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terça-feira, 31 de julho de 2012

Uma clara opção pelos direitos das mulheres




Entrevista com Ivone Gebara,religiosa das conegas de santo agostinho, teologa e feminista!
Mariana Carbajal
Página 12
Quinta-feira, 26 de julho de 2012
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada no jornal Página/12. A tradução é do Cepat.

Foto: Rafael Yohai
Seu sobrenome ecoa a revolução na América Latina. Ivone Gebara é brasileira, freira e feminista. Pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora -Cônegas de Santo Agostinho- e há décadas vive no Nordeste do Brasil, numa vida de "inclusão" no meio popular. Atualmente reside em Camaragibe, na periferia de Recife. De dentro da Igreja procura mudá-la. Dedica-se, fundamentalmente a partir de uma teologia feminista, desconstruir o direito natural, patriarcal e machista que a hierarquia católica pretende impor. Devido as suas posições, especialmente em favor da despenalização e legalização do aborto, recebeu severos castigos impostos pelo Vaticano. Porém, Ivone não se cala.
Ela nasceu em 1944. É doutora em Filosofia pela Universidade Católica de São Paulo e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Durante 17 anos, lecionou no Instituto de Teologia de Recife, até a sua dissolução ordenada pelo Vaticano, em 1999, como uma forma de silenciá-la. Desde então, dedica o seu tempo, principalmente, para escrever, dar cursos e conferências sobre a hermenêutica feminista, novas referências antropológicas e a ética e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.
É autora de mais de 30 livros e de dezenas de artigos e ensaios, entre eles: "Trindade: palavra sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva ecofeminista" (1994), "Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião" (1997), "Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal" (2000), "Mulheres de mobilidade escravas: as mulheres do nordeste, uma vida melhor e feminismo" (2000), "As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade" (2005); "O que é teologia?" (2006), "O que é teologia feminista?" (2007), "O que é cristianismo?" (2008) e "Compartilhar os pães e os peixes. O cristianismo, a teologia e teologia feminista" (2008).
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada no jornal Página/12, 23-07-2012. A tradução é do Cepat. Eis a entrevista.
Por que quis ser freira?
É uma longa história. Eu sempre havia estudado em colégio de freiras, mas nunca tinha desejado ser freira. Porém, de repente, nos anos 1960, entrei na universidade para estudar filosofia e me encontrei com algumas freiras que estavam bastante vinculadas politicamente e que trabalhavam com populações pobres, e comecei a pensar isso para mim como uma alternativa de vida. Não tinha isso muito claro, mas parecia uma vida mais livre do que a vida familiar e com parceiro.
Soa estranho que tenho ido para um convento em busca de liberdade...
É que nunca me senti cerceada. Algumas vezes ia para conferências na Universidade de São Paulo, que era um foco de luta antiditadura, e tinha a chave da casa das freiras. Minha história foi a de busca por liberdade. Não suporto que me impeçam de pensar. É um direito pensar diferente. E isso tem sido a chave de minha vida, com todos os tropeços e as contradições, porque as vezes não se enxerga claro, e se trilha um caminho e depois não é por ali.
Realmente soa contraditório que uma mulher busque liberdade dentro de uma estrutura patriarcal, machista e conservadora como a Igreja Católica. Como você entende isto?
Sim, bastante contraditório. Entrei na vida religiosa em 1967, quando tinha 22 anos. Era o momento das grandes mudanças da Igreja Católica, exatamente depois do Concílio Vaticano II. As congregações religiosas eram convidadas a "aggiornarse" [atualizar-se]. Foi o tempo em que deixamos as instituições para viver entre os pobres. E essa tem sido uma característica da vida das mulheres: sair das instituições e viver nas comunidades populares. Para mim era uma vida cheia de desafios. Queria mudar o mundo desde quando era estudante. Sempre me pareceu uma injustiça que houvesse gente tão rica e gente tão pobre. Pensava que algo poderia ser feito. A vida das freiras me pareceu "um" caminho, não "o" caminho, que se ajustava um pouco com a minha tradição familiar, onde era muito protegida e resguardada.
Sua família era muito religiosa?
Não. Venho de uma família de imigrantes sírio-libaneses, com todos os medos que os imigrantes possuem, sobretudo, com as meninas, levando-os a não permitir que elas saiam sozinhas. Sou filha da primeira geração no Brasil. Lutei muito para frequentar a universidade. Meus pais não queriam. Não pelo fato de não quererem que eu estudasse, mas porque pensavam que o mundo podia ser perigoso para mim. Essas coisas nunca me entraram. Sempre fui rebelde. Sempre fui uma brigona dentro das estruturas familiares.
Com esse espírito tão rebelde, não se sentiu limitada no convento?
Não posso dizer que não tinham coisas que me limitavam. Claro, houve, como em todas as formas de vida. Contudo, uma característica em minha congregação é a de que é preciso respeitar a liberdade das pessoas. Isto é muito forte. E, às vezes, chega a ser bastante contraditório.
Qual é a sua congregação?
Irmãs de Nossa Senhora, uma congregação de origem francesa, apenas de mulheres. Estamos em muitos países: França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Vietnã, Hong Kong e na América Latina, no Brasil e México.
Como é o vínculo das congregações de mulheres com o Vaticano?
Oficialmente há um vínculo de dependência, no sentido de que a organização das congregações é aprovada pelo Vaticano. Algumas mulheres tem se submetido, mas nós procuramos fazer o que acreditávamos que era nossa interpretação do Evangelho. Sempre brigamos, inclusive com o Vaticano, discutindo nossos textos.
Sua congregação é feminista?
Não. Há pouquíssimas freiras feministas na congregação. Não sei se posso nomear, comigo, mais que quatro.
Como começou a incorporar a consciência de gênero?
Eu pertencia à Teologia da Libertação. Sempre trabalhei na perspectiva da libertação dos pobres, dos movimentos sociais e políticos. O foco era mudar o mundo a partir dos pobres. Eu sabia que existia o feminismo, conhecia algo do feminismo norte-americano, brasileiro e argentino. Porém, na Teologia da Libertação, sobretudo os homens mais eminentes, diziam que o feminismo era coisa da América do Norte, que o feminismo na América Latina era importado. Como militante da Teologia da Libertação, trabalhava no Instituto de Teologia de Recife, dando palestras. Sempre existia uma desconfiança em relação ao feminismo. Até que meu caminho e o do feminismo se cruzaram de muitas formas.
Uma primeira delas foi com uma mulher de um bairro popular, local em que eu ia dar aulas para homens operários sobre a Bíblia. Eu ia uma vez por mês na casa de um deles, onde se reuniam de oito a dez operários. Estudávamos a Bíblia numa perspectiva social, para fundamentar as greves, as reivindicações trabalhistas. Eu sempre fazia a leitura da Bíblia que confirmava os direitos dos trabalhadores. A esposa do dono da casa nunca participava das conversas, ficava na cozinha ou nos trazia café. Até que um dia fui visitar apenas ela e lhe perguntei por que não participava das nossas conversas. Ela me disse que precisava cuidar de suas crianças, que tinha que fazer o café. Discutimos. Até que, quase irritada, disse-me: "Quer saber o motivo pelo qual não vou? Porque você fala como um homem". Eu tentei defender-me. Ela me perguntou: "Você conhece os problemas econômicos que nós, mulheres de operários, temos?" Não. "Você sabia que a sexta-feira é o pior dia para nós, porque o salário do trabalhador sai no sábado e na sexta quase não há comida?" Não, eu dizia. "Você sabe o tipo de trabalho que fazemos para aproveitar o salário do esposo?" Não. "Você sabe as dificuldades sexuais que temos com nossos esposos?" Não. "Entende porque não quero participar de suas conversas, porque não fala a partir de nós", disse-me. Essa mulher me abriu os olhos. Eu não me dava conta de que abria os olhos para minha condição de mulher na Igreja.
E como chegou ao feminismo?
Comecei a ler as teólogas feministas norte-americanas como Mary Daly. Li sua obra "Para além do Deus Pai". Quase morri porque ela criticava quase tudo o que eu acreditava. Tomava-me as entranhas, comecei a pensar... Li Dorothe Sölle, uma alemã que falava da cumplicidade das Igrejas cristãs com o nazismo e da relação entre a figura de Deus pai e o general. Assim que entrei no convento, tinha vivido de perto a repressão. Ensinava filosofia numa escola pública e eram tempos de ditadura militar. Fui detida junto com uma de minhas amigas, que era professora de química, mas às duas da manhã, a polícia me deixou sair e ela ficou detida. Minha amiga pertencia a um grupo político. Eles a torturaram e, finalmente, quando ela saiu, ao ver aos torturadores na rua, acabou adoecendo e morreu.
Esse artigo sobre o nazismo abriu-me as portas para pensar a ditadura do Brasil e, também, como a religião se misturava em tudo isso. As manifestações nas praças públicas, da "Tradição, Família e Propriedade", com rosários nas mãos -não sei se aqui (na Argentina) também fizeram isso- para defender as pessoas do comunismo e apoiar aos militares. Também lia muitas norte-americanas. Isso começou a me iluminar. A chave foi que um dia encontrei-me com duas feministas, em São Paulo, e uma delas me disse: "Vocês trabalham teologia, mas quais são os conteúdos?" Sobre Jesus Cristo e outras coisas, disse-lhe. E ela me perguntou que mudança isso provocava na vida das mulheres, se eu trabalhava a questão da sexualidade, se havia enfrentado o tema do aborto. "Não", disse-lhe. E me dei conta de que não conhecia nada das mulheres. Esse foi o começo. Aproximei-me de grupos feministas de Recife, como o "SOS corpo, democracia e cidadania". Decidimos programar três encontros entre feministas liberais e teólogas, em Recife, São Paulo e Rio. A partir desse momento, fiz minha opção pelo feminismo, por volta de 1992.
O que a levou a se envolver com a defesa da despenalização do aborto, um dos pecados mais graves para a Igreja Católica?
Foram muitas eventualidades. As grandes mudanças em minha vida vieram por acaso. Eu apoiava a causa por saber de mulheres que tinham feito abortos em meu bairro e também entre as feministas. Apoiava como pessoa, mas não tinha as coisas muito claras. Até que um dia uma das feministas de São Paulo me telefona, em Recife, e pergunta se eu podia conceder uma entrevista para a revista "Veja" sobre a Igreja Católica e a formação de padres, e eu aceitei. Dei a entrevista. Ao final, o jornalista me pergunta, em "off the record" [privadamente], se eu conhecia casos de mulheres que tinham realizado abortos. Justamente naquele momento, tinha ocorrido o fato de que uma menina, que eu conhecia do bairro, que já tinha cinco filhos e havia se apaixonado por um homem que trabalhava numa estação de serviço, voltou a ficar grávida após passarem uma noite juntos. Ela tinha problemas mentais e tinha feito o aborto com misoprostol. Comentei com ele. Nesse caso, o jornalista me disse que não existia pecado. Eu digo: "Claro, não é um pecado". Então, rompendo o "off the record" [confidência], o jornalista publica a entrevista na revista dizendo que uma freira católica era contra a hipocrisia da Igreja e a favor do aborto. O fato incomodou-me.
Era a primeira vez que você se manifestava publicamente a favor do aborto?
Sim. Foi uma bagunça total. O assunto repercutiu na imprensa nacional e internacional. Publicaram uma foto minha, com um crucifixo e a Virgem, para fazer sensacionalismo com o assunto. Isso foi em 1994 ou 1995. O bispo de minha diocese me pediu uma retratação pública. Eu não aceitei. Disse-lhe que sabia das dores das mulheres. De imediato veio-me uma grande coragem. Porém, chegou até a mim uma segunda carta, outra vez pedindo uma retratação pública, queriam que eu acusasse o jornalista de mentiroso. Neguei-me. Na terceira carta me avisaram que enviariam um parecer ao Vaticano, para abrir um processo contra mim. O Vaticano reagiu e tive que fazer muitas coisas.
Qual foi o castigo?
Primeiro, quiseram me tirar da minha congregação. Entretanto, não conseguiram porque as autoridades de minha congregação não apoiavam o aborto, mas me apoiavam. Propuseram-me outra alternativa: sair do Brasil e voltar a fazer estudos de teologia. Eu já tinha uma licenciatura e um doutorado em filosofia. Obrigaram-me a estudar novamente. Na carta do Vaticano, diziam que eu era uma pessoa muito ingênua, que não havia me fundamentado a partir dos pontos que a Igreja negava, e por minha ingenuidade me mandavam para estudar, para aprender novamente a doutrina católica. Queriam que eu fosse para Europa. Como eu já tinha estudado na Bélgica, decidimos que fosse lá. As pessoas têm sido muito boas comigo. Não tive nenhum problema. Fiz outro doutorado. A contradição é essa: você é condenada e depois até se esquecem de que foi condenada e dão-lhe um doutorado em nome do papa João Paulo II. É quase engraçado.
Com quais argumentos defende a despenalização do aborto numa estrutura como a da Igreja Católica, que condena tão duramente essa prática, inclusive, quando se trata de uma gravidez produto de um estupro ou quando a vida da mulher corre risco?
Nem em caso de fetos anencéfalos a Igreja o permite. É algo espantoso. Existe uma forma de fazer teologia metafísica que naturaliza a maternidade, que a torna dependente de um ser supra-histórico. Eu faço a desconstrução desse tipo de pensamento. Em minha militância pela causa das mulheres, não somente do aborto, trabalho na teologia feminista. E eles não aceitam. Eu também sofri um segundo processo por meu pensamento. Tive que responder três páginas de perguntas: se acredito na Trindade, se acredito que o Papa é infalível, coisas desse tipo.
O que faço é a desconstrução do discurso religioso justificador da superioridade masculina. Justificador, também, da concepção de que existe uma supra-história que nos conduz. Desconstruo o que é a natureza. Inclusive, um bispo justifica que se deve levar adiante uma gravidez de um feto anencéfalo porque Deus quer assim, o que é de um primitivismo até chocante. Uma pessoa mais simples não diz um absurdo como esse. Meu trabalho é desconstruir isso e também a Bíblia como a palavra de Deus. Eu digo: não é a palavra, é uma palavra humana, onde se coloca uma pessoa pela qual lhe é atribuído, dependendo dos textos, uma característica. Algumas vezes Deus é vingador, às vezes é bom, às vezes manda matar profetas.
Procuro entrar pela linha do humanismo, onde a dor do outro me toca, provoca-me. Deus é mais um verbo. Quero "deusar", quero sentir sua dor e quero que sinta minha dor. Não há uma lei do alto que diga "não faça abortos" ou "não mates". O fato é que de muitas maneiras nos matamos, inclusive, afirmando que não mate. A vida social é uma vida de vida e morte. Meu principal trabalho é a desconstrução do pensamento, da filosofia, da teologia que mantém estas posições contra as escolhas das mulheres, contra os corpos femininos, contra as dores femininas. E isto incomoda muito, porque eles dizem que, segundo Santo Tomás, a alma masculina vem primeira, para novamente demonstrar a superioridade masculina, ou sustentam que a partir do início da união do óvulo e o espermatozoide, a alma está criada por Deus. E agora adotam a ciência do DNA para justificar suas posições.
O que responde para essas argumentações?
Digo coisas muito simples. O óvulo é uma possibilidade de se tornar um ser humano, mas para poder se tornar um ser humano, necessita de sociabilidade, de vida. A Igreja valoriza muito mais a vida do feto do que a das mulheres e, então, minha pergunta é por que a vida das mulheres tem menos valor. Falam da inocência. E eu digo: "O que é a inocência? Por que se fala da inocência do feto e não da inocência da mulher que foi estuprada?" Não são argumentos que convencem a todas as mulheres católicas, mas se posso fazer um processo de formação, existem luzes que se acendem. Algumas vezes me dizem: "Aquele do alto quer isto". E eu digo: "Esse daqui, você, tem que decidir". O que faço é sempre trazer a responsabilidade não para o sacerdote, o bispo, Deus, a Virgem. Eu digo: "Quem decide é você". Também faço a reconstrução de algumas coisas do cristianismo. O cristianismo fala da encarnação. Eles acreditam que apenas Jesus encarna. Não é assim. Há muitas correntes. O divino está em carne humana. Também aí argumento. E digo para as mulheres que é preciso mudar essa crença. O divino habita em cada uma. É por aí, um pouco, que faço a reconstrução da teologia e das filosofias que mantém esta postura.
E na sua congregação, você é apoiada?
Apoiam-me como pessoa. Fazemos uma distinção. Eu estou muito presente quando necessitam de mim, caso alguém esteja enferma, quando me pedem um texto para um retiro, para algumas anciãs. Também em meu bairro, no Recife, com a gente simples que vem me dizer que fez uma promessa. Eu escuto. Contudo, também tenho o outro lado, o intelectual, de "des-construtora" das teorias dominadoras das pessoas, não apenas das mulheres, dominam também os pobres. Sinto pena em ver a quantidade de igrejas neopentecostais, na televisão, que tomam o dinheiro das pessoas para fazer milagres e tirar o diabo das pessoas: isso não é religião, é mercado, negócio.
Por que vozes como a sua são tão isoladas dentro da Igreja Católica?
É que não nos dão nenhum espaço. O Vaticano fechou o Instituto de Teologia de Recife, onde eu trabalhava, porque diziam que éramos comunistas e não era uma instituição séria para a formação do clero. Depois do fechamento, e por defender a legalização do aborto, não tenho lugar na instituição como professora, embora com dois títulos de doutorado, com mais de 30 livros publicados e muitíssimos artigos, porque causo preocupação. E também existe outro problema que é muito sério: muito menos temos lugar nas paróquias, nos lugares onde as pessoas estão. Perto de minha casa, existe um convento de freiras de clausura e elas me convidavam para que fosse falar, para contar como as coisas estavam lá fora, e o bispo -não o atual, o anterior- telefonou para elas e disse que eu era uma mulher muito perigosa, que não me convidassem mais. Os espaços de reprodução deste pensamento são absolutamente escassos.
Tem pensado em sair da Igreja?
Não. Por coerência com certo feminismo e com o cristianismo. Porque sair significa também desvincular-se das mulheres, as que mais sofrem, todas são crentes. Acredito que as feministas não têm trabalhado suficientemente as cadeias religiosas dos meios populares, que são cadeias que consolam e oprimem ao mesmo tempo. Não se pode ser feminista ignorando a pertença religiosa das mulheres; se elas não são católicas, são da Assembleia de Deus ou da Igreja Universal, ou do candomblé ou do espiritismo. E em cada um destes lugares há uma dominação dos corpos femininos. A religião é um componente importantíssimo na construção da cultura latino-americana, a tal ponto que aqui, na Argentina, a ligação entre Igreja e Estado é muito forte. No Brasil, oficialmente, temos a separação, mas na cultura não. A presidenta Dilma tem sido tão pressionada, na cultura, que já não diz mais sua posição a favor da despenalização do aborto. Retratou-se. É necessário mudar a Igreja a partir de dentro.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sobre a carta aos bispos do Paraguai

