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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

IGREJA DA LIBERTAÇÃO NO BRASIL. UM CATOLICISMO PARA O SÉCULO XXI

REPORTAGEM ESPECIAL - 2010-12-02 - Adital

Sempre existe uma pré-história
A nova experiência das Comunidades Eclesiais de Base, CEBs e da Teologia da Libertação que a Igreja do Brasil está vivendo, começa nos anos 50. Reinava, na Igreja, uma necessidade forte de renovação, mas o espírito era de quem se preocupa mais com suas questões internas e menos com a sociedade. Existia, por exemplo, um caminho paralelo entre ligas camponesas e sindicatos católicos, Movimento de Educação de Base e metodologia de Paulo Freire. Na mesma linha vai a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, em 1952. Movimento de renovação semelhante se deu em meados da década de 1960, quando nasceram as primeiras CEBs, pensadas como alternativas e/ou complementação ao trabalho paroquial.
Novos ventos
Mas, elementos novos entram e se fundem na vida da Igreja. O Concílio Vaticano II (1962-1965) funcionou como elemento-chave para a participação de leigos, abrindo-lhes o acesso à Bíblia, à palavra de Deus. Ganhava força a proposta de uma Igreja povo de Deus. No seu olhar interno, o Concílio pensou uma Igreja plural, flexível e, diante de uma estrutura até então centralizada e clerical, sonhou com uma instituição participativa. Ao olhar para fora, o Concílio comprometeu-se num diálogo com todas as culturas e povos, e com a libertação dos pobres.
Muitos padres e dezenas de religiosos foram procurar novas modalidades de trabalho pastoral nas periferias urbanas e nas zonas rurais, motivados pela opção pelos pobres que surge em Medellín. É em agosto de 1968 que a Conferência Episcopal de Medellín, na Colômbia, reforçando as decisões do Concílio, abre um novo tempo na história da Igreja da América Latina. Exemplo deste impulso inovador registrou-se no Brasil no início dos anos 70. A sociedade era submetida ao Ato Institucional nº 5, que extinguiu as liberdades civis. Sindicatos, movimentos e associações populares já não podiam atuar livremente. Foi nesse período que as CEBs se multiplicaram e abriram as portas para pessoas que, sem participar diretamente de uma prática sacramental, estimulam sua presença nos movimentos de reivindicação.
Começa a tomar corpo a Teologia da Libertação
Um mês antes da Conferência de Medellín, numa palestra na cidade de Chimbote, no Peru, o teólogo Gustavo Gutiérrez lançou a primeira semente da Teologia da Libertação. O texto, publicado em 1969 com o título Rumo à Teologia da Libertação, deu origem ao livro Teologia da Libertação, editado em Lima, em dezembro de 1971.
O momento político que o Brasil vivia, de violenta repressão, funcionou como fermento para a nova teologia. A CNBB que, com o decorrer dos anos e o afastamento de D. Hélder Câmara, como seu secretário-geral, havia se burocratizado, assumiu papel preponderante com a posse de D. Aloísio Lorscheider na presidência, no início dos anos 70. As posições firmes do cardeal nas denúncias de torturas a presos políticos ganharam espaço na imprensa e tiveram o apoio dos bispos.
Teve início um verdadeiro embate entre Igreja e regime militar. Em 1975, a CNBB publicou um documento contundente intitulado Comunicação Pastoral ao Povo de Deus, em que os bispos afirmavam: "Ao cristão é proibido ficar triste e ter medo".
No mesmo ano, realizou-se o 1º Encontro Intereclesial de CEBs. Era a primeira tentativa de se fazer uma sistematização sobre as CEBs, que pode ser resumida numa frase: uma nova forma de ser Igreja e uma nova forma de a Igreja ser. Elas passaram a representar a concretização do Vaticano II, por ser uma presença transformadora do mundo.
