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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Os preferidos de Deus.

Quinta, 05 de setembro de 2013 (Artigo de Gustavo Gutiérrez) É necessário conhecer as razões da pobreza em nível social, econômico e cultural. Isso exige instrumentos de análise que nos são fornecidos pelas ciências humanas, mas, como todo pensamento científico, elas trabalham com hipóteses que permitem compreender a realidade que buscam explicar. Isso equivale a dizer que elas são chamadas a mudar diante de fenômenos novos. A opinião é do teólogo dominicano peruano Gustavo Gutiérrez, um dos "pais fundadores" da Teologia da Libertação, autor de Teologia da Libertação: Perspectivas (Ed. Loyola). O artigo foi publicado no jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, 04-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto. Não estamos com os pobres se não somos contra a pobreza, dizia Paul Ricoeur há muitos anos. Ou seja, se não rejeitamos a condição que oprime uma parte tão importante da humanidade. Não se trata de uma rejeição meramente emotiva. É necessário conhecer as razões da pobreza em nível social, econômico e cultural. Isso exige instrumentos de análise que nos são fornecidos pelas ciências humanas, mas, como todo pensamento científico, elas trabalham com hipóteses que permitem compreender a realidade que buscam explicar. Isso equivale a dizer que elas são chamadas a mudar diante de fenômenos novos. É o que acontece hoje diante da presença dominante do neoliberalismo que vem sobre as costas de uma economia cada mais autônoma da política (e, antes ainda, da ética), graças ao fenômeno conhecido pelo termo, um pouco bárbaro, "globalização". A situação assim designada, como sabemos, vem do mundo da informação, mas tem poderosas repercussões sobre o campo econômico e social, e em outros âmbitos da atividade humana. No entanto, a palavra é enganosa, porque faz acreditar que nos orientamos rumo a um mundo único, quando, na realidade, e no momento atual, comporta inevitavelmente uma contrapartida: a exclusão de uma parte da humanidade do circuito econômico e dos chamados benefícios da civilização contemporânea. Uma assimetria que se torna cada vez mais pronunciada. Milhões de pessoas são, assim, transformadas em objetos inúteis, ou descartáveis após o uso. Trata-se daqueles que ficaram fora do âmbito do conhecimento, elemento decisivo da economia dos nossos dias e o eixo mais importante de acumulação de capital. Deve-se notar que essa polarização é consequência da forma em que estamos vivendo hoje a globalização, que constitui um fato que necessariamente não deve assumir os contornos atuais de uma crescente desigualdade. E, como sabemos, sem igualdade, não há justiça. Sabemos disso, mas o problema assume hoje uma urgência cada vez maior. O neoliberalismo econômico postula um mercado sem limites, chamado a se regular sozinho e submete qualquer solidariedade social nesse campo a uma dura crítica, acusando-a não só de ser ineficaz com relação à pobreza, mas até de ser uma das suas causas. Que houve abusos nesse campo é claro e reconhecido, mas aqui estamos diante de uma recusa de princípio que deixa sem proteção os mais frágeis da sociedade. Um dos corolários desse pensamento, e um dos mais dolorosos e agudos, é o da dívida externa, que oprime e mantém as mãos amarradas das nações pobres. Dívida que cresceu de maneira espetacular, dentre outros motivos, por causa das taxas de juros manipuladas pelos próprios credores. O pedido do seu cancelamento foi um dos pontos mais concretos e interessantes da decisão de João Paulo II de celebrar um jubileu, no sentido bíblico do termo, para o ano de 2000. Essa desumanização da economia, em vigor há algum tempo, que tende a transformar tudo em mercadoria, inclusive as pessoas, foi denunciada por uma reflexão teológica que mostra o caráter idólatra, no sentido bíblico do termo, desse fato. As