Quinta-feira, 26 de julho de 2012 - 11h01min
A reportagem é de Washington Uranga e está publicada no jornal Página/12. A tradução é do Cepat.


O pronunciamento dos responsáveis da Pastoral Social coloca em evidência um forte debate no seio da Igreja católica no Paraguai diante da destituição de Lugo e da atuação da hierarquia eclesiástica.
Enquanto em Roma o embaixador do Paraguai no Vaticano, Esteban Kriskovich, insiste em que "tivemos reuniões na Santa Sé e a Secretaria de Estado reconhece plenamente o novo governo" e anuncia que o governo de Federico Franco convidou Bento XVI para visitar o país, em Assunção foi divulgada uma carta assinada dias atrás pelos representantes da Pastoral Social de 11 dioceses e prelazias apostólicas na qual solicitam aos bispos católicos para que "façam uma declaração que corrija a visão que se tem dado da Igreja de Jesus Cristo ao povo paraguaio e ao mundo sobre esses acontecimentos (que culminaram no golpe institucional contra Fernando Lugo) e, dessa maneira, se reafirme o seu compromisso de pastores com os mais humildes e desprotegidos".

O pronunciamento dos responsáveis da Pastoral Social, incluído o secretariado nacional desse ramo de atividade eclesiástica, contrasta com o imediato reconhecimento que o Vaticano, através do núncio apostólico (embaixador do Vaticano), Eliseo Ariotti, deu ao governo de Federico Franco. O núncio foi o primeiro embaixador estrangeiro a se encontrar com Franco no dia 23 de junho, dia seguinte à destituição de Lugo, e a foto do encontro foi amplamente divulgada mundo afora, enquanto os países sul-americanos condenavam o golpe parlamentar.

Poucos dias antes da derrocada de Lugo, os bispos católicos lhe haviam solicitado que renunciasse à presidência. Diante desse fato, os responsáveis da Pastoral Social dizem agora que "a atuação de alguns membros da CEP (Conferência dos Bispos do Paraguai), de solicitar ao presidente da República que renunciasse, produziu surpresa, confusão, dor e indignação entre os fiéis e a população, principalmente entre as pessoas mais humildes", porque "vimos, por um lado, a aprovação de setores do poder e, por outro, a desaprovação de setores populares, que consideram esta postura como um afastamento da Igreja dos mais pobres e excluídos".

Ao mesmo tempo torna os bispos diretamente responsáveis pelo golpe em vista de que "as expressões e ações de alguns bispos da CEP que visitaram o presidente Lugo para pedir sua renúncia foram posteriormente utilizadas por alguns parlamentares, como Miguel A. (Tito) Saguier e Juan Carlos Galaverna, para dizer que a Igreja já apoiava este julgamento e fundamentar sua tese de destituição do presidente". Galaverna foi o principal acusador de Lugo na sessão do Senado que terminou com sua destituição.

O pronunciamento dos responsáveis da Pastoral Social coloca em evidência um forte debate no interior da Igreja católica no Paraguai diante da destituição de Lugo e da atuação da hierarquia católica. O documento, em forma de carta dirigida aos bispos responsáveis pela Pastoral Social (Mario Melanio, Oscar Páez Garcete e Cándido Cárdenas), fundamenta-se na necessidade de fidelidade à "nossa missão e ao mandato evangélico da opção preferencial pelos pobres, implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza (Documento de Aparecida n. 392) e que aparece inúmeras vezes no Evangelho, nos documentos da Igreja e na mesma linha de ação pastoral no Paraguai".

Em sua análise política os coordenadores da Pastoral Social qualificam a destituição de Lugo de "golpe de Estado parlamentar" e asseguram que se trata de "um elo a mais no processo que vivemos em nosso país desde a chegada ao poder do presidente Lugo". Para os dirigentes católicos que discordam dos bispos, "depois de 24 tentativas de julgamento político, materializado com a destituição de um presidente eleito por ampla maioria, realiza-se um julgamento político simulado por causas totalmente alheias a um julgamento sério, como, por exemplo, a paternidade do presidente Lugo, a questão ideológica, a amizade de Lugo com dirigentes Sem Terra, etc.". Defendem, em consequência, que "o que aconteceu foi um golpe de Estado e um duro revés no processo democrático paraguaio".

Quanto aos fatos de Curuguaty, onde morreram camponeses e policiais e que serviram de desculpa para o julgamento político de Lugo, os delegados da Pastoral Social afirmam que "é muito doloroso viver uma violência entre compatriotas camponeses e policiais no confuso e suspeito acontecimento de Curuguaty, o que nos leva a exigir uma profunda investigação, esclarecimento e punição dos responsáveis, sem esquecer que, aparentemente, tudo foi uma montagem para justificar o golpe de Estado que deram".

Qualificam o fato como "claro oportunismo político de setores que, semanas antes, haviam negado o mesmo tipo de julgamento a vários membros da Suprema Corte de Justiça e que pretendiam distribuir cerca de 50 milhões de dólares a operadores políticos, através do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral". E exigem "dar atenção humana e jurídica aos feridos, aos que estão nas prisões e seus familiares, assim como também ao processo de libertação dos presos e envolvidos".

Assinalam também que "em nosso diálogo fraterno com alguns camponeses atingidos pelos acontecimentos ocorridos em Curuguaty, sentimos a necessidade urgente de que a Igreja acompanhe de forma institucional as vítimas", para o que propõem uma série de ações concretas e imediatas. Neste sentido, pedem aos bispos que exijam "do Estado o esclarecimento dos fatos", que apoiem "os camponeses com a assessoria jurídica necessária" e que sigam "trabalhando, sem ambiguidades, na implantação da Reforma Agrária integral e na recuperação das terras ilegais".
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=1&noticiaId=3232

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Casaldáliga: "La Iglesia vive una hora de decepción y de involución"


Pedro Casaldáliga, un profeta en la Amazonía

"Le falta proximidad y credibilidad"

"El ecumenismo y el macroecumenismo se impondrán"

Redacción, 04 de julio de 2012 a las 16:06
 Ahora miro de aceptar con humor esperanzado las limitaciones que me impone el Parkinson y la solicitud de los que me acompañan
El obispo emérito de Sao Felix do Araguaia (Brasil), el claretiano catalán Pere Casaldáliga, considera que "nuestra Iglesia vive una hora de decepción y de involución, de distancias dolorosas entre la institución y el pueblo".
En una entrevista que publica el último número de la revista interna de los misioneros claretianos "NUNC" (Nuntii de Universa Nostra Congregatione), el denominado "obispo de los pobres" y una de las principales figuras de la Teología de la Liberación denuncia que en la Iglesia católica "falta proximidad en las estructuras y credibilidad".
"Por contrapartida -argumenta Casaldáliga-crece una fe adulta y corresponsable en muchos sectores del laicado. Pero hay una libertad de espíritu, que puede tener sus excesos pero que tiene mucho de vivencia personalizada y comunitaria, signo de los tiempos, seguimiento de Jesús y apertura profética al mundo de hoy".
Según el obispo catalán, "el ecumenismo y el macroecumenismo se impondrán" y advierte que, en la misión de las Iglesias de América Latina, "hemos de asumir el despertar organizado de los pueblos primigenios de nuestra Afroamerindia".
Nacido en Balsareny (Barcelona) en 1928, Casaldáliga ha cumplido 84 años y batalla contra la enfermedad del Parkinson, pero sigue "con la opción por los pobres, como gran motivación de mi vida".
Casaldáliga se define como "un misionero claretiano que reconoce haber fallado mucho como miembro de la Congregación, a la que debo casi todo".
"Ahora miro de aceptar con humor esperanzado las limitaciones que me impone el Parkinson y la solicitud de los que me acompañan", explica el obispo de la liberación, que dedica más horas a meditar, recibir visitas y escribir algunos mensajes, mientras recomienda a la Iglesia que asuma "de lleno el desafío de los medios de comunicación".
(Rd/Efe)

terça-feira, 10 de julho de 2012

Concílio: 50 anos de recepção na Igreja da América Latina

10.07.12 - América Latina

Dom Demétrio Valentini - Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira até novembro de 2011

Adital

Assembleia da CLAR – Quito - 19/06/112.

Introdução

Agradeço o convite para refletir com vocês um assunto que pode ser olhado sob muitos ângulos diferentes e complementares: o impacto do Concílio Ecumênico Vaticano Segundo na Igreja da América Latina.

Portanto, uma tentativa de olhar um acontecimento de âmbito mundial, o Vigésimo Primeiro Concílio Ecumênico da história da Igreja, mas visto a partir da caminhada eclesial de um continente, a Igreja na América Latina.

Haveria muitos episódios interessantes, do processo conciliar, que poderiam ser objeto de nossa curiosidade histórica. Mas nosso interesse não é meramente histórico. Pois se trata de conferir como o processo conciliar interferiu Igreja da América Latina, e ver como podemos nos apropriar deste processo, para prosseguir nossa caminhada eclesial.

Só vale a pena recordar fatos, na medida em que eles iluminam a realidade atual, e podem servir de referência para discernir os novos passos a dar.

Por isto, proponho olhar o Concílio, a partir de sua incidência na Igreja na América Latina. Partindo mais de sua recepção, do que do amplo evento histórico, que foi o Concílio Vaticano II.

Mas não deixa de ser importante vincular a situação atual com o evento histórico do Concílio. Depois de 50 anos de sua realização, o Concilio corre o risco de ser ignorado, ou esquecido.

Na última assembleia da CNBB, em abril deste ano, levei um susto, quando constatei que nenhum dos 300 bispos titulares do Brasil tinha participado da sessão de abertura do Concilio, no dia 11 de outubro de 1962. Em 50 anos, o tempo levou toda uma assembléia da CNBB!

O susto foi maior, porque me vi como último sobrevivente de uma geração de bispos que viveram o clima todo especial a abertura do Concílio!

No dia 11 de outubro de 1962 eu tive a sorte de estar na Basílica São Pedro, e acompanhar de perto aquele momento histórico da abertura oficial do Concílio.

Foi uma experiência singular, que ainda lembro vivamente. Tinha ido cedo à Praça São Pedro, para ver de perto a procissão dos 2500 bispos que tinham vindo para o Concílio. Foi quando tive a sorte grande: o Frei Boaventura Klopenburg, um dos peritos na preparação do Concílio, me deu uma credencial de jornalista, com a qual pude entrar na Basílica. Acabei me colocando mais perto do Papa do que todos os cardeais, arcebispos e bispos.

Este fato me colocou no compromisso de me empenhar para que a memória do Concilio não se perca. Com esta intenção escrevi um pequeno livro, com o título: "Revisitar o Concílio Vaticano II”, onde narro de maneira sucinta o rico processo conciliar. Ele pode ajudar. Em todo o caso, estou pagando o preço de ter escrito o livro: nesse ano do jubileu do Concílio, tenho a agenda cheia de encontros para refletir sobre o Vaticano Segundo.

1- As primícias do jubileu do Concílio. Algumas constatações

Dos diversos momentos de reflexão sobre o Concílio, já deu para perceber algumas constatações interessantes.

Em primeiro lugar, o povo, os leigos, a juventude, quando tomam conhecimento do que foi o Concílio, do clima de abertura, de participação, e de esperança que suscitou, logo se dão conta que o Concílio foi uma graça de Deus. Só mesmo com a ajuda de Deus foi possível fazer um Concílio como este! Esta a constatação que as pessoas fazem.

João 23 reconhecia na pronta adesão do povo um sinal da vontade de Deus. Agora, me parece importante reconhecer que a mão de Deus esteve presente neste Concílio. Por isto, não dá para desprezar, ou relativizar o Vaticano II!

