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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Continuidade e ruptura os dois rostos do Concílio Vaticano II

Enrico Morini


“Pergunto-me se a tradição, também no interior da Igreja, é um fato unívoco ou se não é acima de tudo uma pluralidade de tradições em sua mais que milenar diacronia. Agora, na minha pessoal, mas convencida hermenêutica do Vaticano II, o Concílio foi ao mesmo tempo, intencionalmente, tanto continuidade como ruptura”, escreve o historiador italiano Enrico Morini, em artigo publicado no sítio Chiesa, 21-06-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Estimado Sandro Magister,
tomo a liberdade de intervir no ajustado debate sobre a hermenêutica do Concílio Vaticano II. Me animei pelo fato de que este debate assumiu recentemente uma conotação ligada à minha cidade e à minha Igreja, enquanto estão envolvidos tanto indiretamente a “Escola de Bolonha” – representada pelo falecido Giuseppe Alberigo e por Alberto Melloni, expoentes da tese chamada da “ruptura” – como diretamente o frei também bolonhês Giovanni Cavalcoli, OP, quem, em sua defesa da tese da “continuidade”, parece desviar-se de uma posição intermediária – que recentemente em Bolonha foi confirmada por dom Agostino Marchetto –, patrocinando uma aliança com os “adversários tradicionalistas continuístas” (como Roberto de Mattei) para enfrentar o “neo-modernismo dos anticontinuístas”.
Não tenho títulos particulares para entrar neste acalorado debate: não sou teólogo, nem tenho veleidades de assumir esse papel. Por vocação, sou antes de tudo um historiador. Admito previamente que, apesar de ser bolonhês – por nascimento, formação, residência e docência – e de ardorosa “fé dossettiana” – dom Giuseppe Dossetti foi meu pai espiritual e meu ponto de referência religioso –, não tenho nenhum vínculo, nem científico nem acadêmico, com a “Escola bolonhesa” de Alberigo.
Dito isto, venho para dar-lhes a conhecer minhas reflexões no tocante à hermenêutica do Concílio. Ruptura ou continuidade? Em relação a que coisa, talvez à tradição católica? Pergunto-me se a tradição, também no interior da Igreja, é um fato unívoco ou se não é acima de tudo uma pluralidade de tradições em sua mais que milenar diacronia. Agora, na minha pessoal, mas convencida hermenêutica do Vaticano II, o Concílio foi ao mesmo tempo, intencionalmente, tanto continuidade como ruptura.
Antes de tudo, isso aparece, me parece, tanto na vontade de seu beato promotor João XXIII como na vontade dos Padres que constituíram a chamada maioria conciliar, na perspectiva da mais absoluta continuidade com a tradição do primeiro milênio, segundo uma periodização não puramente matemática mas essencial, ao ser o primeiro milênio da história da Igreja e da Igreja dos sete Concílios ainda indivisa. A auspiciada atualização finalizou precisamente nesta recuperação, neste retorno a uma época certamente preocupante, mas feliz, porque está nutrida de comunhão recíproca entre as Igrejas. Não estamos propondo, entenda-se bem, a recuperação – como lamentavelmente muitos a entenderam – de uma “ecclesiae primitivae forma”, o que é pura abstração, um mito historiagráfico dos traços gerais extremamente nebulosos e, portanto, inadequados para fundar, ou refundar, uma práxis eclesial e, talvez, precisamente por isto, convertidos em um inconsistente modelo para muitas heresias e, ainda hoje, para diferentes heterodoxias eclesiológicas.
A teoria e a práxis eclesial do primeiro milênio são tudo menos uma abstração e um mito, da forma como estão documentadas pelos escritos dos Padres da Igreja e pelas deliberações dos primeiros Concílios. É muito significativo que o anúncio do Vaticano II tenha sido percebido no começo, em alguns setores – entre os quais figura nada menos que o grande Atenágoras, que também caiu naquilo que foi definido como um “equívoco ecumênico” –, como expressamente concluído na recomposição da unidade entre os cristãos: em suma, um Concílio de união. Ainda mais significativo – também para além do valor altamente simbólico do gesto – é o fato de que o Concílio tenha terminado seus trabalhos, no dia 7 de dezembro de 1965, com o deslocamento epocal “da memória e do meio da Igreja” das recíprocas excomunhões trocadas em 1054 entre o patriarca de Constantinopla e os legados romanos (a extraordinária coragem eclesiológica deste evento foi apresentada magistralmente pelo cardeal Joseph Ratzinger em um artigo na revista Istina, em 1975).