É nesse diálogo e na vivência no meio popular que a igreja percebe a necessidade de estar ao lado das pessoas que já estavam lutando por justiça e solidariedade. Essa intuição nova propiciou o surgimento das pastorais sociais, que ganharam expressão nacional com a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT). De início, chamava-se apenas Comissão da Terra. Mas os bispos da Amazônia, e o próprio D. Aloísio, defenderam a inclusão da palavra Pastoral. Configurava-se, na verdade, um olhar novo da Igreja em relação ao mundo, visto não mais como lugar profano, mas como lugar onde Deus se faz presente para caminhar com seu povo e libertá-lo. E foi nesse intercâmbio que a Igreja assumiu sua maior proximidade com o povo. No caso da CPT, por exemplo, com os lavradores. As pastorais sociais, portanto, não surgiram como um trabalho supletivo, e sim como fonte de autenticidade da própria igreja. Enquanto as CEBs se expandiram, formando uma rede de aproximadamente 80 mil comunidades espalhadas por todo o Brasil, as pastorais aglutinaram um número de pessoas muito menor, porém com atuação expressiva, competente e de grande repercussão.
Fundiram-se, assim, até 1977-78, quatro elementos fundamentais: a CNBB, as CEBs, as Pastorais Sociais e a Teologia da Libertação. É neste período que o teólogo Leonardo Boff escreve a obra A Igreja que nasce do povo, e o também teólogo Carlos Mesters publica o livro A flor sem defesa, um ensaio de um novo jeito de ler a Bíblia, a partir do povo.
Evolução e involução
Os anos que se seguiram, até a segunda metade da década de 80, foram de esperança, de construção, de entusiasmo, às vezes, de ingenuidade. Muitos cristãos e não cristãos acreditaram na possibilidade de uma mudança radical e rápida das estruturas sociais e eclesiais. Os caminhos da história, porém, nunca são lineares e o barco de Pedro, desde que se meteu nas tempestades da história, começou a balançar.
E o 11 de setembro de 1973 tinha acontecido e devia ser um marco na história da América Latina. O bombardeio do Palácio de La Moneda e o assassinato de Salvador Allende deviam representar o declínio da revolução social, do socialismo, dos movimentos populares de libertação, da esperança dos pobres e oprimidos, e uma advertência à Teologia da Libertação, que acabava de nascer já condenada. Uma certa ansiedade se espalhou em ondas sucessivas na sociedade e na igreja.
Várias pessoas que fizeram opção pelos pobres por causa de sua força histórica, depois, resfriaram sua atuação; pouco dispostas a compartilhar sua fraqueza. Mas, na sociedade, continuaram crescendo a consciência e a organização e, na igreja, os setores da escolha pelos pobres firmaram o passo, apesar das hostilidades da cúria vaticana, que já não fazia mais bispos como antigamente.
A globalização econômica e religiosa
Ao final do século XX, foram grandes os desafios da humanidade. Na década de 90, o neoliberalismo atingiu o auge e apareceu como indestrutível; como a fase final da história. A cultura individualista do capitalismo norte-americano invadiu o mundo, inundou a América Latina.
No plano mundial, a globalização ampliou a distância entre ricos e pobres e trouxe significativas mudanças na divisão social do trabalho; aumentou o peso do império norte-americano, a especulação financeira, a violência e a miséria.
A religião ocupa lugar determinante nesta nova cultura. Ela se adequa e oferece receitas de bem-estar e de felicidade. É uma religião light na linha do New Age, sem exigências, com promessas de felicidade imediata, feita de emoções agradáveis. As Igrejas seguem o movimento da sociedade. A geração de jovens que não conheceu as esperanças e os movimentos sociais dos anos 50 e 60 vive a nova cultura sem complexo. Afinal, é a cultura em que eles nasceram.
Não se podem omitir, porém, os avanços tecnológicos positivos e, sobretudo, o surgimento de uma sociedade civil mundial.
Fraquezas e desafios da igreja católica no final do século XX
No que se refere à Igreja Católica, alguns elementos, tais como o fundamentalismo, o integrismo, a cristandade e a perda do profetismo, impediram o cumprimento de sua missão. Em nome de uma tradição e para manter sua influência nas sociedades, opôs-se à separação Igreja e Estado-Nação, ao advento da modernidade, à plena emancipação da mulher, às mudanças democratizadoras da sua própria organização.
Outras dificuldades vêm dos problemas do poder, de querer manter certos privilégios históricos, de influir na vida política, de assegurar a existência do Estado do Vaticano com sua representação oficial pelas Nunciaturas. A tentação de colonizar a vida civil continua presente em círculos importantes de Roma e em dioceses de todo o mundo. Há o perigo, inclusive, de o projeto Evangelização do Novo Milênio, com que a CNBB quer renovar a vida cristã, se transformar em mais uma tentativa de neocristandade.