Outra constatação incide sobre a consistência deste Concílio. Foi um concílio para valer. Assumiu um tema denso, a Igreja, na abrangência de suas diversas dimensões. Um concílio, portanto, que demanda tempo para ser implementado e assimilado.

Neste sentido, percebe-se que o Vaticano II desencadeou um processo, que ainda está em aberto. Independente se for ou não convocado um novo Concílio, o importante é sustentar o processo desencadeado pelo Vaticano II..

Mas a constatação mais fecunda, é que este Concílio precisa ser olhado com grandeza de ânimo. Mesmo condicionado por diversas circunstâncias históricas, só nos situamos adequadamente diante do Vaticano II reconhecendo suas grandes intenções e sua abertura de espírito.

O Concílio não foi um meteoro estranho, que passou perto de nosso planeta, e lentamente vai desaparecendo no horizonte. Ao contrário, a celebração do seu jubileu parece comprovar sua validade. O Vaticano II foi um momento de intensa vivência eclesial, que agora precisa ser integrado na dinâmica da vida da Igreja.

2- O Concílio e a identidade da Igreja na América Latina

A Igreja da América Latina abraçou o Concílio com muita generosidade e prontidão. Antes mesmo da conclusão do Concílio, Dom Larain e dom Helder Câmara levaram a Paulo VI a sugestão de realizar um grande encontro, para adaptar o Concílio à realidade própria da América Latina.

Foi com esta intenção que se realizou a Conferência de Medellín. Ela já foi pensada de acordo com o espírito do Concílio, que tinha colocado os fundamentos para uma legítima descentralização das estruturas eclesiais, em vista da encarnação da Igreja nas realidades locais.

O Concílio Vaticano II encontrou a Igreja da América Latina em pleno processo de afirmação de sua própria identidade eclesial. O continente latino-americano,e a Igreja da América Latina, estavam despertando para assumirem sua própria identidade, libertando-se de dependências históricas, que de diversas maneiras tinham impedido a afirmação de sua autonomia.

A questão central é conferir em que medida a recepção do Concílio estimulou e fortaleceu esta identificação, ou de que maneira esta identificação foi obstaculizada.

Em primeiro lugar é forçoso reconhecer que o Concílio se constituiu num fator de grande incentivo para o processo de descentralização eclesial.

O Concílio forneceu o suporte teológico, que possibilitava sonhar com a sadia diversidade de Igrejas Locais, que iriam enriquecendo a Igreja Universal, por suas fisionomias eclesiais próprias.

Desta maneira, as lideranças episcopais da América Latina aceleraram a recepção do Concílio, realizando uma "Conferência Geral”, que assumiria a forma de uma espécie de "Concílio Regional” , para assimilar as grandes intuições do Vaticano II no contexto da realidade latino americana.

O continente latino americano estava sequioso de autonomia política e de afirmação de sua identidade. A Igreja estava disposta a abraçar as causas do povo, contribuindo com sua presença de serviço e oferecendo a riqueza de sua fé, que estimulava a integração de valores culturais e humanos em sua fisionomia eclesial. Nestes contexto, o Concílio chegou com sua autoridade inquestionável, de avalista deste processo de identificação continental, tanto do ponto de vista político como eclesial.

O Concílio Vaticano II veio fecundar o processo libertário da América Latina, envolvendo a Igreja de maneira muito intensa.

O Vaticano II encontrou a Igreja da América Latina despertando para a sua autonomia e sua identidade própria. Ele estimulou este processo, e a Igreja da América Latina abraçou o Concílio, sem calcular as resistências que iria encontrar, provenientes tanto de dentro de si própria, como de fora, por parte quem se sentia na obrigação de continuar tutelando a Igreja da América Latina, na suposição de que ela ainda não tivesse atingido sua maturidade.

Em primeiro lugar, portanto, o Concílio despertou a Igreja da América Latina, incentivando-a assumir sua própria identidade, de maneira autônoma e responsável.

Ao mesmo tempo, começaram cedo as resistências a este processo, sobretudo diante de algumas expressões eclesiais que se tornariam típicas da Igreja na América Latina, e que podem ser assim elencadas:

- As Comunidades Eclesiais de Base
- A opção pelos pobres
- A Teologia da Libertação
- A leitura popular da bíblia.

Estas quatro expressões eclesiais se coadunam muito bem entre si, e se apóiam mutuamente. Seria interessante analisar de onde brotam suas motivações, e como se explicam as reações que suscitam.

Talvez a mais contestada de todas, a Teologia da Libertação, é aquela que mais pode encontrar sua justificativa. O povo da América Latina, seus países, a própria Igreja, estava vivendo um processo libertário, que precisava com urgência ser sustentando em suas motivações. Necessitava de uma "teologia da libertação”, solicitada por um processo que o Concílio incentivava, de atenção para com os "sinais dos tempos”, com a recomendação de assumir e abraçar as causas do povo, como a "Gaudium et Spes” tinha afirmado com muita clareza.

Quem combatia a teologia da libertação, demonstrava não entender as razões profundas de sua urgência e de sua importância.

Na hora de aplicar o Concílio, foram aparecendo as resistências ao seu processo eclesial.

Análise semelhante daria para fazer a respeito das "comunidades eclesiais de base”. Para um povo que queria ser igreja, a forma próxima de realização deste desejo era se organizar em "pequenas comunidades de base”, como "células estruturadoras” da Igreja. Comunidades eclesiais, mas que ao mesmo tempo se sentiam inseridas na realidade, onde a fé levava os seus membros a assumirem também os compromissos de ordem social e política, incentivando um processo de libertação integral.

Quem passou a combatê-las, desconfiando de sua autenticidade cristã, não entendia a motivação que as animava. Ou entendia, sim, mas percebia que as comunidades eclesiais eram um fator de profundas mudanças políticas que contrariavam os interesses daqueles que as combatiam.

Daria para aprofundar a análise desses embates eclesiais, que a partir destas quatro características típicas da Igreja na América Latina foram se produzindo. Feita com espírito aberto, com a grandeza de ânimo que o Concílio inspira, esta análise ajudaria a entender melhor os desafios que a Igreja da América Latina ainda enfrenta.

3. "Um continente que quer ser cristão, um povo que quer ser Igreja”.

Partindo de reflexões feitas ao longo de diversas andanças na América Latina, e sobretudo de minha participação nas Conferências de Santo Domingo e de Aparecida, e do Sínodo da América, cheguei a esta síntese:

"Vivemos num continente que quer ser cristão, e temos um povo que quer ser Igreja”.

Esta constatação precisa inquietar a Igreja, e deixar-nos intrigados com a urgência de respostas pastorais adequadas.

Diante de um continente que, ao menos por enquanto, faz questão de se declarar cristão, sentimos de imediato a urgência de um amplo processo de evangelização, que fortaleça esta professada identificação. Como atender a esta sede de identificação cristã, manifestada pelo continente?

O povo latino-americano quer ser Igreja. Não é difícil comprovar esta verdade, diante do sucesso de milhares de ofertas eclesiais que existem hoje nos países da América Latina.

Este fato faz de novo pensar nas comunidades. Elas precisam ser acessíveis ao povo, de tal maneira que as pessoas possam facilmente se inserir na Igreja, através de comunidades que estejam próximas e bem munidas dos ministérios indispensáveis para a sua eclesialidade.

Aqui de novo aparece a conveniência de uma análise mais em profundidade, para entendermos os impasses eclesiais vividos por nossas comunidades, provenientes seja da falta de estímulo ou da desconfiança diante das comunidades eclesiais de base.

4. A visão de Igreja como Povo de Deus

A visão de Igreja como "povo de Deus” encontrou uma recepção pronta e eficaz na América Latina.

Esta opção de privilegiar a visão de Igreja como Povo de Deus teve uma grande repercussão em todo o Concílio. Tanto que foi comparada à famosa "revolução copernicana”. Copérnico mostrou que não é o sol que gira ao redor da terra, mas a terra que gira ao redor do sol.

Assim a centralidade da Igreja não está na hierarquia, mas no Povo de Deus, que inclui todos os membros da Igreja, de maneira igualitária e fundamental, e a serviço do qual está a hierarquia.

Com a introdução do capítulo sobre o Povo de Deus, antes do capítulo sobre a Hierarquia, o Concílio fazia a clara opção de uma visão bíblica e ao mesmo tempo histórica da Igreja

A visão de Igreja Povo de Deus possui no Vaticano Segundo uma centralidade, cujo alcance pode escapar a uma análise superficial da eclesiologia do Vaticano Segundo.

O atual Capítulo Segundo da Lúmen Gentium, sobre a Igreja Povo de Deus, tem uma centralidade dinâmica. Possibilita situar a Igreja no seu relacionamento histórico com a diversidade de "povos, línguas e nações”, na sua encarnação concreta e na sua vizinhança com a realidade histórica onde a Igreja se situa.

Por isto, parece equivocada a interpretação divulgada a partir do Sínodo especial comemorativo dos 20 anos do Concílio, em 1985, que teria relativizado a visão de Igreja Povo de Deus, para ressaltar a dimensão de Igreja como mistério de comunhão.

A afirmação do Concílio, para ser bem entendida, precisa ser situada no contexto histórico em que foi formulada. Ela serviu para fundamentar uma nova visão de Igreja, que vinha ao encontro das grandes expectativas de renovação eclesial, que o Concílio tinha desencadeado.

A visão de Igreja Povo de Deus atravessa todos os documentos conciliares, e revela uma insistência proposital. Sempre que se fala de Igreja, ou de uma dimensão relativa à vida da Igreja, logo se ressalta sua universalidade eclesial, que a visão de Povo de Deus facilita.

Disto resulta uma espécie de precaução do Concílio, para expressar claramente que "todos somos Igreja”, e que os dons concedidos à Igreja são destinados a todo o povo de Deus.

Assim, por exemplo, na própria Lúmen Gentium, antes de falar dos religiosos, que possuem a vocação de testemunhar a santidade da Igreja, o Concílio tomou a providência de anteceder ao capítulo sobre os religiosos, o capítulo sobre a vocação universal à santidade

Na Conferência de Aparecida, deu para perceber a diferença que o povo fez acontecer. Em Santo Domingo só víamos o povo de longe. Em Aparecida os peregrinos vinham todos os dias participar da Eucaristia no santuário. Foi o seu testemunho de fé simples e autêntica que acabou mudando o ambiente da própria Conferência. O exemplo do povo converteu os bispos.

Na medida em que a Igreja da América Latina se conservar perto do povo, mais terá a certeza de sua autenticidade, e mais poderá contar com a graça de Deus em sua caminhada.

5- A Colegialidade Episcopal, expressão de corresponsabilidade eclesial

Outra afirmação importante do Concílio, que precisa ser confrontada com a Igreja da América Latina, é definição da Colegialidade Episcopal, no Capitulo 3 da Lúmen Gentium.

Neste Capitulo o Concílio analisa e define a natureza e a missão do Episcopado, entendido como um sacramento com dimensão eclesial muito clara e fundamental.

Atenta ao formato que Cristo deu ao seu grupo de Apóstolos, o primeiro e fundamental "Colégio Episcopal”, a Igreja faz questão de ressaltar sua continuidade, na mesma comunhão e na mesma missão. A missão confiada aos Doze, comporta a comunhão e a igualdade entre eles, e ao mesmo tempo a missão própria confiada a um deles, Pedro, a serviço da unidade e da fidelidade de todos os outros.

É o que a Igreja professa em forma de "primado e colegialidade”, que o Vaticano Segundo expressou e definiu claramente.

Para a vida da Igreja são indispensáveis tanto a dimensão de colegialidade, como a dimensão de primado. Ambas estão a serviço da comunhão eclesial e da fidelidade a Cristo.

Quando se rompe este equilíbrio entre Primado e Colegialidade, a Igreja fica exposta a rupturas, fáceis de irromper e muito difíceis de serem depois superadas.

Numa das palestras durante o Concílio, providas pela CNBB na Domus Mariae em Roma, um bispo ortodoxo católico apresentou sua leitura histórica das grandes divisões acontecidas na Igreja, como decorrentes do exercício inadequado da colegialidade e do primado. Segundo ele, a ruptura com os ortodoxos, em 1054, se deu por não se ter valorizado o primado. Foi enfatizada demais a colegialidade.

Depois, o Ocidente, deixado só como o exercício do primado, levou à ruptura protestante, pela carência de uma colegialidade vivida a serviço da salutar descentralização da Igreja, que poderia ter acontecido sem a ruptura protestante.

Em todo o caso, da reta visão da colegialidade, e da visão da Igreja como Povo de Deus, derivam as grandes intuições pastorais do Concilio Vaticano Segundo.

Em especial, a importância das Igrejas Locais, como concretizações da Igreja nas realidades onde ela se insere, na diversidade de raças e culturas.

Igualmente a importância das comunidades eclesiais, onde o Evangelho pode ser vivido na prática da convivência cotidiana e da inserção no mundo.

A Igreja da América Latina nunca colocou em dúvida a importância do primado de Pedro, expresso pela figura do Papa. Será que não estaria na hora de deixar mais espaço para o exercício da colegialidade, inclusive para que a Igreja Católica da América Latina tenha condições de ir ao encontro do povo que quer participar ativamente da vida da Igreja,e não encontra espaço nas estruturas atuais que a Igreja lhe oferece.

6. Contribuição da Igreja da América Latina para a Igreja Universal

Na Conferência de Santo Domingo o Papa João Paulo II, pela primeira vez, lançou a idéia de se fazer uma reunião em forma de "sínodo continental”. A primeira reação foi de desconfiança, de que o Papa estivesse decretando o fim de nossas "Conferências Gerais latino americanas”. O que não se comprovou, pois iria acontecer, com muito proveito, a "Conferência de Aparecida”.

Mas o fato que me parece inegável é este: foi a experiência de nossas "Conferências gerais” que inspirou a Igreja a realizar os diversos "sínodos continentais”, que foram acontecendo em preparação ao jubileu do ano 2000, e que ainda permanecem como referências especiais, no contexto de tantas iniciativas surgidas após o Concílio.

Isto coloca a questão da importância da Igreja da América Latina, no conjunto da Igreja Universal. Uma comprovação objetiva desta importância é dada pela estatística, que evidencia com clareza o aumento proporcional dos católicos latino americanos.

Mas a importância da Igreja da América Latina não é só de ordem estatística. Na difícil tarefa de abrir caminho para uma fecunda diversidade eclesial, a Igreja da América Latina poderia servir de bom campo de experimentação. Pois ela guarda com nitidez os traços do seu berço europeu, e ao mesmo tempo ostenta, com alegria, as feições herdadas das populações indígenas, enriquecidas com o contributo de outras etnias, entre as quais se destacam as feições africanas, indispensáveis para se entender a verdadeira identidade da Igreja da América Latina, na sua unidade e ao mesmo tempo rica diversidade.

A Igreja toda ganharia com o fortalecimento da identidade própria da Igreja da América Latina, que assim poderia colocar à disposição da Igreja Universal os carismas com que foi agraciada por Deus.

Conclusão

A Igreja da América Latina acolheu o Concílio Vaticano II de maneira pronta, generosa e eficaz. O Concílio veio fortalecer a identidade própria da Igreja Latino Americana.