circunstâncias atuais não só tornaram mais urgente esse chamado, mas também forneceram novos elementos de aprofundamento. Por outro lado, assistimos hoje a uma curiosa tentativa de justificação teológica do neoliberalismo econômico que, por exemplo, compara as multinacionais ao Servo de YHWH, atacado e vilipendiado por todos, enquanto delas viriam a justiça e a salvação. Sem falar da chamada teologia da prosperidade, que tem vínculos muito estreitos com a posição recém-lembrada. Isso levou, às vezes, a postular um certo paralelismo entre cristianismo e doutrina neoliberal. Sem negar as suas intuições, é preciso se interrogar sobre o porte de uma operação que nos lembra aquela que, no extremo oposto, foi feita, há anos, para refutar o marxismo, considerado também como uma espécie de "religião", que, além disso, teria seguido, passo a passo, a mensagem cristã (pecado original e propriedade privada, necessidade de um redentor e proletariado etc.). Mas essa observação, é claro, não tira nada da necessidade de uma crítica radical das ideias dominantes hoje no âmbito da economia. Ao contrário. Uma reflexão teológica a partir dos pobres, preferidos por Deus, se impõe. Ela deve levar em consideração a autonomia da disciplina econômica e, ao mesmo tempo, ter em mente a sua relação com o conjunto da vida dos seres humanos, o que comporta, acima de tudo, levar em consideração uma exigência ética. Da mesma forma, evitando entrar no jogo das posições que acabamos de mencionar, não devemos perder de vista que a rejeição mais firme às posições neoliberais ocorre a partir das contradições de uma economia que se esquece cinicamente e, a longo prazo, de maneira suicida dos seres humanos, particularmente daqueles que não têm defesas nesse campo, isto é, hoje, a maior parte da humanidade. Trata-se de uma questão ética no sentido mais amplo do termo, que impõe que entremos nos perversos mecanismos que distorcem a partir de dentro a atividade humana chamada economia. Esforços corajosos de reflexão teológica são feitos nesse sentido entre nós. Nessa linha, a da globalização e da pobreza, também devemos colocar as perspectivas abertas pelas correntes ecologistas diante da destruição, igualmente suicida, da natureza. Elas nos tornaram mais sensíveis a todas as dimensões do dom da vida e nos ajudaram a ampliar o horizonte da solidariedade social que deve compreender um respeitoso vínculo com a natureza. O problema não diz respeito apenas aos países desenvolvidos, cujas indústrias causam tantos danos ao habitat natural da humanidade. Envolve a todos, também os países mais pobres. É impossível hoje refletir teologicamente sobre o problema da pobreza sem levar em conta essas realidades. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/523396-os-preferidos-de-deus-artigo-de-gustavo-gutierrez

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

CRISTIANISMO ESQUIZOFRÊNICO

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS///////////////////////////////// O termo esquisofrenia provém do universo da psicologia ou da psicoterapia. De acordo com os dicionários da língua portuguesa, designa “uma demência precoce caracterizada por distúrbios da afetividade”, ou também “uma desintegração da personalidade humana”. Transposto ao campo religioso, pode ser utilizado como metáfora para definir aqueles que, implícita ou explicitamente, costumam separar a fé do comportamento prático, seja este de ordem pastoral, socioeconômico ou político-cultural. Atualmente constituem uma boa fatia dos que se declaram “cristãos”. Normalmente participam dos sacramentos, das práticas religiosas, do culto da Palavra ou da eucaristia, ao mesmo tempo que, no mundo dos negócios, do lugar em que moram e do trabalho, o seu modo de ser não sofre qualquer influência da mensagem evangélica. Com frequência, apreciam e admiram as palavras do Papa, do sacerdote, do pastor ou de qualquer outra autoridade religiosa (por exemplo), mas