Paralelamente, entretanto, setores lúcidos conseguem articular fé e política, e colocam a religião a serviço de todos, principalmente das minorias abandonadas e excluídas. O próprio projeto citado acima, poderá transformar-se numa boa oportunidade para multiplicar por 3 ou por 4 as 80.000 CEBs do Brasil.
"Cristãos orgânicos"
Um ponto fundamental nesta reflexão é o papel de segmentos expressivos do catolicismo no relacionamento com os modelos de desenvolvimento vigentes. Não se pode esquecer que grande número de católicos integra as classes dominantes e defende a globalização dirigida pelo capital financeiro, impondo o neoliberalismo, os ajustes estruturais, as regras do Banco Mundial e do FMI. Esses católicos, muitos formados em escolas católicas, são funcionais ao sistema. Talvez ignorem as conseqüências perversas da globalização, expressas na pobreza absoluta e relativa, no desemprego estrutural, na desqualificação e provisoriedade do trabalho, na exclusão social.
Diálogo com outras religiões
No plano do diálogo e da convivência com as outras religiões mundiais, surgiram tensões, especialmente com as de grande crescimento numérico (como o islamismo) e com aquelas que têm um perfil agressivo na conquista de adeptos e nos ataques ao prestígio da Igreja Católica. Também foram tensas as relações com as religiões que atingem setores populares e que abrigam um sincretismo, como as de origem afro-brasileira. Persistem ainda seqüelas dos conflitos do passado com as religiões protestantes históricas.
A publicação da Dominus Iesus pela Cúria Romana, argumentando que a Igreja Católica é a única realmente verdadeira e completa, não expressou o sentimento de vastos contingentes católicos, e pior: trouxe velhos ressentimentos e colocou sérios obstáculos ao entendimento. Nas esferas oficiais, o ecumenismo não avançou muito, mas vem criando raízes nas práticas de ações conjuntas e na convivência em comunidades, como nas CEBs. A imensa dificuldade da Igreja Católica é guardar a sua identidade sem se posicionar como única dona da verdade.
Compromisso social
A involução atual da igreja não a deixa ser sal da terra e luz do mundo. Agora, o desafio está em como permanecer no seu engajamento em prol dos direitos humanos e das lutas pela justiça social, por meio das pastorais sociais, das campanhas da fraternidade, do resgate das dívidas sociais, da atuação em partidos políticos, movimentos sociais, e mesmo dentro dos organismos governamentais.
Este compromisso social mais efetivo estará ameaçado se a Igreja privilegiar movimentos originários do exterior que, em nome da fidelidade estritamente espiritual, adquirem popularidade numa conjuntura de grandes incertezas existenciais e políticas e de extremado individualismo.
A democratização interna da instituição eclesial, revendo, inclusive, as funções papais, é um desafio a ser vencido (Box 1). A Igreja precisa também resguardar o papel específico dos leigos e mudar suas posições anacrônicas sobre a presença da mulher nas instâncias decisórias.
Que cristãos hoje?
Esses problemas, evidentemente, não se inscrevem somente no âmbito da hierarquia católica, mas refletem uma situação mais geral da Igreja. Entre os cristãos, hoje, podemos identificar um grupo formado pelos saudosistas, que acreditam que o futuro já aconteceu, que o melhor está no passado. Querem que todos os católicos fiquem dentro de sacristias, evitem as ruas, as fábricas e os conflitos políticos do presente que estragariam, com certeza, o futuro que deve simplesmente re-criar o passado e reformar o presente.
Outro grupo de cristãos vive o dia-a-dia e olha para o futuro que se faz no presente. Jogam suas vidas no cotidiano. Valorizam o passado sem ficar eternamente olhando pelo espelho retrovisor da vida. Querem também eles experimentar novas receitas na Igreja que se refaz em Cristo a cada dia. Estão próximos das mulheres, dos negros, dos índios e das crianças que vêem e pensam a Igreja e o mundo com outro olhar e maneira de ser. Por isso, o catolicismo deles não é mais infantil, é ecumênico, é crítico e exigente, é dinâmico e, às vezes, discordante (Box 2).