Mas processo de renovação conciliar não está esgotado. Ele precisaria de um novo impulso para ser retomado. A celebração dos 50 da abertura do Concílio pode se tornar uma boa oportunidade para um novo confronto do Concílio com a Igreja da América Latina, recuperando as grandes intuições pastorais, e superando as desconfianças que dificultaram a implementação mais tranquila do Concílio.

Identificar os principais pontos que precisariam ser retomados, se constitui, certamente, em motivo estimulador de um diálogo aberto e responsável sobre o presente e o futuro da Igreja da América Latina.


terça-feira, 3 de julho de 2012

CEBs: a vida na cidade em busca da sociedade do Bem Viver e Bem Conviver


2º Paulistão das Comunidades Eclesiais de Base – Sul 1
01/07/2012 | Participantes

"Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas não esmorece e procura vencer.
Da terra querida, que a linda cabocla
De riso na boca zomba no sofrer
Não nego meu sangue, não nego meu nome
Olho para a fome, pergunto o que há?
Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,
Sou cabra da Peste, sou do Ceará."
(Patativa do Assaré)
Aos irmãos e irmãs, parentes na caminhada, das Comunidades de Base.
Saboreando docemente a presença fraterna e os pães da Palavra e da Eucaristia, estivemos reunidos neste sábado, 30 de junho, nas terras e nas pedras da metalurgia, do sindicalismo bravo e de uma Igreja que historicamente sempre esteve ao lado do povo em suas lutas e anseios; fomos agraciados com o abraço quente do povo do ABC e protegidos pelo apóstolo André, que radiante sempre nos reafirma: "Nós encontramos o Messias" (Jo 1,41).
Somos mulheres e homens vindos de todos os rincões de nosso Estado; do campo e das ruas, das serras e do mar; somos 1.314 pessoas, que saímos para com-viver, para o encontro... o encontro com o outro, com os outros, com a natureza, com o Senhor da Festa que não se acaba...
Refletimos, provocados pela Palavra de Deus e assessorados pelo Rafael e pela pastora Nancy, sobre a sociedade do Bem Viver e Bem Conviver. Baseados na vida de nosso povo pobre, pudemos perceber a contradição, o antagonismo entre sociedade capitalista e a sociedade do Bem Viver. Dessa constatação emerge a necessidade da escolha: o caminho da benção ou o da maldição. Vimos que o Bem Viver é fruto da profecia, da luta, da solidariedade e de uma nova ética, um novo modo de se relacionar com tudo que vive. Faz-se necessário a construção efetiva de caminhos, através da política, dos movimentos sociais e de todos os organismos que comungam desse sonho, para se chegar à civilização possível e desejada.
Conhecemos, também, alguns trabalhos e lutas dos sub-regionais alinhados com este conceito indígena de uma sociedade diferente, mais ecológica, mais humana, mais fiel ao Projeto Divino de Paz e Abundância.
Saciados de tantas boas-novas e de tantas esperanças, concluímos nosso encontro dando graças a Deus e pedindo, desde já, o acompanhamento materno da Mãe Aparecida no processo de preparação que se inicia oficialmente hoje no Regional Sul 1 para o XIII Intereclesial, na Diocese de Crato que será realizado em janeiro de 2014 com o tema: "Justiça e Profecia a serviço da vida" e o lema: "CEBs, Romeiras do Reino a serviço da Vida no Campo e na Cidade".
Abrasados pelo Espírito provocador e amante, na dinâmica permanente do ouvir o Mestre, anunciar a Vida para todos e denunciar a Morte que insiste nos circundar, voltamos... sim voltamos para as nossas comunidades, buscando profeticamente, ecologicamente e samaritanamente concretizar o Amor e a Justiça em nosso chão, contemplando o Reino que já É e SERÁ para todo o sempre.
Amém, Axé, Awerê, Aleluia, Saúde
Santo André, 30 de junho de 2012.
Festa de São Pedro e São Paulo.
Fonte: CEBs Regional Sul 1
http://www.revistamissoes.org.br/artigos/ler/id/2314

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento

Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento


O Concílio Vaticano II encerrou a longa etapa da Contra-reforma e da neocristandade, modificando profundamente o clima da Igreja. A sua contextualização implica vários passos:

1. Alguns traços da Igreja da Contra-reforma

2. Realidades socioculturais que provocaram a crise desse modelo

3. A crise dentro da Igreja provocada pela entrada da modernidade

4. Fatores imediatos que decidiram sobre a convocação e a orientação do Concílio nos seus inícios

5. Evento conciliar

I. Alguns traços da Igreja da Contra-reforma

Era esse modelo que prevaleceu durante os séculos que se seguiram ao Concílio de Trento e que se firmou na era piana (de Pio IX a Pio XII) durante o período de mais de um século (1846-1958).

J. Delumeau traçou brilhantemente a epopéia da construção dessa figura de Igreja surgida depois da Reforma Protestante. Sem rebuços, considera um mito a idéia de uma Idade Média cristã em nível das massas essencialmente rurais. Havia um grupo de cristãos bem evangelizado. O povo professava uma religiosidade voltada para as realidades deste mundo por meio das devoções, promessas, ritos que eram praticados para resolver os problemas imediatos da vida cotidiana. Não se vivia, na realidade, uma religião “sobrenatural”, de salvação eterna, mas fundamentalmente a de satisfação das necessidades imediatas. ([1]).

A Igreja tridentina vai bater em duas teclas: na visibilidade e na necessidade da salvar a alma, articulando as duas. Ela se propunha como meio necessário para evitar a condenação eterna. E o principal caminho era a prática sacramental. Os sacramentos na sua visibilidade exprimiam meio absolutamente necessário para ser católico e assim salvar-se. Além deles, exigia-se professar a doutrina da fé e da moral ensinada pelo magistério da Igreja. A este o fiel devia obediência.

A identidade da Igreja se moldava pelo modelo de S. Roberto Bellarmino (1542-1621) de uma Igreja como comunidade dos homens reunidos mediante a profissão da verdadeira fé, a comunhão dos mesmos sacramentos, sob o governo dos legítimos pastores, e, principalmente, do único vigário de Cristo sobre a terra, o Romano Pontífice (...). Não se exige, observa o santo, para que alguém possa ser declarado membro dessa Igreja verdadeira, da qual falam as Escrituras, nenhuma virtude interior. Bastam professar exteriormente a fé e participar visivelmente dos sacramentos, coisas que o próprio sentido pode constatar (...) A Igreja é uma comunidade (coetus) dos homens tão visíveis e palpáveis quanto a comunidade do Povo romano ou o Reino de França ou a República de Veneza” (S. Roberto Bellarmino).

Tanto mais se reforçava essa visibilidade quanto mais as Igrejas saídas da Reforma insistiam na fé fiducial (sola fide), na graça imputada (sola gratia) e no livre exame da Escritura (sola scriptura). O magistério da Igreja era a garantia da ortodoxia da fé e da moral e o ministério ordenado era o legítimo dispensador dos sacramentos. E ao defrontar-se com a modernidade, ela acentuou ainda mais a visibilidade sacramental, a ortodoxia das verdades de fé e da moral, e a obediência à hierarquia em oposição à autonomia da razão científica e à liberdade dos sujeitos, tão afirmadas pela cultura moderna.

Essa compreensão da Igreja implicava um paradigma mental, para usar analogicamente um conceito de Th. Kuhn. Ele pode ser definido pelo caracter essencialista. Em outro estudo, chamei-o de “momento do objeto”. As realidades são pensadas naquilo que elas têm de essencial, definitivo, imutável, fora de qualquer perspectiva histórica. A teologia nutria a obsessão das definições essenciais para exprimir a substância mesma das coisas, das verdades, da fé, do dogma.

Cl. Geffré cognominou-a de teologia dogmatista. Era a teologia dominante. Preocupava-se com perguntas internas à própria teologia em busca de clareza conceitual e não se deixava questionar pelos problemas vindos das ciências nem das experiências existenciais das pessoas nem da práxis. Permanecia longe do pensamento histórico com temor de este relativizá-la. A perspectiva dogmatista pergunta: qual é a essência da verdade, da realidade. Em latim se diz: Quid est? Que é? Criou-se a palavra latina quidditas, de pouca elegância, precisamente para traduzir a resposta da pergunta. É a qüididade. Termo que o dicionário Houaiss conhece e define: “entre os escolásticos, essência ou natureza real de algo”.As respostas já vinham prontas dos catecismos e manuais que permaneceram intocados praticamente durante séculos. As modificações eram cosméticas, mas não afetavam realmente o conteúdo.

Subjazia a essa teologia uma posição dualista da realidade humana. Dois mundos se opunham radicalmente: natureza e graça ou se quisermos mais exatamente natural e sobrenatural. A essência do mundo sobrenatural é a graça. A essência do mundo natural é a natureza.

O mundo sobrenatural é o mundo da salvação. O mundo natural, se não é o da condenação, pelo menos, torna-se alheio à salvação. Predominava uma compreensão extrinsecista da graça, como realidade externa à natureza e que lhe vinha modificar as possibilidades e atividades. Tudo o que era humano sem uma explícita intenção sobrenatural era desvalorizado em vista da vida eterna.

Esta teologia condicionava a autocompreensão e o agir da Igreja. Ela fazia parte do mundo da salvação e "fora dela não havia salvação".

Este era o contexto eclesiástico principal que prevalecia na Igreja. Uma Igreja marcada pela visibilidade de suas características essenciais, por uma teologia dogmatista, zelando pela ortodoxia, por uma prática litúrgica bastante ritualista, por uma disciplina eclesiástica estrita, e por uma teologia dualista. As definições do Primado e da Infalibilidade do Magistério Pontifício do Concílio Vaticano I fizeram concentrar a compreensão de Igreja na pessoa do Papa. Neste contexto, um Concílio aparecia algo supérfluo, custoso e perigoso. Valeria mais confiar na Administração romana com o carisma e assistência especial do Espírito Santo em questões de dogma e moral.

Se alguém pensasse, neste horizonte, nalgum concílio, seria unicamente para reafirmar as verdades de Trento e do Vaticano I, acrescentando aquelas que se contraporiam aos erros surgidos na modernidade mais recente.

II. Realidades socioculturais que provocaram a crise desse modelo

A morte de Pio XII não foi simplesmente o fim de um pontificado, mas o de uma era da Igreja. Um longo arco de dez séculos de modelo eclesiástico recebia um primeiro golpe de morte. Fatores externos e internos da Igreja provocaram o desmoronamento dessa concepção de Igreja, abrindo o espaço para a novidade do Concílio

1. O século das Grandes Guerras e suas conseqüências

Nenhum século na história da humanidade acumulou centena de milhões de cadáveres por causa das guerras. A Europa terminou a Segunda Guerra em ruínas materiais e espirituais. Vieram à luz os inomináveis crimes cometidos pelo nazifascismo em horrendos campos de extermínio de judeus e outros inimigos. A consciência européia mergulhou em gigantesca crise de valores, de credibilidade, de verdade, de ética.

Ao mesmo tempo, iniciou-se um processo de reerguimento econômico jamais visto. A nação vencedora da guerra, os EUA, investiram bilhões de dólares na reconstrução econômica de países da Europa, inclusive da Alemanha, país derrotado. Vivia-se verdadeiro milagre econômico. A industrialização, a modernização transformavam uma Europa ainda muito agrícola em gigantesco parque industrial, rico, produtivo. A economia de mercado triunfava. Impunha-se a racionalidade econômica, mas ainda sob o controle do Estado do Bem-estar social, da pressão dos movimentos sociais e da Doutrina Social da Igreja, de modo que o neocapitalismo se humanizou muito em relação à sua fase selvagem manchesteriana.

Dois fatores agiram paradoxalmente. De um lado, o abismo de miséria física e moral, de outro, a experiência e uma mentalidade de euforia de natureza materialista, de confiança no modelo econômico americano e na sua cultura. E essa cultura ostentava ao mundo um regime democrático de separação entre Igreja e Estado. Mesmo nessa situação, foi possível que uma liderança católica na pessoa de J. F. Kennedy assumisse a presidência da República, abalando as teorias da era piana contra a democracia e a separação entre Igreja e Estado. O ar de esperança vinha do novo mundo e já não da velha Europa. Anunciava-se dentro de uma Igreja católica, até então fortemente européia e romana, o declínio do eurocentrismo. Ele foi corroborado pela onda de descolonização na África e na Ásia. Era o fim do colonialismo. O Terceiro Mundo ascendia à ribalta da história. Reinava um clima libertário. Desde a Indonésia, que se tornara independente em 1945, até o Zaire em 1960, uma série de países da África e da Ásia ia construindo sua identidade nacional na esperança e alegria da liberdade. Mesmo as colônias portuguesas, que se libertaram mais tarde, já se moviam em direção à autonomia, ao iniciarem, em 1964, as guerras da independência.

2. O impacto cultural

A era piana reagira e resistira à modernidade. Mas esta se impunha fora do ambiente eclesiástico com força crescente, partindo da elite ilustrada até as camadas populares. Quatro traços da cultura moderna foram decisivos para modificar profundamente o contexto envolvente do Concílio.

As ciências desfizeram a imagem do mundo antigo no qual ainda a fé e a teologia se exprimiam grandemente. Era a imagem ptolomaica do universo, fixista, extremamente espacial, em que as próprias realidades celestes se situavam. Os céus lá em cima, a terra no meio e em baixo o inferno. Dentro dessa visão, a linguagem teológica forjou especialmente a escatologia.

A nova imagem nasceu da influência dos cientistas N. Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e Newton (1642-1727), substituindo pela matemática o que era pensado em categoria de espaço localizável e regido por força divinas e angélicas. Em seu lugar, entraram as leis da mecânica que Newton formulara. "A ciência positiva moderna e a física matemática de Galileu e Newton destruíram para sempre a venerável imagem do mundo que garantia aos filhos da terra um lugar privilegiado, sob o olhar misericordioso da divindade" ([2]). Substituiu-se a autoridade da Igreja pela constatação científica.

Mais próximo dos anos conciliares, circulavam as teorias darwinianas do evolucionismo, ameaçando a concepção que a teologia fazia dos inícios de graça e pecado da humanidade. Emergia dessa concepção um ser humano bem diferente daquele posto no paraíso terrestre na inocência inicial para depois do pecado ser expulso. Nos princípios estava um homem muito próximo do animal na sua violência destrutiva e que se originava de ondas evolutivas. Eram os primeiros momentos de um conflito entre fé e ciência que até hoje perdura. No entanto, o Concílio Vaticano II assumiu enfrentar tal problema e reinterpretar verdades de fé no novo horizonte das ciências modernas.

Um segundo encontro se deu com a emergência da subjetividade. Em termos simples, significou a tomada de consciência por parte do sujeito moderno de sua liberdade, autenticidade, autonomia em contraste com a situação anterior de dependência das forças da natureza, das tradições familiares, religiosas e culturais. Já não as acatava por si mesmas, mas as fazia passar pelo crivo de sua própria experiência, de maneira de ver as coisas. O existencialismo que freqüentava as academias tornou-se um modo comum de as pessoas pensarem e viverem. Assim verdades e valores, que ontem se impunham pela força da autoridade e das tradições, eram questionados pelas pessoas a partir da própria vivência, gosto, prazer.