isso não significa aceitá-las na prática. Conseguem estabelecer uma distância razoável entre o “autodefinir-se como cristão” e o “viver como cristão”. No geral, revelam-se capazes de blindar a própria existência contra as exigências de uma fé levada verdadeiramente a sério, subtraindo-se às consequências da mesma. De resto, em grau maior ou menor, essa distância entre fé e vida existe em todos nós. “Tra il dire e il fare in mezzo c’è il mare”, diz um provérbio italiano. No caso específico do catolicismo, a fé em Jesus Cristo torna-se um sentimento de natureza privada, intimista e espiritualizante, sem implicações diretas no contexto histórico em que a pessoa se encontra inserida. Prevalece um dualismo muitas vezes inconsciente: enquanto o “encontro com Deus” na oração pessoal, na piedade comunitária ou na celebração eucarística adquire um caráter estático de êxtase e fácil entusiasmo, o “encontro com os irmãos” mantém-se frio e indiferente diante da injustiça e da opressão, do sofrimento e da exclusão social. Não é incomum encontrar grandes empreendedores e renomadas autoridades (na área das finanças, da agro-indústria, das tele-comunicações, da mineração, da política e das redes comerciais – só para citar alguns exemplos) que se revelam assíduos na oração e na missa, mas contemporaneamente não exitam em pagar salários irrisórios, em manter enormes latifúndios, em apropriar-se indevidamente da rex publica ou em explorar a mão-de-obra fácil e barata, quando não infantil ou de imigrantes irregulares. Perto de Deus, sem dúvida, mas distantes do próximo e mais ainda daqueles que incomodam! Até que ponto isso é possível numa fé evangelicamente autêntica? Ou ainda, esse deus (com letra minúscula) não será um ídolo facilmente manipulável? Evidente que, embora em doses diferenciados, a mesma atitude se repete em todos os extratos e classes sociais. Chegamos ao extremo de “uma descrença objetiva”, ao lado de uma “piedade subjetiva”, diz com acerto o teólogo alemão Jurgen Moltmann (Teologia da esperança). Afirma ainda o mesmo autor: “A vida interior feita de relações diretas e incomunicáveis entre a existência e a transcendência, caminha pari e passo com o desprezo das coisas exteriores, consideradas absurdas, privadas de senso e iníquas”. A relação com Deus desvincula-se da relação com os outros, como se rezar o “Pai nosso” não implicasse um combate coletivo e fraterno pela busca do “pão nosso de cada dia”. De fato, se o Pai é “nosso”, o pão jamais poderá ser “meu”. A fé divorcia-se da vivência eclesial e da ação social. A oração diante do Cristo Ressuscitado se interioriza numa forte sensação de louvar ao Deus eternamente presente e glorioso, a ponto de desinteressar-se por completo de qualquer compromisso com a realidade que nos cerca. Instala-se uma clara dicotomia entre a vivência da fé, às vezes eufórica e exagerada, por um lado, e, por outro, a ação pessoal, social ou política nos embates da existência, na família, no grupo de amigos, enfim, no cotidiano da vida. Ambas parecem linhas paralelas de uma ferrovia, ou seja, linhas que jamais se cruzam e menos ainda se interpelam. Pior ainda, a vida privada e a vida pública correm o risco de dissociar-se a tal ponto de uma sequer reconhecer a outra. O que eu sou em casa e na Igreja, digamos, é uma coisa; o que eu sou ou como vivo la fora, é outra. Dois tipos de comportamento fragmentados, não raro em contradição entre si. Quantas vezes o escândalo de um representante de alto escalão da política, dos negócios ou da religião, quanto escancarado pela mídia, revela essa dupla face da mesma pessoa! Nas cartas de Paulo, particularmente na Primeira aos Coríntios, o apóstolo combate esse êxtase falso de uma expectativa imediata do Reino – próprio da Igreja primitiva – como se a segunda vida de Cristo estivesse às portas. Semelhante expectativa levava os cristãos a desinteressar-se das “coisas do mundo”, para refugiar-se numa atitude