Uma nova estrutura eclesial
Dentro da experiência vivida por estes cristãos, nos últimos cinqüenta anos, uma nova estrutura eclesial vem sendo gerada no Brasil e em outros países da América Latina. A embrionária estrutura pastoral formada pelo tripé CNBB-CEBs-Pastorais, apoiada na sistematização dada pela Teologia da Libertação, representa uma inovação criativa face à antiga estrutura clerical herdada do século XI. Cada um desses elementos tem a sua especificidade e autonomia; mas, na medida em que se articulam criam um espaço eclesial novo.
A CNBB expressa a consciência da grande comunidade católica brasileira e sua influência na sociedade deve-se à articulação com as CEBs e Pastorais Sociais. Hoje, embora o pontificado do papa João Paulo II não revele simpatias pela colegialidade da CNBB, o episcopado brasileiro não se tem curvado à pressão de Roma, resiste à centralização imposta pelo Vaticano e à tentativa sistemática de desmonte da entidade. É inegável, porém, que a CNBB já não tem a influência que tinha no período de 1970 a 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, fruto de um incansável trabalho da Igreja. Atualmente, a CNBB vive uma fase de retração, mas, apesar das tensões internas, ainda é uma das principais instituições com postura crítica no país.
As CEBs congregam pessoas que se organizam para cultivar a fé cristã pela reflexão bíblica em pequenos grupos, e atuar na melhoria das condições do lugar onde vivem. A participação de seus membros em organismos da sociedade civil indica sua penetração capilar na sociedade brasileira. Sua ligação com a CNBB lhes dá a identidade eclesial, mesmo quando não são reconhecidas pelo bispo ou pároco local. Delas vêm a maior adesão aos projetos e propostas da CNBB.
As Pastorais Sociais e organismos equivalentes estabelecem uma ponte entre a Igreja e os setores específicos da sociedade e dão à Igreja incidência sobre os temas de ponta da realidade através de pessoas de liderança e de assessores qualificados.
Esta nova proposta de Igreja, Povo de Deus, tem em si uma potencialidade que não visa oferecer receitas prontas aos complexos e novos desafios éticos da sociedade moderna; mas tem, isso sim, uma nova visão para ensaiar rumos de colaboração e integração com o mundo. Ela entende que só dentro do mundo e da história acontece o processo de salvação (Box 3).
Crise neoliberal e novos tempos
E se faz urgente encarar esses desafios porque, agora, os sinais mudaram de novo. No limiar do terceiro milênio, é a sociedade neoliberal que entra em crise. O dia 11 de setembro de 2001, com os atentados de Nova York e de Washington, pode representar um novo marco histórico, indício do declínio da sociedade ocidental liderada pelos Estados Unidos. Há sinais de uma revolta das massas de excluídos do Terceiro Mundo, tendo à frente novas elites. Estas se manifestam tanto no Primeiro Mundo, como no Terceiro, confirmando o surgimento de uma sociedade civil mundial. Tudo indica que entre os jovens e adolescentes, que agora vão às ruas contra o imperialismo dos Estados Unidos, surgirão lideranças que promoverão novos movimentos populares, provavelmente bem diferentes dos anteriores. Junto a eles um exército de personalidades, técnicos, humanistas, pensadores, ativistas políticos, movimentos populares que o neoliberalismo sempre dizimou e relegou às margens dos centros decisionais, estão se impondo com a força de quem tem propostas e capacidade de encaminhar soluções. Esta perspectiva é bem clara e o Fórum Social Mundial de Porto Alegre não deixa dúvidas.
Pode-se presumir que a Igreja seguirá esses movimentos, porque uma parte dela já está neles e porque, possivelmente, dentre os jovens seminaristas "angélicos", que os atuais métodos de formação pretendem orientar para dirigir uma "Igreja feliz e bem protegida", podem surgir líderes com vocação revolucionária. Quando os povos se organizarem em novas lutas, desta vez, mundiais, haverá cristãos e católicos no meio deles, haverá religiosas, sacerdotes e, possivelmente, alguns bispos, porque os núncios também podem "errar" na escolha dos bispos.
Esse grande processo histórico terá de criar novas estruturas sociais e sistemas de pensamento, novas teologias e modos de agir. A década que se inicia será a da constituição de novas forças sociais. Essas novidades podem aparecer bem antes do previsto, pois a história é mais forte do que os projetos dos homens, e tudo muda.