A história marcou o contexto cultural do Concílio. Rompeu com a concepção estática das formulações das verdades dogmáticas e morais. A metodologia histórica vinha sendo empregada em vários campos do pensar moderno, gerando certa relativização dos conhecimentos. Esse pensamento histórico quebrou a rigidez escolástica, mostrando que era fruto de um tempo determinado aquilo que se pensava ser "filosofia ou teologia perene".

Uma quarta onda inundou as praias da Igreja nas imediações do Concílio. Vinha da 2a Ilustração que levantara suspeita de alienação contra o agir da religião, das Igrejas. Fez entrada no pensamento moderno a teoria marxista a partir da categoria da práxis. Instituía no interior do mundo religioso a crítica ideológica.

Ainda não era a entrada da teologia da libertação, que só aconteceria depois do Concílio. Mas na Europa, antes do Vaticano II, sob a forma de progressismo, se gestava um pensamento crítico a posições ideológicas conservadoras dos cristãos no campo da política. Ele nasceu do contacto com a revolução operária, com um mundo popular rejeitado e sofrido, enquanto a Igreja estava ausente. A consciência do cristão foi tocada por essa realidade de contraste e provocou perguntas teológicas como interpretar essa realidade social à luz da fé cristã, como a Igreja conseguirá marcar presença nela e como enfrentar o encontro com a ideologia marxista que estava a ocupar todo esse setor da sociedade.

Além da crise religiosa e ética, as duas grandes guerras mundiais produziram uma aguda desconfiança em relação às instituições com repercussões sobre as religiões e igrejas. Já se anunciava uma secularização das instâncias religiosas com uma subjetivização das formas religiosas. Depois do Concílio, essa onda cresceu a ponto de engendrar a teologia da morte de Deus.

III. A entrada dentro da Igreja da crise provocada pela modernidade

Esse condicionamento sociocultural impunha-se de fora da Igreja. E enquanto a hierarquia romana pôde, criou barreiras fortes para que os fiéis não fossem afetados por essas realidades. Pio XII enfrentou amplamente esses questionamentos em suas encíclicas e inúmeras alocuções, definindo com clareza os limites da ortodoxia dogmática e moral.

No entanto, essa problemática entrava dentro da Igreja por outras portas. Desde o século XIX, e sobretudo na primeira metade do século XX, explodiu por diversos lados da Igreja católica uma série de movimentos que carregavam dentro de si as demandas da modernidade científica, da subjetividade, da história e da práxis. Infiltraram-se na Igreja tridentina da contra-Reforma, minando-a de tal maneira que depois da morte de Pio XII ela parecia um navio que vazava água por todos os lados.

Deixava-se lentamente para trás a concepção constantiniana da Igreja de Cristandade, na sua função de tutela da sociedade, do saber, da moral, do comportamento das pessoas. A modernidade, que se exprimira nos seus inícios pela Reforma no campo religioso e pela mudança de imagem de mundo no referente ao espaço sócio-cultural, significava, ao mesmo tempo, um dado religioso e um fato sócio-cultural. Sob esses dois aspectos constituiu o contexto principal envolvente do Concílio, causando enorme impacto sobre ele.

Em resumo, dois movimentos atravessavam a Igreja nesse final da década de 50. De um lado, nítida resistência aos embates da modernidade e, de outro, um penetrar dela na Igreja pela via, especialmente dos movimentos.

A resistência da Igreja católica à modernidade não pode ser entendida fora desse contexto de uma Igreja, que, açulada, de um lado, pelos reformadores, e, de outro, às voltas com a rebelião da razão moderna, se defrontava ainda com seus fiéis presos a uma religião mais supersticiosa do que teológica.

A Igreja na saída da Idade Média parecia com pais super-protetores, preocupados, em casa, com a educação dos filhos menores e, ao mesmo tempo, vigilantes diante dos perigos de fora que lhes ameaçavam a educação. A reação contra os inimigos externos e a necessidade da inculcação interna confundiam-se de tal modo que não se sabia por que razão realmente se tomavam as decisões, já que os fatores eram simultâneos.

Mas, ao mesmo tempo, os filhos começavam a mudar de mentalidade freqüentando de várias maneiras a modernidade e inserindo-a discretamente em movimentos de renovação que brotavam nos diversos campos da vida eclesial. Indicaremos aqui os mais importantes sem preocupação cronológica, difícil de ser estabelecida, mas simplesmente didática.

1. O movimento bíblico

O rigor dogmático da era piana não se reproduziu no campo bíblico. Pio X tomara duas posições antitéticas. Aprovou medidas restritas nas investigações bíblicas por meio de Declarações da Comissão Bíblica de Roma ([3]). No entanto, fundou o Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, confiando-o aos jesuítas. E ele se entregou a investigações sérias no campo bíblico, trazendo avanços consideráveis na compreensão da inspiração, da inerrância na Escritura, da redação dos livros bíblicos.

Pio XII vai mais longe ao apoiar os trabalhos corajosos de exegetas do Pontifício Instituto Bíblico, sobretudo com a Encíclica Divino afflante Spiritu. A ciência moderna entrava por meio da arqueologia bíblica, papirologia, descoberta de novos manuscritos, da lingüística no conhecimento e interpretação da Escritura. Rompeu-se a rigidez da existência de um único sentido literal dos textos bíblicos, que era ensinado autoritativamente pelo magistério. Criou-se maior liberdade para o exegeta ir aproveitando dos dados científicos para interpretar os sentidos da Palavra de Deus. Terminava a era do fundamentalismo e literalismo bíblico, apoiado na concepção da Escritura como ditada por Deus ao hagiógrafo. Assumia-se o lado humano do escritor bíblico, sujeito às vicissitudes de toda redação, analisável pelos instrumentos das ciências.

2. Movimento litúrgico

Outra porta de acesso da modernidade. Em que aspecto? Sob o ângulo dos princípios modernos da existencialidade, compreensibilidade e da participação. Três reivindicações da modernidade que vêm a cavalo no movimento litúrgico.

A existencialidade mostrou-se no crescente desejo dos fiéis e nas reformas iniciadas por Pio X de que as celebrações não estivessem distantes das experiências das pessoas. A categoria da existência, central na modernidade, invadiu o mundo cúltico. As ações litúrgicas não são ritos fechados, herméticos, realizados por alguns ministros especializados, de que os fiéis recebem unicamente a objetividade dos frutos, sem vivenciá-los, sem perceber nenhuma relação deles com sua própria vida pessoal, comunitária, familiar, social. A existencialidade exigia uma compreensibilidade do que se celebrava. Com isso, a liturgia teve de submeter-se a transformações profundas, já que se cristalizara numa linguagem e cultura que se tornavam cada vez mais incompreensíveis para as pessoas da modernidade.

E por trás desses anseios, havia uma percepção da importância da participação subjetiva e intersubjetiva das pessoas no ato litúrgico e não somente o valor objetivo e ontológico do rito. Rompia-se com rubricismo rígido. Atribuía-se importância ao reclamo da modernidade de colocar a pessoa no centro em vez da norma, do direito frio e imutável. Quebrava-se a hieraticidade e sacralidade intangível da liturgia, fazendo-a mais próxima das pessoas numa atitude bem moderna.

Por ele entraram também a ciência e a história. Fizeram-se pesquisas históricas litúrgicas que relativizaram os ritos atuais, julgados definitivos. Ele fez correr para dentro da Igreja a linfa da modernidade para alimentar a árvore que estava crescendo no seu interior.

3. Movimento ecumênico

O modelo tridentino se construíra em permanente embate com a Reforma e com a modernidade. Sustentava-se, alimentado pelo espírito apologético, de defesa e refutação das posições adversárias e de conquista de novos adeptos pela via da evangelização conquistadora.

Da católica Europa e mais tarde dos EUA saíram para o mundo inteiro ardorosos missionários a fim de "plantar a Igreja" nos outros continentes, convertendo os infiéis, fortalecendo as igrejas locais em nítida concorrência com os evangélicos.

Modernidade significa tolerância, diálogo, respeito à pluralidade de opiniões, liberdade de expressão. Essa face moderna penetrou a Igreja católica pela porta do ecumenismo. Nascido por razões missionárias a fim de evitar o escândalo de pregar o único Evangelho de Jesus Cristo na diversidade e oposição de Igrejas, evoluiu para crescente diálogo. Pôr-se em tal atitude implicava necessariamente distanciar-se da rigidez do modelo tridentino e iniciar outro modo de ser Igreja.

No início, a Igreja católica trabalhou com a imagem de ser ela o redil de que as ovelhas da Reforma se afastaram. E, portanto, seguindo a parábola evangélica alimentou a ilusão de esperar que voltassem para então acolhê-las. Cabia-lhe a única função de esperar a volta. Ou viam os protestantes como filhos pródigos que abandonaram a casa paterna. O pai aguarda-lhes o retorno.

O movimento ecumênico fê-la entender que a ruptura envolvia igualmente os dois lados e que ecumenismo exigia postura diferente, mais próxima dos ideais da modernidade do que da herança tridentina. Tratava-se de assimilar um espírito de diálogo, de respeito à verdade do outro, de reconhecimento da pluralidade, elementos fundamentais da nova cultura.

4. Movimento dos leigos

À medida que o modelo tridentino reforçava a estrutura clerical, produzia um tríplice efeito sobre o laicato. Afastou da Igreja aqueles leigos que já não conseguiam articular os ensinamentos dogmáticos e morais oficiais com a sua mentalidade moderna. Percebiam contradições que não lhes reforçavam os impasses entre fé e ciência, fé e cultura, fé e modernidade, fé e mundo real de vida. Principalmente dois universos culturais se afastaram da Igreja: o mundo operário e as classes ilustradas.

Outros leigos permaneceram no interior da Igreja em atitude de submissão e obediência, quer de maneira espontânea e piedosa, quer de modo consciente em postura de fé profunda. Essa presença predominava nas regiões rurais e em periferias urbanas de mentalidade ainda interiorana. Mas a urbanização e secularização iam lentamente devastando esses fiéis. Os que vinham de classes cultivadas sofriam as dúvidas e dificuldades, recorrendo, não raro de maneira heróica, a uma fé profunda e abnegada.

Um terceiro grupo enveredou por uma via média. Nem saíram da Igreja, nem também se submeteram em atitude ingênua ou de renúncia magnânima. Constituíram movimentos de leigos que buscavam difícil equilíbrio entre a fidelidade e a crítica, entre a permanência e o desbravar novos caminhos. Isso aconteceu nos dois meios que mais sofreram os impactos da modernidade: classes operárias e classes ilustradas liberais.

A Ação Católica conseguiu incorporar dentro de si esses dois universos humanos, diferenciando-os. Para os operários adultos, a Ação Católica Operária ofereceu-lhes espaço para serem operários e Igreja. Para os jovens, a JOC desenvolveu uma metodologia excepcional que os fez ser críticos dentro da sociedade e da Igreja, mantendo uma fidelidade de base. Neste contexto, emergiu a extraordinária figura do sacerdote belga J. Cardijn (1882-1967), mais tarde elevado ao cardinalato por Paulo VI (1965). Ele intuíra a importância de viver a fé inserida no próprio meio, batalhado pela modernidade industrial. Articulou duas tarefas. De um lado, o jovem era preparado para manter a dupla fidelidade à fé e a seu mundo de jovem operário. E, de outro, se fazia evangelizador de seus companheiros de trabalho, anunciando-lhes o evangelho.

Em espírito semelhante, alguns sacerdotes sonharam com viver a dupla vocação operária e sacerdotal. Fizeram-se "padres operários". Mesmo que não tenham sido bem compreendidos e a experiência tenha sido abortada, eles serviram de ponte para a modernidade operária e a Igreja. Levaram ao extremo o projeto pastoral de inserir-se no meio. Em 1953, eram cerca de 90 sacerdotes diocesanos e religiosos.

A entrada da modernidade pela via do movimento leigo teve um reforço na teologia do laicato que se impregnara de idéias da modernidade. Nesse ponto, a reflexão teológica de Y. Congar e a influência de J. Maritain, E. Mounier foram decisivas.

A Ação Católica produziu uma virada importante e inesperada. Ao querer ser, como braço da hierarquia, a presença do leigo no mundo moderno, terminou introduzindo-o na Igreja. São as ironias da história. A hierarquia pensava em ir até aos meios humanos mais importantes do mundo jovem - universitário, secundarista, operário, agrário e independente – por intermédio da Ação católica especializada e esses meios invadiram a Igreja com suas perguntas, já impregnadas de modernidade.

A primeira intencionalidade da Igreja respeito à Ação Católica soava clericalista de manter a separação entre leigo e clero, e, de certo modo, distante do mundo moderno. No entanto, o desenrolar da história produziu efeito diferente, não previsto. Formou um leigo autônomo, crítico, com iniciativas e permeado pela modernidade sociocultural.

5. Movimento teológico

Nesse movimento, apareceu o explicito e desejado confronto da teologia com a modernidade. As primeiras tentativas de aproximação com o pensamento moderno se deram por meio da renovação teológica da Escola de Tubinga no século XIX. Em seguida, no início do século XX, um surto teológico, condenado sob o nome de "modernismo", assumiu ainda mais fortemente o roteiro ideológico da modernidade. Abortado pela dura intervenção de Roma, jogaram-se fora a água suja, a bacia e a criança. Mais tempo de espera. No entre-guerras, o movimento querigmático de Innsbruck pretendeu pensar uma teologia próxima da cultura moderna, ao menos, para aqueles que não se dedicariam às tarefas acadêmicas.

O movimento, que mais marcou o contexto teológico anterior ao Concílio, chamou-se "Nova Teologia". A plataforma de ação foi lançada por Jean Daniélou, em memorável artigo na revista jesuíta "Études" de Paris, nos seguintes termos:

"A teologia de hoje tem diante de si uma tríplice exigência:

- Ela deve tratar Deus como Deus, não como objeto, mas como o Sujeito por excelência, que se manifesta quando e como ele quer, e, de conseqüência, ser primeiramente penetrada do espírito religioso;

- Ela deve responder às experiências da alma moderna e levar em conta as dimensões novas que a ciência e a história deram ao espaço e ao tempo, que a literatura e a filosofia deram à alma e à sociedade;

- Ela deve enfim ser uma atitude concreta diante da existência, uma resposta que engaja o homem inteiro, à luz interior de uma ação onde a vida se joga totalmente.

A teologia não será viva a não ser que responda a estas aspirações" ([4]).

Aí apareceram claramente as exigências da modernidade: a dimensão de sujeito, as experiências do homem moderno, a ciência, a história, a literatura, a filosofia, uma compreensão global da existência, o caráter vital. Repescou do modernismo, condenado por Pio X, o uso dos métodos crítico-históricos na interpretação da Escritura. Os defensores dessa teologia valorizaram, na concepção de Igreja, as dimensões de mistério, de comunidade, de participação ao arrepio do aspecto acentuadamente jurídico. Olhavam as realidades terrestres com mirada otimista, capaz de perceber nelas a presença e ação de Deus. Batiam-se por uma compreensão integrada e bem articulada das dimensões natural e sobrenatural, seguindo as pegadas deixadas por M. Blondel com a "Apologética da Imanência", que já apontava para os "pontos de identidade", "pontos de inserção" da Transcendência no dinamismo espiritual do ser humano.