de fé estéril e descompromissada. Ao invés de uma preocupação pela transformação do mundo, prevalecia o seu abandono puro e simples. Por que fazer algo se o fim está próximo! Basta esperar o Senhor! Vem, Senhor Jesus! Se, por uma parte, é verdade que Cristo ressuscitou dos mortos e está vivo, diz Paulo, por outra, também é certo que nós permanecemos sujeitos às incongruências e contradições deste mundo, submetidos ao domínio do pecado e da morte. Experimentamos o “já” da ressureição de Jesus como antecipação da glória futura e, ao mesmo tempo, o “ainda não” que mantém o corpo e o espírito na expectativa do cumprimento da promessa expressa na vinda gloriosa. O apóstolo enfatiza uma diferença fundamental, muitas vezes pouco levada a sério. Enquanto Cristo passou pelo processo da cruz e da ressurreição, nós ainda vivemos sob o signo do sofrimento e da cruz. Não podemos abandonar sem mais a “carne do mundo” (Bruno Forte) onde se encontram tantos irmãos e irmãs crucificados. Parafraseando Paulo Freire, ninguém se salva sozinho, ninguém salva ninguém; todos nos salvamos juntos. Caminhamos nas trevas, à sombra da cruz, tendo na mão a chama da ressurreição do Messias, na fé e na esperança de nossa própria ressurreição e da instalação definitiva do Reino de Deus. Vale insistir, a promessa que nos impele à ação no mundo “já” se fez presente em Jesus morto e ressuscitado, mas “ainda não” se cumpriu em nós mesmos. Daí a exigência de uma fé que se desdobre em prática transformadora diante de uma sociedade que contradiz o plano de Deus. Por isso é que a fé e a esperança conduzem ambas à prática da caridade. Enquanto estamos a caminho, não podemos separar “justos e injustos”, “fiéis e infiéis”, “puros e impuros”, “salvos e perdidos”, “Deus e o mundo” – como âmbitos absolutamente contrários e com fronteiras precisas. Não podemos cruzar os braços diante de uma sociedade fortemente marcada pelo individualismo e o egoísmo, o sofrimento e a morte. Fugir deste contexto é abandonar o mundo onde foi erguida a cruz de Cristo, no Calvário, e onde estão plantadas hoje as cruzes de milhões de pessoas, a imensa multidão dos “sem”: sem terra e sem trabalho, sem nome e sem endereço, sem pão e sem escola, sem direitos e sem pátria. Buscar o céu e o rosto de Deus sem passar pelo rosto desfigurado dos pobres e excluídos é o mesmo que tomar um falso atalho para a fé a partir da Boa Nova do Evangelho e de toda a Bíblia como Palavra de Deus. “Onde está teu irmão Abel?” – perguntará novamente o Senhor! E que responderemos? Não vale repetir a mesma desculpa de Caim: “por acaso sou eu o guarda de meu irmão!” Sim, na família cristã, somos todos responsáveis uns pelos outros, guardiães uns dos outros. Alguns tipos de oração, de exercícios de piedade e de louvor e, por outro lado, algumas formas de comportamento dos participantes de certos movimentos religiosos, surgidos nas últimas décadas, tendem a essa dicotomia. Do nosso lado estão os que “encontraram Jesus”; do lado de fora os que vivem nas trevas do erro e do pecado. Trata-se de um dualismo que remete ao famigerado conceito de maniqueísmo, segundo o qual o bem e o mal, o certo e o errado encontram-se em lados diametralmente opostos. Na prática de Jesus e nas cartas de Paulo, contudo, todos estamos a caminho, na tensão entre o pecado e a graça, a dor e a esperança, a danação e a salvação. Ninguém se encontra definitivamente salvo e ninguém definitivamente condenado. Estamos todos sujeitos às pedras e espinhos da estrada, às relações conflitivas com os outros e ao ambiente histórico em que vivemos e nos movemos. E todos somos chamados, diária e simultaneamente, a uma resposta diante do apelo evangélico e à solidariedade com os pobres, os pecadores, os mais necessitados, os últimos, como não se cansa de lembrar o Papa Francisco. Como conclusão, resulta que fé e compromisso pastoral, social e político são indissociáveis. Roma, Itália, 16 de novembro de 2013