[*M. Helena G. Pereira: redação e edição. Jornalista, MTPS 11872.
Colaboraram: Luiz Eduardo Wanderley, sociólogo, ex-reitor e professor na PUC-SP; José Comblin, teólogo; Fernando Altemeyer, mestre em ciências religiosas (Louvaina) e professor na PUC-SP; João Batista Libanio, professor de teologia na faculdade jesuíta (Belo Horizonte); Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, professor na Universidade Católica (Brasília); e Ermanno Allegri, Diretor de ADITAL].

Box 1:
E O FUTURO PAPA?
Por Virgílio Uchôa
É difícil imaginar a figura do papa apenas como autoridade restrita ao serviço da Igreja. Nesta hora histórica, o desafio fundamental é construir a globalização da humanidade, é pensar a missão da Igreja Católica dentro do contexto de diálogo com as religiões e com as pessoas de boa vontade no esforço de criar um novo humanismo. É o desafio de exercer a autoridade como fator de união para fazer do serviço a fonte que legitima o poder.
A sociedade de hoje, cada vez mais, requer pessoas dinâmicas na sua maneira de dar testemunho e de agir e se é difícil pensar num papa como autoridade fora do conjunto dos bispos, mais difícil será imaginá-lo sem a atitude de com-paixão pelo homem e pela mulher, não importa quem sejam.
O Evangelho define a fidelidade de Pedro, homem frágil como qualquer outro, no exercício do poder: "Simão, você me ama...? Cuida dos meus cordeiros..." (Jo. 21, 15).
A autoridade do papa, assim concebida, exige cada vez mais que ele se liberte da figura de chefe de Estado e se comprometa a ser o pastor da humanidade globalizada, angustiada e carente de uma profunda experiência da ternura humana solidária.
Que seja ele alguém capaz de descortinar o novo caminho e de ajudar a recolocar no seu devido lugar o homem e a mulher alienados pela globalização hegemônica do dinheiro, pelo poder autoritário da força e da violência de todos os terrorismos.
[*Virgílio L. Uchôa, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs].
Box 2:
IGREJA É ALVO DE CRÍTICAS SEVERAS
Acusada de ter abandonado as populações carentes e excluídas e de discriminar negros, homossexuais e as religiões afro-brasileiras, a Igreja Católica é alvo de severas críticas de diversos representantes da população brasileira. Preconceito, autoritarismo e hipocrisia são expressões usadas pelas pessoas entrevistadas que analisam sua prática, nas últimas décadas, e apontam caminhos que lhe permitiriam resgatar seu compromisso com as populações pobres e marginalizadas.
Para a sem-terra Fátima Ribeiro, do Rio Grande do Norte, a Igreja deveria retomar as deliberações de Puebla, e caminhar junto com as organizações populares, incentivar as pastorais e, inserida no meio do povo, ajudar a organizá-lo para tornar realidade um projeto popular para o Brasil. Fátima salienta o papel fundamental das CEBs nas décadas de 1970 e 1980.
Membro da Pastoral Operária e diretor do Sindicato dos Sapateiros do Ceará, Antônio Caetano da Silva acusa a hierarquia da Igreja de fechar-se para manter o poder e de ignorar o sofrimento das populações trabalhadoras. Na sua opinião, "diante das mudanças que estão ocorrendo em todos os cantos da terra, a Igreja deveria ter a sensibilidade de Jesus e caminhar ao lado dos excluídos. Do contrário, corre o risco de se tornar uma instituição irrelevante para a sociedade".
Outra voz crítica é a de Regina Célia dos Santos Ferrari. Trabalhando como leiga na pastoral há 20 anos na periferia de São Paulo, ela afirma que parte da Igreja sempre esteve ao lado dos pobres, mas, como um todo, ainda não conseguiu propor um projeto que leve os cristãos a uma única prática evangélica. "Oração e ação, esta é a questão", diz Regina Célia, que defende "mudança na estrutura da Igreja, para que todos pratiquem a pastoral da vida".
Embora reconheça algumas contribuições dadas pela Igreja, por exemplo, a Missa dos Quilombos e o trabalho que a Pastoral do Negro desenvolve, Valnízia de Ayra, mãe-de-santo do terreiro do Cobre, em Salvador, reivindica uma atitude mais respeitosa em relação ao candomblé. "A Igreja sempre negou a religião do povo negro e forçou o sincretismo. Mas, soubemos resistir e, até hoje, lutamos contra a intolerância religiosa", disse Mãe Val, como Valnízia é chamada.