O programa dessa teologia defendia também uma intelecção processual e histórica das verdades de fé em oposição ao fixismo e formalismo da letra. Desposou com audácia a concepção evolucionista de Teilhard de Chardin, cujos escritos circulavam em forma provisória já que só puderam ser publicados depois de sua morte em 1955. Na emblemática consigna de "volta às fontes", a Nova Teologia encontrava-se paradoxalmente com os anseios do momento presente. Pois, esse retorno aos inícios se viabilizava precisamente pelo recurso aos recentes métodos desenvolvidos na modernidade crítico-literária.

Enfim, as grandes perguntas da modernidade filosófica, advindas da razão autônoma, da subjetividade, da experiência existencial, da história, das ciências, da concepção evolucionista da natureza, da práxis forçavam entrada no âmbito eclesial pelas vias inteligentes do movimento da "Nova Teologia". Mesmo que uma intervenção romana lhe tenha bloqueado o avanço explícito, já estavam aí os germes do que o Concilio assumirá.

6. Movimento social

Leão XIII é considerado o pai da Doutrina Social da Igreja na sua forma atual. E a encíclica que abriu esse cenário foi a Rerum novarum (1891). É sintomático que ela comece com as duas palavras "Das coisas novas". Que coisas eram essas? A modernidade social que derivava da 2ª Ilustração, cujo protagonista principal foi K. Marx, ao lançar o desafio da práxis, da transformação da realidade social em nítida crítica a uma religião, ópio do povo.

Pio XI e Pio XII continuaram a caminhada. O último deu o passo de reconciliação com a democracia, quinta-essência da modernidade política. Doravante a Igreja se defrontará com os problemas que a modernidade econômica, política e social de modo que ela vai penetrando a Igreja porta adentro.

IV. Fatores imediatos que decidiram sobre a convocação e a orientação do Concílio nos seus inícios

Contra esse horizonte maior da modernidade, que entrou na Igreja e que decidiu sobre a natureza do Concílio, fatos imediatos

terminaram por construir-lhe a moldura. A história conjuga transformações de longa duração, de respiro amplo com eventos e pessoas de duração curta e de influência imediata. Esse duplo jogo constrói o real. O primeiro pertence aos elementos estáveis, diuturnos, previsíveis. O secundo carrega-se de muita imprevisibilidade e termina por ser a última gota. Reflete o lado do aleatório da história que resiste a rígidos determinismos teóricos.

Uma leitura puramente de fé vê nos acontecimentos a mão de Deus. Uma leitura puramente histórica admira as coincidências decisivas. Uma leitura, que articula ambas, percebe Deus agindo nesse fortuito humano.

O Concílio Vaticano II não escapou dessa lei da história e se submete, por isso, a tal leitura teológica. Não caiu do céu feito como um bólido em noite escura. Foi tecido pela malha lenta do tempo. No entanto, em dado momento, uma série de pequenas circunstâncias criou a conjuntura propícia para seu real acontecer.

Trata-se de uma difícil escolha. O analista arrisca fazer a sua. E além disso, o limite de uma conferência obriga-nos a reduzir a alguns deles. A ordem não segue nenhuma hierarquia de valor.

1. A figura intrigante do papa João XXIII

É consensual afirmar que a personalidade de João XXIII foi decisiva, não simplesmente pelo fato de ele ter materialmente convocado o Concílio, mas pelo clima que ele criou na Igreja em torno da convocação. Esta não surgiu como um ato voluntarista que, num gesto de bravura cinematográfica, rompeu com tudo e com todos.

Não foi um homem qualquer que se defrontou com a herança de Pio XII. Sua morte deixara enorme vazio. O colégio cardinalício, pouco renovado, não parecia sementeira fértil para escolher um papa para aquele momento em que se sentia claramente, no interior da Igreja, o embate da cultura moderna a impor-se e a tradição tridentina resistindo.

Depois de um grande pontificado, o sucessor corre o risco de ficar preso à sombra de seu antecessor e simplesmente amealhar os bens deixados por ele. Por timidez ou mediocridade não ousa dar nenhum passo diferente. Procede como um treinador que depois de ver os atletas terminarem uma corrida, propicia-lhes um repouso. A Igreja do final do pontificado de Pio XII mostrava-se cansada por causa do duro embate conduzido pelo papa entre a defesa da verdade dogmática, moral e disciplina, e os ataques vigorosos da modernidade em ampla frente.

Esse sentimento pareceu dominar o colégio cardinalício que escolheu um ancião de 77 anos com previsão de poucos anos de vida para oferecer à Igreja um tempo de transição. A sabedoria romana optou pela espera. Nada melhor que escolher um "papa de transição", idoso, que não tenha muita energia para empreender a tarefa gigantesca exigida para um mundo que emergira de terrível guerra mundial com seus valores fundamentais abalados. A história da Igreja conhece papas de transição, de espera de um outro mais jovem, capaz e decidido. Naqueles idos, já despontava a figura de Mons. Montini, que ainda não era cardeal e, portanto, estava fora do páreo. E a escolha de João XXIII vinha muito bem para dar um tempo a fim de fazê-lo cardeal e depois confiar-lhe um arco de tempo mais longo no governo da Igreja.

João XXIII foi esse acidente de percurso na sucessão dos pontífices. Ele parecia responder às expectativas para um tempo de passagem. Além disso, era um homem sábio, que tinha enfrentado situações delicadas no tempo da guerra e pós-guerra, quer na Turquia, quer na França, com enorme prudência e sagacidade, além de ter acumulado a experiência pastoral em Veneza.

Aí entrou a imprevisibilidade da história com uma personalidade que não se acanhou em substituir Pio XII, nem lhe seguiu o modo hierático de governar a Igreja. Quebrou o gelo romano com uma maneira simples, humana, direta de viver. O anedotário do Papa é muito rico. Por ele, conseguimos captar-lhe a originalidade que decidiu sobre a natureza e o encaminhamento do Concílio.

Por brevidade, indicaremos alguns pontos em que a personalidade de João XXIII pesou insofismavelmente no destino do Concílio.

Uma leitura teológica não dispensa olhar para o quilate espiritual de João XXIII. Hoje sua santidade já foi reconhecida pelo ato de beatificação. Unia enorme capacidade de discernimento, de sabedoria, de sagacidade a humildade corajosa. Muito tranqüilo sobre si, revelando sadia psicologia, apoiada em piedosa e devota confiança em Deus, ousava. Certa vez repreendeu delicadamente seu secretário que temia por sua saúde, quando quis empreender a árdua tarefa do Concílio: “Você ainda não se despojou de si mesmo, anda preocupado com fazer bela figura. Só quando um homem calcou o próprio eu debaixo dos pés é que consegue ser verdadeira e plenamente livre. E você ainda não é ([5])!”

Os que conviveram com João XXIII descreveram-no como uma pessoa de enorme "bonomia, simplicidade e bondade afetuosa" ([6]). Ao falar da escolha do nome de João, ele revelou essa dimensão afetiva: "João, nome doce, nome suave, nome solene: Chamada e convite a amar sempre, a amar todo o mundo, a amar em toda circunstância, mesmo quando a voz ou a pena têm o dever de condenar" ([7]). G. Zizola resumiu essa atitude básica de sua vida: ele preferiu a misericórdia ao bastão da punição.

Portanto, o conjunto humano de virtudes muito rico de simplicidade, sabedoria, experiência plural, sagacidade, tranqüilidade sobre si mesmo como fruto de profunda fé e confiança em Deus, fez desse ancião do Vaticano, mais que um "Papa de transição", o verdadeiro "Papa da transição" da Igreja dos tempos pré-modernos para a modernidade.

2.Abertura ecumênica

Desde o início mostrou enorme interesse ecumênico. Ao aproximar-se daqueles que professavam outra confissão evangélica ou religião ou mesmo eram não crentes, buscava o diálogo em lugar de qualquer anátema. Olhava o mundo como o grande palco da ação de Deus e perscrutava os sinais dos tempos para entender o significado do agir de Deus. Conta-se que ao receber o Arcebispo anglicano de Cantuária lhe teria dito: “Tão pouca coisa nos separa, somente as idéias”. O coração, a comunhão nos ideais humanos e cristãos pesavam para ele muito mais que divergências dogmáticas.

3.Acolhida do mundo socialista

Surpreendente foi sua abertura para o mundo comunista. Quem se lembrar do contexto da Itália do pós-guerra, em que o Partido da Democracia cristã disputou palmo a palmo o poder com o Partido Comunista e da posição de Pio XII de excomungar quem votasse no Partido Comunista, ficará estarrecido de ver João XXIII trocar telegramas com Nikita Krutschev. Este o felicitara pelos 80 anos de vida. Era a primeira vez que, depois da Revolução de outubro de 1917, os soviéticos batiam à porta do Papa de Roma. E o Papa depois retribuiu-lhe tal saudação.

Outro momento emocionante foi a audiência de Alexei Adjubei e sua esposa Rada Krutschev, filha do Secretário Geral do Partido Comunista e Primeiro Ministro da URSS. Nela o papa mostrou enorme sensibilidade humana, conversando com Rada sobre seus três filhos.

“Minha senhora, sei que a senhora tem três filhos e até conheço o nome dessas crianças, mas gostaria que fosse a senhora mesma quem me dissesse os nomes de seus filhos, porque, pronunciados pela voz da mãe, eles soam com uma ternura particular”. Rada disse os três nomes: Nikita, Alexei e Ivan. O papa comovido retrucou: “Que lindos nomes, senhora. Nikita é Nicéforo, um santo que é muito querido ao meu coração: cheguei mesmo, em Veneza, a ter oportunidade de venerar o seu corpo. Alexei é Alexandre, que também é um grande santo. Quando eu estava na Bulgária, visitei tantos santuários e conventos dedicados a Santo Alexandre. E Ivan! Pois Ivan, minha senhora, é João e João sou eu. E João é o nome que escolhi para o meu pontificado, é o nome do meu pai, é o nome do meu avô, é o nome do outeiro que domina a casa onde nasci, é o nome da basílica de que sou bispo, São João de Latrão. Quando voltar para casa, minha senhora, leve para seus filhos as minhas afetuosas saudações. Mas leve uma saudação particular para Ivan: verá que os outros não ficarão sentidos” ([8]).

4. Alguns fatos do pontificado

Em termos formais, João XXIII tomou algumas decisões que construíram o ambiente de abertura do Concílio. Preparou a linha ecumênica com a criação, em 1960, do Secretariado para a União dos Cristãos, posto sob a presidência do Cardeal Bea, ex-reitor do Bíblico e ex-confessor de Pio XII. Tal Secretariado criou um clima diferente de abertura, de diálogo com os irmãos de outras denominações cristãs. A presidência do Cardeal A. Bea, homem extraordinário pela sua formação bíblica, experiência eclesial e excelente trânsito no mundo ortodoxo e evangélico, deu-lhe enorme relevância..

João XXIII impulsionou a abertura à modernidade social, política e econômica por meio das duas luminosas encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963). Reconheceu, como sinais dos tempos, de conotação teológica, fenômenos sócio-históricos: a "socialização", a ascensão econômico-social das classes trabalhadoras, a promoção da mulher, a liquidação das formas de dominação colonial ([9]).

Mesmo que tenha herdado um emaranhado de questões teológicas, morais, pastorais e disciplinares à espera de resposta, afastou-se da via romana tradicional de dar soluções autoritativas por meio de encíclicas. Diante das tensões, das correntes opostas, das forças antagônicas, que atravessavam toda a Igreja, desde Roma até o rincão mais distante, renunciou tomar posição a partir unicamente do centro romano. A consciência da gravidade dessa situação e da humilde convicção de que precisava de ajuda de seus irmãos no episcopado para encontrar caminhos o levou a convocar o Concílio.

Nele se deu o embate de dois mundos ideológicos, de duas visões de realidade, de duas sensibilidades. Na linguagem mais em uso hoje, estavam em jogo dois paradigmas. Eles penetravam as estruturas da Igreja, o conteúdo dogmático do ensinamento do magistério, o comportamento dos hierarcas, o imaginário religioso dos fiéis, as práticas religiosas, a expressão de fé do cristão comum, o agir moral, a disciplina eclesiástica. João XXIII confiou na ação do Espírito Santo na assembléia dos bispos e não temeu esse confronto.

Aqui apareceu a novidade da pedagogia de João XXIII. Transferiu para o Concílio o lugar da discussão de maneira livre, ampla e com contribuições de todas as partes do mundo, em vez de concentrá-la em recintos reclusos da Cúria Romana. Em outros termos, Pio XII permitiu que novidades entrassem na Igreja. Mas a decisão e a triagem eram dele. Acolheu, p. ex., elementos modernos nos estudos bíblicos, na reforma litúrgica, na doutrina social. João XXIII, pelo contrário, entregou tal tarefa ao conjunto do Concílio e por isso a entrada foi maciça e massiva.

Pio XII abriu algumas janelas para a modernidade. Mas as que ele queria e quem ousasse abrir outras, poderia ser punido, como foi o caso da Nova Teologia. João XXIII modificou a pedagogia, ao permitir que toda a Igreja participasse no gesto de abrir janelas. E como foram muitas, as luzes da modernidade invadiram o recinto eclesial, dando a impressão que somente agora que elas iluminavam o céu eclesiástico. Noutras palavras, o conteúdo e a forma de proceder de João XXIII foram modernos.

5. A convocação

Com olhos do final do pontificado de Pio XII, a convocação de um Concílio era improvável e mesmo imprevisível. A teologia romana dominante, depois das definições do Primado e do magistério infalível do Romano Pontífice promulgadas pelo Vaticano I, julgava que o Papa poderia resolver com seus auxiliares imediatos os problemas da Igreja universal.

A escolha de um pontífice idoso tornava tal fato ainda mais improvável, sem falar do clima de incerteza do pós-guerra. No entanto, João XXIII, desde os primeiros dias de seu pontificado, conversou sobre tal idéia com seus ajudantes mais próximos.

A opinião pública da Igreja, porém, viu-se surpreendida com a decisão de convocar um Concílio. Ao encerrar a Semana da Unidade, a 25 de janeiro de 1959, diante de cardeais da Cúria, na sala capitular da Abadia de São Paulo-fora-dos-muros, João XXIII, como a coisa mais natural do mundo, anunciou o desejo de convocar um Concílio.

A repercussão foi paradoxal. Na publicidade, choveram vozes entusiastas de tal modo que João XXIII se referiu a essa excelente acolhida. Nos bastidores, ouviram opiniões temerosos. Conta-se que o próprio Cardeal Montini, futuro Paulo VI, teria dito:“aquele santo homem”, referindo-se a João XXIII, “não se dá conta de que se está metendo num vespeiro” e outro renomado cardeal, Lercaro, julgava uma imprudência e inexperiência tal convocação ([10]).

Diante da monta de tal fato, as análises daquele momento se dividiam em esperançosas e apreensivas. E havia indícios fortes para ambas. Os temores vinham tanto dos conservadores como dos progressistas. Os primeiros temiam um tsunami de idéias, propostas, desejos, aspirações que abalariam a tranqüilidade da ordem da Igreja. Roma receava a novidade como fonte de incerteza. Os progressistas vislumbravam muitos sinais de fechamento na Igreja, inclusive no próprio pontificado de João XXIII, como foram as decisões do Sínodo romano, a insistência da Constituição apostólica Veterum sapientia (1962) no ensino da filosofia e teologia nas instituições eclesiásticas na língua latina, quando já se começava a fazer as preleções em língua vernácula. E houve punições de exegetas que prosseguiam as pesquisas no espírito do movimento bíblico.