Esta recuperação, por parte da Igreja católica, da tradição do primeiro milênio comportou de fato uma ruptura implícita – peço desculpas pela excessiva esquematização – com a tradição católica do segundo milênio. Não é verdade, me parece, que na tradição da Igreja não haja rupturas. Já houvera um hiato, precisamente na passagem do primeiro para o segundo milênio, com o giro impresso pelos reformadores “loreno-alsacianos” (o que era o caso do papa Leão IX e de dois dos três legados enviados a Constantinopla no fatídico ano 1054, o cardeal Umberto e Stefano de Lorena, futuro Papa), razão pela qual é chamada de reforma “gregoriana”, por uma aproximação eminentemente filosófica às verdades teológicas e pelo interesse desbordante pelo aspecto canônico (já lamentado por Dante Alighieri), em detrimento da Escritura e dos Padres da Igreja, próprios do pleno período medieval. Sem falar, um pouco mais tarde, da Reforma tridentina, com sua “dogmatização” rígida – indo inclusive além dos pressupostos da Igreja medieval – nem do “sequestro” da Escritura aos fiéis simples, até a apoteose da “monarquia” pontifícia no Vaticano I, relegando ainda mais para o fundo o perfil da Igreja indivisa do primeiro milênio. Não será preciso se surpreender: exatamente porque a Igreja é um organismo vivo, sua tradição está sujeita à evolução, mas também à involução.
Que tenha sido verdadeiramente este retorno a intenção mais profunda do Vaticano II pode ser coligido com vários exemplos. O mais imediato se situa no âmbito eclesiológico, onde o ensino do Concílio sobre a colegialidade episcopal é inequívoca. Ora, a colegialidade dos bispos é justamente uma característica própria da eclesiologia do primeiro milênio, também no Ocidente, onde estava perfeitamente conjugada com o primado romano. Um fato revelador: no primeiro milênio todos os pronunciamentos dogmáticos romanos que os legados papais levavam ao Oriente aos Concílios ecumênicos – referidos às questões que neles se debatiam – foram precedidos por um pronunciamento sinodal de todos os bispos pertencentes à jurisdição supra-episcopal de Roma. Pois bem, se é verdade que o maior inimigo do Concílio foi o pós-concílio – com as fugas para frente de alguns pastores de almas e de grupos de fiéis, que em nome do “espírito do Concílio” introduziram algumas práxis subversivas precisamente frente à tradição da Igreja indivisa ou que ao menos estão pedindo com insistência a introdução – me parece poder afirmar que na eclesiologia aconteceu exatamente o contrário: as normas aplicativas foram gravemente reducionistas em relação à resolução conciliar, enquanto o caráter puramente consultivo atribuído ao sínodo dos bispos não extrai as consequências obrigatórias plenas do ensinamento do Vaticano II sobre a colegialidade episcopal. E, além disso – sempre mantendo-nos no âmbito da estrutura da Igreja –, a restauração do diaconato como grau permanente da Ordem Sagrada não foi também uma recuperação da tradição do primeiro milênio?
O segundo âmbito, no qual a continuidade da reforma conciliar com o primeiro milênio é ainda mais evidente – enquanto perceptível por todos – é o litúrgico, mesmo que paradoxalmente se trata de uma amostra privilegiada dos críticos do Vaticano II para acusar o Concílio de ruptura com a tradição. O critério hermenêutico que assumo me permite afirmar exatamente o contrário, sempre sobre a base do postulado de uma pluralidade diacrônica de tradições. Também neste caso houve uma ruptura evidente com a liturgia pré-conciliar – que era notoriamente, com intervenções sucessivas, uma criação tridentina –, mas precisamente com a finalidade de recuperar a grande tradição do primeiro milênio, o da Igreja indivisa. Talvez não tenhamos bem presente que o novo Missal criticado contém a fantástica recuperação de orações extraídas dos mais antigos sacramentários – que remontam precisamente ao primeiro milênio: o Leoniano, o Gelasiano e o Gregoriano, e, para o Advento, do patrimônio eucológico do antigo Rolo de Ravena, tesouros que permaneceram em grande parte fora do Missal tridentino. O mesmo vale para a recuperação, no contexto de uma oportuna pluralidade de orações eucarísticas, da antiga anáfora de Hipólito e de outros fragmentos da tradição hispânica. Neste sentido, o Missal “conciliar” é muito mais “tradicional” do que o anterior.
Escrevo isto, colocando como corolário duas observações, que talvez não serão compartilhadas pelos “progressistas”. A primeira é que, se olharmos o estado atual do rito “ordinário” da Igreja romana, precisamente esta continuidade com a tradição do primeiro milênio, implícita na reforma conciliar, foi parcialmente obscurecida por outros desenvolvimentos no pós-concílio: por um lado, em nível de base, se produziu o mal entendido de que o Concílio promoveu uma desordenada espontaneidade litúrgica e, por outro lado, a autoridade competente procedeu à promulgação de textos criados para a ocasião – referidos a novas anáforas e a novas orações de coleta –, visivelmente alheias, por sua linguagem infelizmente atualizadora e modernamente existencial, ao estilo eucológico do primeiro milênio, profundamente inspirado no pensamento e na terminologia dos Padres da Igreja.