Menos contundente em suas críticas, Jonatas Conceição, diretor do Movimento Negro Ilê Aiyê, na Bahia, afirma que a ala progressista da Igreja tem uma relativa aproximação com as entidades negras. Cita como exemplo a parceria entre o Ilê Aiyê e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), que colabora financeiramente com as ações do Projeto de Extensão Pedagógica desde sua criação, em 1995.
Para que esta aproximação se amplie, Jonatas defende a realização de "ações práticas e a abertura de canais de comunicação com os movimentos negros. Nós, afro-descendentes, queremos ser respeitados e aceitos como diferentes culturalmente. Pedir perdão na comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil não basta", afirma. Ainda assim, espera que o Vaticano venha a contribuir para um mundo mais tolerante.
Regina, cujo sobrenome preferiu omitir, ganha a vida com a prostituição. Ligada à Associação das Prostitutas do Ceará, a jovem classifica a Igreja como preconceituosa e diz que só conseguiu batizar um filho porque mentiu. Condena o autoritarismo de Roma, que proíbe o uso de preservativos e o casamento de religiosas/os. "O celibato não deveria ser obrigatório. Se fosse opcional, padres e freiras não seriam forçados a fazer tudo às escondidas, como vemos. Essa hipocrisia denigre a imagem da Igreja, que vem, aos poucos, perdendo seus fiéis".
Apesar de suas restrições, Regina vai à missa aos domingos, outro motivo de críticas. Na sua opinião, as celebrações são repetitivas e raramente se ouve um sermão bem preparado. "Os padres parecem celebrar por obrigação e não por amor", diz ela.
A jovem defende uma Igreja voltada para os pobres, livre de sua pesada estrutura, rica e burocrática, seguindo o exemplo de Cristo. "Se Jesus voltasse e visse como a Igreja é hoje, não iria concordar", assegura.
Box 3:
ESPIRITUALIDADE: O CAMINHO DA COMPAIXÃO
A experiência espiritual do cristianismo é fundamentalmente experiência de alteridade e experiência de um Deus encarnado. Fora destes dados centrais e absolutamente necessários, não há cristianismo. Toda tentativa de escapar disto descaracteriza a espiritualidade cristã. Acreditar que Deus se fez carne implica buscar a experiência e a união com Deus, no seio da humanidade através da carne do "outro" que sofre opressão e injustiça, e cujo rosto revela o Deus que se constitui em seu defensor e advogado.
A espiritualidade cristã, portanto, tem em seu centro o rosto do pobre: ela está longe de ser um fruir das delícias e maravilhas da contemplação dos mistérios eternos. A experiência do cristão nada mais é do que encarnar-se nas angústias do mundo para transformá-lo segundo o coração de Deus. E é por isso que se trata de uma espiritualidade que anda junto com a política e encontra sua origem e sua fecundidade na interpelação feita pela pobreza do outro e pela com-paixão que ela origina.
Este movimento não é apenas ético, mas também místico; elementos estes que não se dissociam na Revelação bíblica e no Cristianismo. É aí que mística e política mostram mais claramente sua possibilidade de integração. Encontrar a Deus é encontrar o mundo e os outros. Fugir do mundo significa afastar-se do próprio Deus. E contemplar a Deus é sinônimo de fazer acontecer o Reino de Deus no meio da realidade, com todas as suas ambigüidades e angústias.
A experiência da relação com Deus e de união com Ele no rosto do pobre, a experiência de padecer com aquele que sofre injustiça e opressão continua sendo, para a espiritualidade cristã, via privilegiada de encontro com Aquele que "não se aferrou à sua igualdade com Deus, mas despojou-se e foi encontrado como um de tantos", conforme a Carta aos Filipenses (2, 5-11). Tomar sobre si o peso e a dor em lugar do outro, em solidariedade com o outro, é não só esforço ascético e voluntarista, mas experiência espiritual das mais profundas e autênticas em todos os tempos, particularmente neste, repleto de injustiça e de violência.
[*Maria Clara L. Bingemer, Professora do Dep. de Teologia da PUC-RJ e Coordenadora do Centro de Fé e Cultura].

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