Depois que a preparação do Concílio se pôs em movimento, os prognósticos pareciam ainda mais escuros. Para confirmar essa expectativa sombria, vieram as nomeações para as comissões preparatórias do Concílio, cujas presidências foram confiadas à Cúria romana, símbolo e real oposição às mudanças. E para a presidência da Comissão Teológica, a que se confiava uma supervisão sobre a teologia conciliar, foi designado o todo-poderoso e temido Cardeal A. Ottaviani. Não deixa de ser significativo que o seu emblema cardinalício era "semper idem" - "sempre o mesmo". Não era nenhum bom agouro para uma comissão teológica em momento de mudança.

Havia, porém, escassos sinais de abertura que vinham sobretudo de discursos e gestos proféticos de João XXIII. Apostava-se muito na originalidade e imprevisibilidade da personalidade do Papa que sabia contornar com sabedoria situações conflituosas e difíceis. Isso se confirmou em vários momentos.

6. Relação com a cúria

Com o Concílio, encontraram no mesmo espaço romano duas instâncias de poder e governo da Igreja: o próprio Concílio e a Cúria romana. Experiência que não se vivia fazia quase um século. E ainda se acrescentava o fato de que o Concílio se tornara um verdadeira assembléia mundial e a Cúria romana se afigurava um pigmeu diante do gigante. Entretanto, ela tinha experiência de governo, estruturas em funcionamento, poder de fogo uma vez que ocupara as comissões preparatórias do Concílio e julgava poder decidir sobre seus rumos.

Nesse momento, uma lúcida intervenção de João XXIII estabeleceu normas importantes sobre a relação entre o Concílio e a Cúria. No discurso de 5 de junho de 1960, insistiu em que os órgãos do Concílio eram autônomos em relação à Cúria, constituídos por ampla representatividade do episcopado mundial sob a direção do próprio Papa. “O Concílio tem uma estrutura e organização próprias, que não se podem confundir com a função ordinária e característica dos vários Dicastérios ou Congregações que constituem a Cúria Romana, a qual continuará a função, mesmo durante o Concílio, de acordo com o curso ordinário das suas atribuições habituais como administradora geral da Santa Igreja. Destarte, a distinção é clara: uma coisa é o governo ordinário da Igreja, do qual se ocupa a Cúria Romana, e outra o Concílio” ([11]).

Alea jacta est. Estava jogada cartada importante, permitindo liberdade e criatividade aos padres conciliares, isentando-os da tutela romana.

7. Consulta aos bispos

Logo no início da preparação pensou-se, segundo o desejo do Papa, de ouvir de toda a Igreja quais seriam as questões importantes a serem trabalhadas no Concílio. A Comissão Antepreparatória tinha organizado um questionário longo e minucioso a ser enviado a todos os que tinham direito de vir ao Concílio segundo o Direito Canônico.

Esse caminho teria a vantagem de favorecer as respostas, mas condicioná-las-ia com as perguntas prévias. O Papa mostrou mais um vez sua confiança nos futuros padres conciliares e no desejo de ouvir realmente o que pensavam e queriam do Concílio. Pediu simplesmente que o Secretário de Estado Cardeal Tardini lhes enviasse uma carta concisa em que se dizia: “O augusto Pontífice, em primeiro lugar, deseja conhecer opiniões e pareceres e recolher conselhos e vota dos exmos. bispos e prelados que são chamados de direito a participar do Concílio Ecumênico (cân. 223): de fato sua Santidade atribui a maior importância aos pareceres, conselhos e vota dos futuros Padres conciliares; o que será muito útil na preparação dos temas para o Concílio” ([12]).

Com essa partida, contornava-se, em parte, o monopólio da Cúria, já que os bispos e prelados eram convidados a mandar para a Comissão Pontifícia Antepreparatória com absoluta liberdade, sinceridade e solicitude pastoral o que desejavam que fosse discutido no Concílio. Essa iniciativa modificava bastante o clima da preparação. Liberdade, sinceridade, solicitude pastoral ecoavam como atitudes fundamentais pedidas pelo Papa aos futuros Padres conciliares. Aí aparecia já, observa G. Zizola, a enorme diferença em relação ao Vaticano I, quando somente trinta e cinco bispos foram consultados ([13]). Quanto ao conteúdo, as respostas não foram lá grande coisa. Refletia a mente de bispos desabituados a serem consultados, mas o fato, por si mesmo, foi simbólico e relevante.

V. O Evento conciliar

1. O discurso inaugural

No discurso de Inauguração, João XXIII traçou a orientação fundamental para o Concílio. Não partilhou a posição de "almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos modernos, não vêem senão prevaricações e ruínas...Mas a Nós parece-Nos que devemos discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo" ([14]). Confessou-se esperançoso nos sinais que percebe no mundo e na Igreja.

O Concílio, João XXIII não visa, insistiu o Papa, a repetir e a proclamar o já conhecido, mas se espera dele "um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências", articulando "fidelidade à doutrina autêntica" e "indagação e formulação literária do pensamento moderno" ([15]). Trata-se de interpretar a revelação tradicional (Escritura e Tradição), dialogando com a modernidade. Nisso consiste o desafio pastoral de interpretar e não de condenar. Buscava-se a renovação da Igreja indo ao essencial da mensagem cristã. Só assim ela cumpre a missão de sinal da salvação visível e perceptível para o mundo de hoje ([16]).

Diferentemente dos concílios anteriores, o Vaticano II não pretendeu tomar posições dogmáticas definitórias nem condenatórias, mas intensificar o diálogo com o homem e a mulher de hoje, lançando ponte para o mundo contemporâneo em nítido contraste com as posições conservadoras de Gregório XVI (1831-1846) de Pio IX (1846-1878), que conflitavam fortemente com a modernidade ([17]).

João XXIII marcou nitidamente a característica ecumênica, ao dizer que "infelizmente a família cristã, no seu conjunto, não chegou ainda a esta visível unidade na verdade. A Igreja Católica julga portanto dever seu empenhar-se ativamente para que se realize o grande mistério daquela unidade, que Jesus Cristo pediu com oração ardente ao Pai do Céu pouco antes do seu sacrifício" ([18]).

Além de ecumênico, João XXIII quis um Concílio pastoral e atualizado, usando a palavra italiana "aggiornamento" ou "atualização" ([19]). O termo “pastoral” significava uma abertura ao mundo moderno de onde vinham as questões a serem respondidas e para quem se respondiam. O texto conciliar deveria corresponder às aspirações, compreensões, desejos, perspectivas dos homens e mulheres situados no mundo moderno, como aparece no proêmio da Constituição pastoral Gaudium et spes.

Pelo termo "aggiornamento", entendia-se a "idéia motora e central" do itinerário espiritual e da concepção da missão pastoral da Igreja ([20]). Na sua primeira Encíclica Ad Petri cathedram (29 de junho de 1959) indicara como tríplice finalidade do Concílio: O incremento da fé, a renovação dos costumes e a adaptação (aggiornamento) da disciplina eclesiástica às necessidades do tempo atual. E como conseqüência se seguirá a união das comunidades cristãs separadas. João XXIII tinha bem metida a idéia de que a Igreja devia atualizar-se, responder ao mundo moderno e caminhar na linha da paz, da unidade da humanidade.

2. O grande embate ideológico e institucional

Uma leitura sintética descobre no Concílio Vaticano II alguns embates fundamentais de diferente natureza. Para captar-lhe o jogo interno, apontarei alguns desses entreveros: teológico, bíblico, litúrgico, sociocultural e institucional.

Confrontaram-se duas teologias básicas. De um lado, a teologia dogmatista, como descrevemos acima, na afirmação clara das verdades abstratas, universais, imutáveis e, de outro, a teologia hermenêutica que pretende interpretar para o mundo de hoje a revelação de Deus. Esse choque se deu especialmente a propósito da discussão sobre as "Fontes da Revelação" e, de modo especial, sobre a Escritura. Deslocou-se de uma interpretação "especular", a modo de espelho, da Escritura, da Tradição, dos dogmas, da verdade, em geral, para uma interpretação histórico-existencial. O aspecto objetivo perde sua centralidade absoluta, permitindo a entrada da história, da subjetividade, da experiência, da intersubjetividade como mediações interpretativas fundamentais.

A novidade do Primado absoluto da Palavra de Deus perturbou as águas serenas do uso comum da Escritura tanto na teologia como na prática dos fiéis. Ela cumpria a função de “loca probantia” na teologia e de afirmações éticas, moralistas e dogmáticas para os cristãos. Os professores na aula, os pregadores nas homilias referiam-se muito à Escritura, mas cada citação valia por ela mesma, como uma mônada fechada, fora de contexto, do gênero ou da forma literária, da tradição, da intenção do redator e de outros elementos da exegese moderna. Do movimento bíblico, vinha outra concepção da Escritura, articulando a dimensão de Revelação com as regras de interpretação textual. Além do mais, discutiu-se arduamente a questão da relação entre Escritura, Tradição e Magistério. Chegou-se a uma redação consensual, cheia de filigranas e rodeios para evitar os arrecifes dos conservadores.

A discussão sobre a Liturgia girou em torno de duas concepções fundamentais a respeito do mistério eucarístico. Predominava a centralização no ato cúltico sacerdotal de modo que os fiéis se compreendiam como receptores dos frutos do sacrifício celebrado que valia por ele mesmo. Por isso, durante a celebração bastava uma presença de fé sem nenhuma participação ativa e mesmo sem muita compreensão do que se realizava já que a língua latina era ininteligível. Do movimento litúrgico vinha a valorização da assembléia litúrgica que se constitui com a presença dos fiéis e o ministro ordenado. É ela o sujeito da celebração eucarística que manifesta e realiza o Mistério de Cristo e da sua Igreja. Como conseqüências práticas impuseram-se a importância da participação pessoal, comunitária e a maior transparência dos ritos para que os fiéis percebessem mais claramente o seu significado.

O debate sociocultural se travou em torno de dois universos: a liberdade religiosa com conseqüências para o diálogo ecumênico, inter-religioso e com os humanistas ateus e a concepção da relação Igreja e mundo moderno. Em ambos estava presente a concepção conflituosa de modernidade e pré-modernidade. Chegou-se também a acordos com uma predominância do pensar moderno que superou a defesa agressiva do direito absoluto e único da verdade e a consciência de que só a Igreja católica possuía toda a verdade. O erro não teria nenhum direito e por isso todas as expressões de fé, que não fossem a católica, não gozariam do direito de manifestar-se publicamente, por serem falsas e erradas. Quebrar essa espinha dorsal da pré-modernidade custou muito sofrimento e discussão ao Concílio ([21]). E na Gaudium et spes, deu-se salto qualitativo na compreensão da complexidade da modernidade e ofereceram-se balizas para a ação pastoral da Igreja.

Ainda no debate sociocultural entraram em jogo temas como: o pluralismo religioso, o respeito à liberdade de opinião e de consciência, o direito de existência pública de qualquer religião que não atente contra o Estado. A posição conservadora fazia ecoar frases do magistério de Gregório XVI que considerava a liberdade de consciência um "deliramento" ([22]), a liberdade de opinião, ampla e irrestrita, um "erro pestilentíssimo" ([23]). O Concílio aceitava o reclamo moderno do direito constitucional inviolável à liberdade religiosa desde a perspectiva da dignidade da pessoa humana que se autodetermina na fé de maneira livre e não pode crer de maneira coagida de fora. Tal direito compete ao indivíduo e à comunidade nos diversos campos da pesquisa, da associação, da comunicação, das finanças, do testemunho público, do culto, dos costumes, desde que não conflitem com a paz comum ([24]).

Na mesma linha de idéias os temas do ecumenismo, do diálogo inter-religioso e com os humanistas ateus reafirmavam a existência da verdade fora dos redutos da Igreja católica, a historicidade de toda expressão religiosa, a pluralidade cultural e religiosa como expressão de riqueza e não de desvio ou erro.

Não menos árdua foi a polêmica institucional. Encontravam-se na mesma assembléia padres conciliares que se originavam da Cúria romana, outros vindos da pastoral diocesana e gerais religiosos. Uns encarnavam mais a Instituição central, outros refletiam a problemática local, que, por sua vez, respingava modernidade ou pré-modernidade. E havia os que vinham de ambientes fora do mundo ocidental.

Traduzindo em termos institucionais, o debate refletia a diversidade de interesses entre os da burocracia central e os dos fiéis situados em contextos humanos diferentes. Eram duas sensibilidades que tiveram que trabalhar consensos com renúncia de pontos de vista em vista do bem maior da Igreja.

3.Opções fundamentais do Concílio

O Concílio é mais que seus documentos. Ele é uma "intencionalidade". Esta é, antes de tudo, uma intuição, uma percepção global, uma evidência conatural, um espírito. Funciona como coluna vertebral do conjunto dos textos. Oferece a chave hermenêutica mais importante. Contudo, está em tensão com o texto. De um lado, ela manifesta-se nos textos, emerge deles, justifica-se e explicita-se neles. Doutro lado, não se esgota neles nem consegue moldá-los todos a sua imagem e semelhança, já que os escritores não são um Deus criador. Por isso, encontram-se textos que a negam e justificam uma outra posição hermenêutica. Nesse caso, trava-se a batalha em torno da "intencionalidade fundamental". É exatamente isso que estamos vivendo no momento atual.

A "intencionalidade", que se impusera na hermenêutica da maioria, nos anos imediatos ao pós-concílio, vem sendo considerada atualmente por largos setores eclesiásticos, como uma falsa leitura do Concílio. E voltando aos textos, encontram outra intencionalidade. E apresentam-na como a autêntica leitura conciliar.

Propomos como a intencionalidade fundamental do Concílio o diálogo com a Reforma e com a modernidade, num espírito ecumênico e de atualização. Justificamos até o momento tal intencionalidade quer pelos movimentos preparatórios, quer pela atuação de João XXIII na orientação que deu ao Concílio.

Caberia fazer uma leitura honesta e pertinente dos textos conciliares na ótica da intencionalidade fundamental para ver se ela se justifica. No entanto, no âmbito de uma palestra não cabe tal pesquisa. Não se consegue descavar-lhe a riqueza infindável da mina.

Existe consenso no fato de que o tema central do Concílio Vaticano II foi a Igreja. Com certa facilidade, consegue-se organizar todas as suas Constituições, Decretos, Declarações em torno do eixo central da Igreja, quer na sua dimensão interna (ad intra), quer na sua relação com realidades externas (ad extra).

Ao olhar "ad intra", em relação a si mesma, a Igreja se pensa na sua auto-realidade (Constituição dogmática Lumen gentium), na clarificação de sua mensagem (Constituição dogmática Dei Verbum), na sua relação cúltica (Constituição Sacrosanctum concilium), nos seus ministérios episcopal e presbiteral (Decretos Christus Dominus, Presbyterorum ordinis), na vida e formação de seus membros religiosos (Decreto Perfectae caritatis), seminaristas (Decreto Optatam totius), leigos (Decreto Apostolicam actuositatem) e na crucial questão da Educação (Declaração Gravissimum educationis).

Olhando "ad extra", para fora de si, a Igreja (latina) se relaciona com as denominações cristãs (Decreto Unitatis redintegratio), com as Igrejas orientais católicas e ortodoxas (Decreto Orientalium ecclesiarum), com a sua vocação missionária (Decreto Ad gentes), com as religiões não-cristãs (Declaração Nostra aetate), com o direito à liberdade religiosa (Declaração Dignitatis humanae), com os meios de comunicação (Inter mirifica) e com o Mundo de hoje (Constituição pastoral Gaudium et spes).

Ao iniciar a 2ª Sessão do Concílio, Paulo VI marcou claramente o sentido eclesiológico do Concílio, ao indicar-lhe quatro pontos: "A consciência da Igreja, sua renovação, o restabelecimento da unidade de todos os cristãos, o diálogo da Igreja com os homens de hoje". Além disso, o Papa insistiu: "É coisa fora de dúvida que é um desejo, uma necessidade, um dever, para a Igreja, o dar finalmente de si mesma uma definição mais profunda..". "Por isso é que o tema principal desta Segunda Sessão do Concílio será a Igreja. Sua natureza íntima será estudada a fundo, para sobre ela dar, nos limites permitidos à linguagem humana, uma definição que possa instruir-nos melhor sobre a sua constituição real e fundamental, e que nos faça descobrir melhor os múltiplos aspectos da sua missão salvadora" ([25]).

4. A natureza da opção eclesiológica

A leitura apurada dos textos, sobretudo da Lumen Gentium, revela duas eclesiologias fundamentais em tensão, que correspondem praticamente ao duplo paradigma da pré-modernidade e modernidade ([26]). E a intencionalidade do Concílio foi privilegiar o novo paradigma da modernidade, aceitando, pela via do compromisso, elementos do paradigma anterior.

A opção eclesiológica fundamental do Vaticano II expressa-se na colegialidade em todos os níveis, na precedência do Povo de Deus em relação à hierarquia que existe em função dele, na Igreja universal como comunhão de Igrejas particulares, na relevância da Igreja particular que realiza a totalidade da Igreja em comunhão com as outras Igrejas e com Roma, no papel do leigo, na dimensão sacramental salvífica, na condição da Igreja de discípula da Palavra a serviço do Reino de Deus. Esta é a eclesiologia nova, original do Concílio.

No texto também se encontra uma eclesiologia residual, que valoriza sobremaneira o Primado, a hierarquia clerical, as dimensões jurídicas, a estrutura dos ministérios.

A opção principal e hegemônica impinge na trajetória da eclesiologia várias inversões que vão definir mais claramente o sentido da novidade do Concílio ([27]). Essas inversões expressam-se na mudança de concepção de Igreja.

O modelo de Igreja-sociedade perfeita, cujos contornos visíveis e jurídicos se deixavam identificar, eclipsa-se diante da visão de uma Igreja-mistério que vem da Trindade, é-lhe ícone e orienta-se para ela. Recupera-se este aspecto de mistério, seja superando a visão objetivista pré-moderna, como revalorizando as fontes teológicas através das pesquisas históricas.

Abandona-se uma visão essencialista da Igreja em prol de uma compreensão sacramental histórico-salvífica. Também aqui se deixa para trás a pergunta escolástica pelas notas essenciais em direção à valorização do sinal, da história.

O Concílio deslocou o enfoque de uma Igreja pensada a partir da hierarquia nos seus três centros - Papa, bispo e sacerdote-pároco - e centrada nela para entendê-la como povo de Deus, a cujo serviço se põe a hierarquia. O tom aristocrático monárquico é substituído pela sensibilidade democrática da modernidade.

Ele abriu o horizonte teológico do projeto salvífico de Deus, confinado aos limites visíveis da Igreja, até as margens infindas do Reino de Deus. Substituiu a preocupação tipicamente pré-moderna de definir os elementos externos pela do mistério da presença de Deus para além deles.

Rompeu a centralização romana para valorizar as riquezas, a co-responsabilidade, a contribuição colegial, a diversidade cultural, a comunhão das igrejas particulares. As dimensões de participação, de diálogo, de superação dos poderes absolutos, próprias da modernidade, aparecem nessa nova tendência eclesial.

Fez-se a passagem da consciência de uma Igreja ocidental, romana, etnocêntrica, identificada com a universalidade, para uma real Igreja universal, pluricultural, pluri-étnica nas expressões de fé, na teologia, na liturgia, na disciplina, nas estruturas organizativas. A globalização da modernidade, iniciada com as grandes viagens dos séculos XV e XVI e manifestada no Concílio mais mundial da História da Igreja com 2.540 Padres Conciliares de todas as raças, de todas as cores, atingiu a consciência européia ocidental de modo contundente, permitindo essa nova consciência universal.

Enfim, estabeleceu-se a "paz moderna", reconciliando-se a Igreja com os principais valores e reclamos da modernidade através de uma visão positiva do mundo, das realidades terrestres. Aqui a modernidade gritou bem alto sua visão de progresso, de confiança na razão humana, de compromisso com as realidades seculares.

Todas essas inversões eclesiológicas, portanto, refletem a influência e a presença no interior da Igreja do paradigma da modernidade. E confirmam assim a opção fundamental do Concílio.

À guisa de conclusão: A crise pós-conciliar

O fiel comum pode perguntar-se surpreso, se é verdade que o Concílio Vaticano II fez a passagem da Igreja pré-moderna para dentro da modernidade, por que tantos sinais de retrocesso? Por que se fala de restauração ([28]), de neoconservadorismo ([29])?

Não abordarei esta questão já tratada em outro lugar ([30]) em seu sentido mais amplo. Dentro da ótica da relação do Concílio Vaticano II com a modernidade, a razão se encontra na tensão latente que atravessou toda a preparação, desenrolar e textos conciliares. Concílio de consenso e compromissos, entre uma maioria que se construiu lentamente em defesa da abertura à modernidade e que confeccionou praticamente os documentos e de uma minoria cada vez mais resistente que marcou o máximo que pôde o texto com pegadas pré-modernas.

Paulo VI optara para que os textos conciliares só fossem aprovados com larga maioria. Não queria, de modo nenhum, dar a entender que havia facções antagônicas e que os documentos significavam a vitória de uma sobre a outra. Deviam manifestar para a Igreja e para o mundo que nasciam de uma comunhão de corações e mentes. Essa opção está na base dos compromissos lingüísticos e permite e permitiu que depois do Concílio houvesse interpretações diferenciadas, apoiadas na literalidade do texto.

Houve duas ondas interpretativas. Uma primeira que se levantou logo depois do Concílio. Sensível e desejosa de mudanças, leu os textos sob o prisma da novidade, da ruptura, como fizemos preferencialmente nessa conferência. Ela produziu uma efervescência no interior da Igreja com resultados renovadores maravilhosos, mas também com desvios e até desvarios. Graças a ela, a Igreja católica fez uma entrada na modernidade e assumiu uma face próxima do homem e mulher de hoje.

Mas por causa de mudanças conjunturais na Igreja, de certos refluxos no contexto sócio-político, uma outra onda se ergueu, recuperando do texto conciliar os resíduos tradicionais, pré-modernos. E empenhou-se em reverter a dinâmica inovadora, ao aproveitar das brechas deixadas pelo Concílio. Assim os princípios fundamentais da igualdade de todos os cristãos pelo batismo, a necessidade de participação colegial em todos os níveis, a valorização das experiências, a liberdade de expressão na Igreja, os ideais democráticos e outros pontos inovadores do Concílio foram detidos no seu fluxo. Eles não tinham conseguido consubstanciar-se em estruturas e em estatutos jurídicos, tornando-se frágeis e susceptíveis de retrocesso.

Destarte, permanece para a atual Igreja a tarefa de prosseguir o movimento iniciado no Concílio de diálogo aberto e crítico com a modernidade, transformando um espírito em história, uma intencionalidade em práxis, desejos e opções na verdade dos fatos. Aí joga o futuro do Concílio. Em termos teológicos, o Concílio é um fato passado. A sua recepção decide sobre sua validez e força histórica.

Em outros termos, o Concílio como evento terminou. Como espírito prossegue. "O Vaticano II é sobretudo um Concílio que se distingue muito mais pelo novo espírito, que pelas novas explicitações da doutrina cristã. Não faltam, é certo, novas explicações (por exemplo sobre a Igreja, o Episcopado, o Presbiterato, a Tradição, a Liberdade Religiosa, etc.), mas o especificamente novo e importante do XXI Concílio Ecumênico está na sua atitude pastoral, ecumênica e missionária perante o mundo de hoje" ([31]). Em outras palavras, seu espírito novo, sua intencionalidade fundamental é dialogar e abrir-se à modernidade. E atinar e assumir esse espírito continua o desafio para a atual Igreja!





[1] . J. Delumeau, Le catholicisme entre Luther et Voltaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1971, p. 5.

[2] . G. Gusdorf, A agonia da nossa civilização, São Paulo, Convívio, 1978, pp. 32s.

[3]. DS 3505-3528.

[4]. J. Daniélou, Les orientations présentes de la pensée religieuse, in Etudes 249 (1946), p. 7.

[5] . G. Zizola, A utopia do Papa João, São Paulo, Loyola, 1983, p. 291.

[6]. Mes six papes. Souvenirs romains du Card. J. Martin, Paris, Mame, 1993, p. 93.

[7]. Id., p. 94.

[8] . G. Zizola, A utopia do Papa João, São Paulo, Loyola, 1983, p. 198.

[9]. João XXIII na bula Humanae salutis (25.12.1961) de convocação do Concílio Vaticano II insiste nessa abertura aos sinais dos tempos: "Fazendo nosso o apelo de Jesus pedindo que se seja atento aos ``sinais dos tempos'' - Mt 16,4 -, parece-nos perceber, no meio de tantas trevas, indícios numerosos que levam a augurar futuro à Igreja e à humanidade": G. Ruggieri, Foi et histoire, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, p. 132; ver também: Cl. Boff, Sinais dos tempos. Princípios de leitura, São Paulo, Loyola, 1979.

[10] . Fontes citadas por N. de Souza, Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II, in P. S. Lopes Gonçalves - V. I. Bombonatto, org., Concílio Vaticano II. Análise e prospectivas. São Paulo, Paulinas, 2004, p. 27.

[11] . G. Zizola, A utopia do Papa João, São Paulo, Loyola, 1983, p. 306.

[12] . Citado no artigo de J. O. Beozzo, O Concílio Vaticano II: Etapa preparatória, in Vida Pastoral 46 (2005), n. 243, p. 5; P. Beozzo oferece dados interessantes do número das respostas a essa carta-pedido.

[13] . G. Zizola, op. cit., p. 304.

[14]. João XXIII, O Programático Discurso de Abertura, in B. Kloppenburg, Concílio Vaticano II. V.II: Primeira Sessão (set.- dez. 1962), Petrópolis, Vozes, 1963, p. 308.

[15]. id., p. 310.

[16]. H. J. Pottmeyer, Vers une nouvelle phase de réception de Vatican II. Vingt ans d'herméneutique du Concile, in G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, p. 56.

[17]. Entre as sentenças condenadas do Syllabus de Pio IX consta essa afirmação: "O Pontífice Romano pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, com o liberalismo e com a recente civilização": DS 2980.

[18]. João XXIII, O Programático Discurso de Abertura, in: B. Kloppenburg, Concílio Vaticano II. V.II: Primeira Sessão (set.- dez. 1962), Petrópolis, Vozes, 1963, p. 311.

[19]. G. Ruggieri, Foi et histoire, in: G. Alberigo - J.-P. Jossua, La réception de Vatican II, Paris, du Cerf, 1985, pp. 136-141.

[20]. A. Barreiro, A figura carismática de João XXIII e seu programa conciliar de "aggiornamento", in Síntese Nova Fase 1 (1974), n. 2, pp. 21-40. O autor cita ampla bibliografia sobre esse tema, encomiando, de modo especial, a obra de F. M. William, Vom jungen Angelo Roncalli 1903-1907 zum Papst XXIII 1958-1963, Innsbruck, 1967.

[21]. B. Häring, Minha participação no Concílio Vaticano II, in REB 54 (1994), p. 394.

[22]. Gregório XVI, Mirari vos arbitramur (1832) ensina: "da pestífera fonte do indiferentismo flui a absurda e errônea afirmação, antes um delírio, que a liberdade de consciência deve ser afirmada e reivindicada por toda pessoa”: DS 2730.

[23]. ibid., DS 2731.

[24]. J. T. Burtchaell, Religious freedom (Dignitatis humanae), in A. Hastings, ed., Modern Catholicism. Vatican II and After, London/New York, SPCK/Oxford Univesity Press, 1991, pp. 118-125.

[25]. Paulo VI, O Discurso de Abertura da II Sessão, in B. Kloppenburg, Concílio Vaticano II. V.III : Segunda Sessão (set.- dez. 1963), Petrópolis, Vozes, 1964, pp. 512-513.

[26]. A. Acerbi, Due ecclesiologie: ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di communione nella "Lumen Gentium", Bologna, 1975; H. J. Pottmeyer, Kirche auf dem Weg: 20 Jahre nach dem II. Vat. Konzil, in Universitas 37 (1982), pp. 1251-1264; A. Antón, Ecclesiologia postconciliare: speranze, risultati e prospettive, in: R. Latourelle, org., Vaticano II. Bilancio e prospettive. 25 anni dopo: 1962-1987, Assisi, Cittadella, 1987, I, pp. 363ss.

[27]. Trato mais detalhadamente dessas tendências em: A trinta anos do encerramento do Concílio Vaticano II. Chaves teológicas de leitura, in: Perspectiva Teológica 27 (1995), pp. 309-320.

[28]. O próprio Card. Ratzinger defronta-se com o termo "restauração": "Se por 'restauração` se compreende voltar atrás, então nenhuma restauração é possível. A Igreja vai para a frente em direção ao cumprimento da História, olha adiante para o Senhor que vem. Mas se por 'restauração` compreendemos a busca de um novo equilíbrio, após os exageros de uma abertura indiscriminada ao mundo, depois das interpretações por demais positivas de um mundo agnóstico e ateu; pois bem, uma 'restauração` compreendida neste sentido é inteiramente desejável e já está em curso na Igreja": J. Ratzinger - V. Messori, A fé em crise? O Card. Ratzinger se interroga, São Paulo, EPU, 1985.

[29]. J. I. González Faus, El meollo de la involución eclesial, in Razón y Fe 220 (1989), nn. 1089/90, pp. 67-84; O neoconservadorismo. Um fenômeno social e religioso, in Concilium n. 161 - 1981/1; F. Cartaxo Rolim, Neoconservadorismo eclesiástico e uma estratégia política, in REB 49(1989), pp. 259-281; J. Comblin, O ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana, in REB 50 (1990), pp. 44-73; J. Comblin, Teologia da Libertação. Teologia neoconservadora e teologia liberal, Petrópolis, Vozes, 1985.

[30]. J. B. Libanio, A volta à grande disciplina, São Paulo, Loyola, 1984.

[31]. B. Kloppenburg, A Eclesiologia do Vaticano II, Petrópolis, Vozes, 1971, p. 16.



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