A segunda observação é que o motu próprio “Summorum Pontificum” – que, como se sabe, autoriza a prática do Missal tridentino como rito “extraordinário” – documento considerado por muitos como uma regressão em relação ao Concílio, para mim, pelo contrário, tem o valor indubitável de restabelecer na Igreja latina esse pluralismo litúrgico próprio, uma vez mais, do primeiro milênio. Mesmo que se trata de uma pluralidade ritual marcada pelas variações dos tempos, não pelo do espaço geográfico, essa pluralidade tem o valor de introduzir também na Igreja Católica – de forma pacífica e indolor – essa presença “vetero-ritualista”, que é um patrimônio, embora também adquirido de forma violenta e traumática, da tradição ortodoxa.
Mas me sinto em condições de compartilhar com a “Escolha bolonhesa” a possibilidade, ou antes a oportunidade, de uma leitura “adicionadora” do Concílio, coerente com seus princípios inspiradores (a expressão é de Alberto Melloni), que permite, ou antes sugere, ao supremo magistério assumir hoje decisões que o Vaticano II, no clima histórico do momento, não pôde levar em consideração. Este princípio inspirador – que considero ser a hermenêutica correta do Concílio – é precisamente a recuperação da tradição do primeiro milênio, como implicitamente destacou o cardeal Ratzinger quando escreveu – em uma passagem que o atual pontífice nunca contradisse explicitamente – que na fisionomia de uma Igreja finalmente reunificada não é necessário impor aos ortodoxos nada mais que aquilo que eles creram no primeiro milênio de comunhão.
Por isso, não está de maneira alguma no “espírito do Concílio” introduzir na Igreja inovações desconsideradas, na doutrina e na práxis teológica, como seriam o sacerdócio feminino ou os aberrantes desenvolvimentos na ética e na bioética. Mas estaria perfeitamente no “espírito do Concílio” – sempre para exemplificar – eliminar do “Credo” o acréscimo unilateral, injustificado e ofensivo do “Filioque” (sem que isto implique uma negação da tradicional doutrina dos Padres latinos – também eles do primeiro milênio – relativa ao fato de que o Espírito Santo também procede do Filho, como de um único princípio com o Pai). Este acréscimo representa infelizmente o fruto mais evidente, pelo fortíssimo significado simbólico, desse processo de franco-germanização teológica e cultural da Igreja romana – iniciado pelos Papas de língua francesa do final do primeiro milênio e pelos Papas alemães do começo do segundo milênio – denunciado em termos certamente exasperantes, mas não inteiramente infundados, pelo falecido teólogo grego conservador Ioannis Romanidis. E, portanto, não subsiste apenas este acréscimo, mas ele foi retomado também em textos de composição “pós-conciliar” e, também – sei bem disso –, é ainda hoje vergonhosamente imposta a uma bela e florescente Igreja oriental unida a Roma, ou seja, à Igreja greco-católica ucraniana.
Em síntese, para concluir com uma fórmula sintética estas minhas considerações pessoais: ao promover a renovação da Igreja o Concílio não tentou introduzir algo novo – como respectivamente desejam e temem progressistas e conservadores –, mas retornar àquilo que se havia perdido.
Enrico Morini
Bolonha, 13 de junho de 2011.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=44599
Para ler mais:
• ''Bento XVI dinamitou todas as pontes com a modernidade''
• Os frutos do Concílio
• Um Vaticano II sem rótulos
• Recepção do Vaticano II em discussão
• Duas missas para uma única Igreja
• Os grandes desiludidos com Bento XVI
• Os desiludidos falaram. O Vaticano responde
• Abril, o mês cruel da Igreja para as relações com os tradicionalistas
• As duas grandes rupturas depois do Concílio Vaticano II, segundo papa Ratzinger
• O Papa e a interpretação do Concílio. Artigo de Joseph A. Komonchak
• Igreja mergulha em longo processo neoconservador. Entrevista especial com João Batista Libânio
• Alvorecer ou declínio do Concílio?
• O Concílio: doutrina e interpretações
• Para onde vai a Igreja, hoje? Revista IHU On-Line nº 320
• ''Um outro concílio? Só se for em Manila ou no Rio, não em Roma'' Entrevista especial com John W. O'Malley
• Impacto do Concílio Vaticano II e da Teologia Latino-Americana na América Central
• Dez motivos para lembrar o Concílio Vaticano II O retrocesso contra o Concílio Vaticano II

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