do seu bem estar material e espiritual (CV 47).
Sublinhou o Papa a necessidade de um sistema global com três sujeitos, o mercado, o Estado e a sociedade, sem a atual ditadura imposta pelo mercado em particular o financeiro, que opera sem qualquer referência às necessidades humanas mais prementes ou ao bem comum da humanidade (CV 38).
Sua novidade maior encontra-se na IV parte, em que aborda o tema da relação dos seres humanos com a natureza e a grave crise ambiental em que está mergulhado o planeta (CV 49-52). Muitos ambientalistas consideraram, entretanto, que o tratamento dado à temática ficou aquém da gravidade e urgência do aquecimento global e de outros desequilíbrios e desastres ambientais.
O tema não fazia ainda parte da agenda global nem da sociedade nem da Igreja, quando foi escrita a Mater et Magistra, em 1961.
Logo depois, em 1972, o Clube de Roma publicou o seu Relatório “Os limites do crescimento”. O relatório tratava de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade, tais como energia, poluição , saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional. Vendeu mais de 30 milhões de cópias em 30 idiomas, tornando-se o livro sobre as questões ambientais mais vendido da história. Colocou na agenda internacional o tema do desenvolvimento sustentável, além de sua controvertida proposta, hoje tão debatida, de “crescimento zero”.
Além da questão ambiental há uma segunda que vem se tornando crucial, a das migrações. A demanda dos mercados e dos países centrais do capitalismo globalizado por livre circulação de bens, mercadorias, serviços e ativos financeiros vem acompanhada, entretanto, por demanda inversa e de sinal trocado. Estabelecem-se, cada vez mais, restrições e entraves à livre circulação das pessoas e de seus familiares. Barreiras legais e mesmo físicas, com a construção de cercas elétricas e muros de concreto nas fronteiras entre países, acompanhadas de crescente xenofobismo e criminalização dos migrantes, vem sendo a resposta cruel à nova onda migratória mundial, provocada por guerras, desequilíbrios econômicos e, cada vez mais, secas, inundações, contaminações químicas e nucleares e outros desastres ambientais.
Finalmente, o tema da guerra e da paz necessita ser repensado com toda urgência. Há, de um lado, o terrorismo que não respeita alvos civis e ceifa vidas inocentes e, de outro, a “guerra ao terror” movida por governos que se arrogam o direito de agir acima e ao arrepio de qualquer lei e limite, desrespeitando todas as convenções que protegem civis ou prisioneiros, em caso de guerra. As alegadas intervenções “humanitárias” vêm se tornando disfarce cínico e hipócrita para defesa de interesses e posições de poder, em vez de socorro desinteressado a populações civis indefesas frente à brutalidade de estados sem lei, à limpezas étnicas ou mesmo a genocídios programados.
O que mais impressiona, entretanto, numa comparação entre as duas Encíclicas, é que a Caritas in Veritate não provocou, de modo algum, o impacto e o vivo debate suscitados em todo o mundo pela Mater et Magistra. A observação vale tanto para a opinião pública laica, quanto para os ambientes mais internos da Igreja Católica.
Não suscitou tampouco entusiasmos ou iniciativas que levassem a sério as graves questões ali levantadas. Neste sentido, mudaram o mundo, a Igreja e também o tom e a formulação de sua doutrina social, não necessariamente para melhor.

• Deseja acrescentar algo?

A muitos passou provavelmente despercebida a proposta metodológica contida na MM. Na última parte, quando João XXIII passa para as sugestões práticas, traz uma surpreendente proposta:
“236. Pois bem, para se por em prática a doutrina social, passa-se ordinariamente, por três etapas: em primeiro lugar, o estudo da real situação concreta; a seguir, atenta apreciação da mesma à luz dos princípios; finalmente, determinação do que se pode ou deve se fazer, a fim de que as normas dadas possam ser aplicadas, conforme os tempos e os lugares. São os três momentos, habitualmente expressos com as seguintes palavras: ver, julgar e agir (grifo nosso)” (MM 236).

Foi a primeira vez que um documento pontifício recomendou o método fecundo da JOC (Juventude Operária Católica) de Joseph Cardijn e que inverte o caminho até então seguido de se derivar da doutrina e não do atento exame da realidade, a reflexão bíblico-teológica e as propostas de ação.

Desta recomendação, avançou depois João XXIII em sua proposta, com o apelo para se estar atento aos “sinais dos tempos”, já que Deus nos fala no hoje da história e interpela-nos por meio da realidade e dos acontecimentos.
Para cada uma das quatro partes da Pacem in Terris, são apontados os respectivos “sinais dos tempos: 1ª. parte: 39-45; 2ª. parte: 75-78; 3ª. parte: 126-129; 4ª. parte: 142-145. Bem conhecidos ficaram os sinais do tempo que João XXIII alinha para primeira parte da Encíclica:
“39. Três fenômenos caracterizam a nossa época.
40. Primeiramente a gradual ascensão econômico-social das classes trabalhadoras…
41. Em segundo lugar, o fato, por demais conhecido. do ingresso da mulher na vida pública…
42. Notamos, finalmente, que, em nossos dias, evoluiu a sociedade humana para um padrão social e político completamente novo. Uma vez que todos os povos já proclamaram ou estão para proclamar a sua independência, acontecerá dentro em breve que não existirão povos dominadores e povos dominados.
43. As pessoas de qualquer parte do mundo são cidadãos de um Estado autônomo ou estão para o ser”… (PT 39-43).

Finalmente, o método foi plenamente acolhido no Concílio, durante a elaboração da Gaudium et Spes, cujo proêmio é claro exemplo desta mudança de paradigma na reflexão teológica e na apresentação da doutrina, sempre subordinada à pastoralidade, objetivo último de toda ação da Igreja:
“As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegria e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS 200).

Três anos depois, na América Latina, todos os 16 documentos da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (1968) assumiram esse itinerário metodológico, que foi logo depois seguido e amplamente aprofundado e teorizado pela Teologia a Libertação.

José Oscar Beozzo - São Paulo, 12 de maio de 2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário