Visualizações desde 2005

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Jung Mo Sung (ADITAL) Faleceu hoje, 26/12/2012, às 06h20minhs da manhã, em São Paulo, o frei GILBERTO GORGULHO (dominicano). É provável que muitos dos leitores não o conheçam ou nunca tenham ouvido falar no seu nome. Ele nunca foi uma "estrela” no campo da teologia, nem escreveu grandes livros ou esteve envolvido em alguma polêmica que tenha ido parar nos meios de comunicação. Mas, ele foi alguém que marcou gerações de cristãos que se comprometeram com a causa da justiça social e a defesa da vida dos pobres nas décadas de 1980 a 2000. Acima de tudo, ele foi um professor de Bíblia que ensinou gerações de estudantes de teologia, agentes de pastoral, lideranças populares, sem falar nas irmãs e padres que fizeram cursos de aprofundamento na leitura "popular” da Bíblia. A sua prioridade na formação de agentes de pastoral e lideranças populares das comunidades eclesiais aparece na forma de publicação que ele – e sua parceira de muitos anos no ensino bíblico, Ana Flora – mais se dedicou: cadernos populares de guia para leitura de textos bíblicos. É claro que ele também publicou livros na forma clássica, mas as suas intuições e textos mais vibrantes se encontram ou eram publicados em primeiro lugar nesses cadernos. Além de biblista, ele era um intelectual erudito capaz de lidar com filósofos, teólogos ou com grandes questões do mundo científico ou político. Tenho orgulho de dizer que fui seu aluno por 6 anos (4 na graduação e 2 no mestrado em teologia) e que ele foi um dos professores que mais marcou a minha formação. Lembro-me de um curso especial que lhe pedimos: São Tomás de Aquino e Teologia da Libertação. Foi marcante! Durante um semestre, ele nos explicou os 10 artigos da primeira questão da Suma Teológica de S. Tomás mostrando o que estava em jogo ou em discussão por detrás de cada afirmação. Mais do que isso, ele nos fez ler textos da teologia da libertação e da tradição marxista para aprofundar no final do século XX as questões estudadas por Tomás no seu tempo. Ele nos introduziu no caminho denso, longo e difícil de reflexão teológica séria, interdisciplinar e, acima de tudo, comprometida com as questões reais e fundamentais do nosso tempo. Foi em curso sobre profetas e a reforma deuteronomista, que tive com ele, que escrevi meu primeiro texto acadêmico na direção que tenho seguido desde então: reflexão teológica sobre economia. Estimulado por suas aulas e por suas provocações, escrevi um trabalho semestral sobre a reforma deuteronomista e o modo de produção tributário. Como texto de exegese, é claro, deixa muito a desejar, mas foi o meu primeiro passo nesse caminho que tenho percorrido há mais de 20 anos. A influência de um professor não se mede somente por aulas que ele dá, mas pelas "janelas” que abre aos seus alunos. No segundo ano de teologia, ele me disse: "Jung, você precisa ler o livro ‘As ideológicas da morte’, de Franz Hinkelammert!”. Li e isso fez a grande diferença na minha vida intelectual. No mestrado, ele me indicou outro autor que eu não poderia não estudar: René Girard. Esses dois autores fazem parte do meu modo de pensar e refletir o mundo e a teologia. E isso eu devo ao frei Gorgulho. Frei Gorgulho, ou simplesmente "frei” como eu costumava me dirigir a ele, fez muitos dos seus alunos e alunos a ver como a questão da "justiça e direito em favor dos pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros” é o tema central da Bíblia, que perpassa todos os seus livros da Bíblia; e que, como nos ensina profeta Jeremias, fazer essa justiça é conhecer a Deus. Que Deus o receba nos seus braços e nos envie mais pessoas como ele que articule seriamente a reflexão teórica com a "meditação” bíblica no serviço à vida das comunidades e das pessoas mais pobres e vulneráveis do nosso mundo. (Jung Mo Sung, Jung Mo Sung - Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.Autor com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”. Twitter: @jungmosung) http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73020

2012 e o Concílio

D. Demétrio Valentini O ano de 2012 está chegando ao fim. Seria o momento oportuno para recordar os seus principais acontecimentos. Mas não é esta a intenção. Ao longo de 2012 foi lembrada, com insistência, uma data, através da qual dá para captar o recado especial que este ano queria nos dar. Esta data foi o dia 11 de outubro. Em princípio, ela merecia o devido destaque, por lembrar os 50 anos da abertura do Concílio Ecumênico Vaticano Segundo. Mas o que chamou a atenção foi a forte insistência da Igreja, em apontar para aquele dia, fazendo dele não só uma recordação histórica, mas o ponto de referência para balizar o seu posicionamento diante dos novos desafios que ela tem para a frente. De tal modo que, ao redor do dia 11 de outubro, foi criada uma forte expectativa. A esta data ficaram vinculadas algumas iniciativas que mostravam o amplo envolvimento da Igreja com o referido Concílio Ecumênico. Foi realizado, por exemplo, ao longo do mês de outubro, o Sínodo sobre a Nova Evangelização e sobre a Transmissão da Fé. Mas sobretudo, foi inaugurado no dia 11 de outubro o Ano da Fé, com uma proposta de celebração muito envolvente ao longo de 2013. A insistência em vincular a agenda de agora com uma data do passado, parece mostrar com evidência a grande validade deste Concílio, mesmo que já tenham passado 50 anos de sua abertura em 1962. Mas afirmar sua validade não significa apostar na implementação dos seus objetivos. Depende de como nos posicionamos agora, sobretudo, diante das propostas de renovação eclesial, formuladas pelo Concílio, mas deixadas em aberto, para serem implementadas depois, gradualmente, num amplo processo que agora pode estar perdendo força. De tal modo que a celebração dos 50 anos de sua abertura revelou a grandeza do Vaticano Segundo, que se mostrou muito generoso nas suas intenções. Mas mostrou também que ele foi muito tímido na efetivação de mudanças estratégicas, que fortaleceriam a efetividade do processo de renovação eclesial. De tal modo que dá para concluir este ano de 2012, com uma tarefa bem cumprida: foi construído um amplo consenso sobre a importância do Vaticano II. Ao mesmo tempo, este ano nos deixa com uma clara inquietação: o processo eclesial em andamento, ele favorece a aplicação do Concílio, ou conspira contra as suas intenções fundamentais? Seria conveniente lembrar as grandes intuições pastorais do Concílio, para conferir qual a dinâmica que agora as caracteriza. Por exemplo, qual a aplicação prática da Colegialidade Episcopal para garantir uma tranqüila postura de unidade,e ao mesmo tempo o suporte seguro para uma salutar descentralização eclesial. E assim daria para lembrar a importância das “Igrejas Locais” como referência eclesial indispensável para todos os que querem participar da vida da Igreja. Igualmente a importância imprescindível das comunidades eclesiais, como encarnação concreta da vida de Igreja. Em outras palavras, estamos avançando, ou retrocedendo, na aplicação do Vaticano II? Algumas iniciativas dão a clara impressão de marcha a ré. Para uma viagem tranqüila, é importante que todas as marchas possam ser bem engrenadas. Também a marcha à ré, cuja utilização às vezes se torna imprescindível para garantir que o veículo siga em frente. O problemático seria engatar esta marcha para voltar atrás e desistir do rumo traçado.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Natal: a festa da fragilidade divina

20.12.12 - Mundo José Lisboa Moreira de Oliveira Adital "Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho. Ele nasceu de uma mulher” (Gl 4,4). Assim "a Palavra se fez fragilidade (sárx), vindo armar a sua tenda no meio de nós” (Jo 1,14). O Filho abriu mão da sua igualdade com Deus, abraçou o esvaziamento total (kénosis), assumiu livremente uma postura de servo e optou por viver como um homem comum, aceitando inclusive ser assassinado da forma mais ignominiosa então existente (Fl 2,6-8). Este deveria ser o espírito do Natal, mas, infelizmente, não é o que vemos acontecer na prática. A celebração da fragilidade divina foi usurpada pela sociedade de consumo, que, com as bênçãos do próprio cristianismo, transformou o Natal em trocas de coisas inúteis, cujo personagem principal é um velho de barbas brancas, vestido segundo os costumes das regiões frias do polo norte. Porém, biblicamente falando, o Natal é a celebração da fragilidade divina. Fragilidade aqui entendida no sentido de que Deus se humaniza e vem ao encontro da humanidade. Fragilidade aqui não quer dizer frouxidão e incapacidade, pois Deus, com a potência do seu braço, continua dispersando os soberbos e derrubando os poderosos de seus tronos (Lc 1,51-52). Significa que Deus abre mão da sua grandeza e onipotência e vem se comunicar conosco usando a nossa linguagem. Para os simples Deus não se manifesta de forma gloriosa e pomposa, mas na fragilidade da condição humana. Para falar conosco e manifestar a sua bondade e misericórdia, Deus não só se torna humano como nós, mas aceita passar por situações humanas humilhantes, como foi o caso da morte na cruz do Filho Jesus. As anotações do Novo Testamento são poucas, mas suficientes para mostrar a densidade desta verdade. Antes de tudo o registro feito por Paulo na Carta aos Gálatas, afirmando que Jesus, o Filho de Deus Pai, nasceu de uma mulher. Numa cultura andocêntrica, na qual tudo passava pela decisão e pela vontade do macho, Deus decide que o seu Filho nasceria de uma mulher, sem a participação direta do sujeito do sexo masculino. Trata-se de uma revolução fantástica, numa época em que a linhagem era reconhecida através da descendência masculina. Deus, revolucionando e revirando a lógica andocêntrica, coloca o macho numa função secundária. "José levou Maria para a sua casa, e, sem ter relações sexuais com ela, Maria deu à luz um filho. E José deu a ele o nome de Jesus” (Mt 1,24-25). Outro registro importante do Novo Testamento é o fato de que o Filho de Deus vem ao mundo para viver como um homem qualquer, sem nenhum sinal especial, totalmente submetido ao escondimento da condição humana. Este é o verdadeiro significado da expressão grega "sárx” usada por João no seu evangelho (1,14). As traduções "se fez homem” ou "se fez carne” não estão erradas, mas não expressam o sentido do termo grego. Ao dizer que Jesus se fez "sárx” o evangelista está querendo afirmar que o Filho de Deus, pela encarnação, assumiu para si a fragilidade e as fraquezas que marcam qualquer ser humano normal. Jesus não foi alguém que fez de conta que era homem. Ele realmente foi totalmente humano e quis viver assim. Por isso toda imagem de um Jesus divino, brincando de ser homem, é uma tremenda heresia. Como foi plenamente humano, Jesus livremente se submeteu a todos os limites e fragilidades que marcam a vida de um ser humano aqui na Terra. E quando a Carta aos Hebreus diz que ele foi humano em tudo, exceto no pecado (Hb 4,15), está apenas afirmando que ele não cedeu às inúmeras tentações. Porém, experimentou na carne a tentação e as consequências disso. Além disso, Jesus quis experimentar a humilhação e a morte injusta, participando assim do destino da humanidade sofrida. Não quis ser Cristo-Rei, mas Cristo-Servo, lavando os pés da humanidade prostrada. E para completar essa participação na humilhação da humanidade, seguindo fielmente o projeto do Pai, se opôs ao poder religioso e civil e terminou assassinado. Poderia ter escapado de tudo isso se tivesse cedido às pressões dos poderosos e celebrado um pacto com eles. Mas isso faria dele um traidor; alguém que não levaria a sério o compromisso assumido com o Pai de levar até o fim a sua mensagem de libertação da humanidade (Lc 4,18-19). Nós nos acostumamos com certas coisas e, depois de dois milênios, não percebemos mais o caráter revolucionário do Natal. O macho não tendo participação direta na concepção de uma criança. O Filho de Deus vivendo como um homem qualquer, sem manifestação gloriosa nenhuma. E, por fim, vivendo como escravo e sendo ignominiosamente assassinado na cruz. Tudo isso era assustador para a sua época. Por isso José, paradigma de todo macho de ontem e de hoje, tem dificuldade de entender uma gravidez que acontece sem sua participação direta. O povo da época de Jesus não entende como um Filho de Deus seja capaz de aparecer de maneira tão simples (Jo 1,46). Pedro não entende um Jesus, Senhor e Mestre, exercendo funções de um escravo (Jo 13,6-9). A morte dele na cruz causou horror e pânico nas pessoas e foi tida como sinal evidente de que ele não era um homem de Deus (Gl 3,13). Precisamos, pois, rever a atual maneira cristã de celebrar o Natal, infestada de consumo e de consumismo. É claro que não se trata de deixar de lado a alegria, principal característica desse tempo litúrgico (Lc 2,10.20), mas de rimar a alegria com a fragilidade do Menino que nasce num curral (em grego: fátnê) ou numa cocheira de colocar comida para animais (Lc 2,7). Trata-se da necessidade de celebrarmos o Natal como a festa da revelação da bondade, da misericórdia e da ternura de Deus. Trata-se de alegrar-se com a vinda de um Jesus frágil, simples, escondido. Mas para que isso aconteça é indispensável repensar e rever muitas práticas dentro das próprias Igrejas. Antes de tudo transformar atitudes machistas e excludentes que deixam fora de certos espaços eclesiais – como é o caso dos ministérios – mulheres e pessoas consideradas de "má fama”. A prática de Jesus era bem outra (Mc 2,15; Lc 8,1-3). As lideranças (bispos, padres, pastores, ministros, ministras) precisam despir-se de toda pompa, de todo luxo e de toda arrogância, para vestir o avental da simplicidade, humildade e serviço. Além disso, as Igrejas precisam renunciar à pretensão de serem infalíveis, admitindo e confessando publicamente seus erros e pedindo humildemente perdão à comunidade. Fatos como a pedofilia dos padres, o desvio de dinheiro das comunidades e vários outros escândalos revelam a fragilidade das Igrejas. E elas só poderão celebrar de verdade o Natal se admitirem publicamente suas fragilidades e renunciarem à pretensão de "serem como deuses” (Gn 3,5). Oxalá estas e outras coisas aconteçam para que o verdadeiro espírito do Natal seja recuperado e as Igrejas adquiram mais credibilidade, podendo proclamar solenemente: "anuncio para vocês a Boa Notícia, que será uma grande alegria para todo o povo” (Lc 2,10). Sem isso o Natal seguirá adiante com a lógica do mercado, sendo apenas uma festa de troca de presentes e de mero consumo de coisas inúteis. Portanto, bem distante do seu verdadeiro significado. http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=72953 José Lisboa Moreira de Oliveira Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília Adital

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Análise de Contexto

José Oscar Beozzo jbeozzo@terra.com.br São Paulo, setembro de 2012 O contexto em que se move o CESEEP é continental, por ser um centro de formação de caráter latino-americano e caribenho, com laços crescentes com a África e abertura para os outros continentes. Recebe, entretanto, influências que ultrapassam esses limites devido ao mundo globalizado, em que vivemos. Seu enraizamento mais próximo encontra-se no Brasil e seu entorno imediato é a área metropolitana de São Paulo, onde desenvolve boa parte de suas atividades. Destacamos em âmbito mais geral, quatro tipos de desafios, buscando articular sua incidência no panorama latino-americano/caribenho e brasileiro: 1. O desafio ambiental - A Rio + 20, com a Cúpula dos Povos, mostrou o crescimento da consciência ambiental, a multiplicação e diversificação de organizações, movimentos e grupos de pressão em favor de outro modelo de economia socialmente justa e ambientalmente sustentável, na linha da humanização ou do que os povos andinos chamam do “bem viver e bem conviver”, “Sumak Kawsay”, na língua quéchua, ou ainda “Tekoporã”, no idioma Guarani. - Enfatizou-se a urgência de se encontrar saídas a nível local, nacional, regional e global e foram apresentadas milhares de experiências concretas na direção de um futuro sustentável para o planeta e a humanidade. - Foi denunciada, ao mesmo tempo, a aliança dos maiores poluidores com o grande capital e a mídia, no intuito de se prosseguir pelo mesmo caminho de sobre-exploração dos recursos naturais, sem limites e sem responsabilidades socioambientais consistentes e não apenas maquiadas. Tenta-se vender a velha economia de mercado, sem limites de exploração, produção e consumo, travestida agora com o epíteto de “economia verde”. - Ficou patente ainda a dificuldade de se obter consensos sólidos entre os Estados acerca de metas e compromissos com a sustentabilidade, com a mudança da matriz energética baseada nos combustíveis fósseis (carvão, gás, petróleo), para outra apoiada em energias limpas e renováveis (eólica, solar, geotérmica, de biomassa e hidráulica), a fim de se reduzir as emissões dos gases de efeito estufa e o aquecimento global. - Faltaram compromissos verificáveis para a contenção da sobre-exploração predatória de recursos naturais finitos e não renováveis (água, florestas, minérios e combustíveis fósseis); para limitação do consumo irresponsável e para se por um freio a uma economia baseada em produtos descartáveis. Estes submergem as cidades com montanhas de lixo, sem políticas que imponham aos que produzem o lixo, cuidar de seu destino e reciclagem, tanto em se tratando de plástico, papel, vidro, metais, como de lixo orgânico ou de efluentes tóxicos. - Cresce a consciência e aprimora-se a legislação para que quem destrói e polui seja responsabilizado por despoluir o solo, ar, rios, lagos e oceanos e reparar os danos provocados. - Não foi possível criar a Agência Mundial de Meio Ambiente, com poderes de coordenação e intervenção e recursos capazes de fazer a diferença nesse campo, o que denota a falta de vontade ou incapacidade política dos Estados para implantar uma agenda comum global em defesa do meio ambiente. - No CESEEP, a questão ambiental e seu agravamento, assim como as iniciativas para reverter seus impactos têm sido tema central em vários Cursos do CESEEP, como os de Verão sobre a Água e outro sobre Ecologia; o de Formação Pastoral sobre a crise ambiental nas cidades; o de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso sobre o empenho comum das Igrejas e religiões em favor da integridade da criação; o de Pastoral e Relações de Gênero e o de Militantes sobre a contribuição do ecofeminismo, para uma nova visão de nossas relações com todo o criado. A temática ambiental tornou-se tema transversal em todos os Cursos do CESEEP, sempre apoiado em visitas a locais de reciclagem, de tratamento de água e efluentes, a prefeituras e escolas com programas consistentes nessa área e a ONGs ambientalistas. 2. O desafio econômico-financeiro - A crise desencadeada em 2008 com a quebra do Banco Lehman Brothers e aparentemente superada pelo resgate com dinheiro público dos grandes bancos e financeiras que a provocaram, ressurgiu com toda força em 2012. - A ajuda estatal aos Bancos, que alcançou a casa de trilhões de dólares, trouxe de volta a crise, agora do lado dos Estados que se endividaram para socorrê-los. O epicentro deslocou-se dos Estados Unidos para a Europa, tornando-se uma crise da moeda comum, o euro. A UE foi obrigada a socorrer a Irlanda, a Grécia e agora a Espanha, Portugal e Itália, à custa de fundos de estabilização bilionários, programas de contenção de gastos, dispensa de funcionários e de brutal superávit primário nas contas públicas, para o resgate da dívida dos Estados com os bancos. - Está se pagando a dívida com aumento de impostos, corte generalizado do dispêndio público com os programas sociais em saúde, educação, aposentadorias e pensões. - A crise elevou o desemprego em países como Irlanda, Grécia, Espanha para perto de 25% da população economicamente ativa. Entre a juventude, o desemprego já supera a casa dos 50%, uma verdadeira hecatombe social. Desempregados e jovens têm sido o núcleo motor da ocupação de praças e de protestos multitudinários dos “indignados” na Espanha, Grécia, Itália e noutros países europeus. - O resultado tem sido o aprofundamento da recessão que já contamina as economias dos outros continentes e é visível na América Latina, cuja taxa de crescimento econômico, com exceção do México, despencou. - Em todo mundo, voltou a crescer o número de pobres e desamparados pela crise econômica aliada a catástrofes ambientais que vão de secas a inundações e à perda de colheitas e rebanhos. Subiram os preços dos alimentos penalizando as populações mais vulneráveis, de modo particular mulheres, crianças e idosos. Ronda-os a fome endêmica, com a redução dos aportes dos países ricos a todos os programas de ajuda ao desenvolvimento e uma generalizada queda da solidariedade internacional, cada um tentando salvar-se a si mesmo, sem se importar com os demais. A onda de protecionismo é apenas a ponta do iceberg dessa atitude. - No CESEEP, a temática social, econômica e política é sistematicamente trabalhada no Curso de Militantes; nas análises de conjuntura do Curso de Verão e de Formação Pastoral e permanece como pano de fundo da reflexão tanto bíblica, como teológica, pastoral e de empenho transformador, em todos os cursos e assessorias do CESEEP. 3. O desafio das migrações - Ela é generalizada, mas com focos mais agudos. Na Europa, as fronteiras se fecharam para os extracomunitários, mormente os africanos e os oriundos do leste europeu. Há certa tolerância em relação às mulheres migrantes, sem as quais haveria colapso nos serviços de saúde a domicilio (home-care), na limpeza doméstica e nos hospitais e edifícios públicos e privados, no cuidado com as crianças (baby sitter). Leis cada vez mais xenófobas, com simpatia e respaldo em setores importantes da população e nos partidos políticos, não apenas de direita, vêm facilitando a deportação dos migrantes definidos como “ilegais”, além de penalizar os que lhes dão trabalho, abrigo ou socorro. Com o crescimento do desemprego, os imigrantes são acusados de “roubar” empregos dos nativos, sem atentar para o fato de que perfazem aqueles trabalhos mais pesados ou considerados sujos e de risco e que a mão de obra local há tempos abandonou. - No continente americano, agravou-se a situação migratória na fronteira México-Estados Unidos, com a entrada em vigor de leis migratórias draconianas e xenófobas em estados fronteiriços, como o Arizona; superlotação de prisões com centenas de milhares de “indocumentados” e retorno forçado de migrantes por conta do desemprego e da recessão nos Estados Unidos. - No Haiti, a destruição da economia e da infraestrutura com o terremoto de 2010 continua penalizando a população por causa da lentidão da reconstrução. Passado o primeiro ímpeto de solidariedade internacional, a situação da ilha foi relegada ao esquecimento e descaso, enquanto permanecem as dificuldades em se utilizar eficazmente a pouca ajuda que continua chegando. Com o desemprego aberto superando os 70% da população, os haitianos tentam emigrar a qualquer custo, sendo barrados por toda parte ou recebidos a conta-gotas. Mesmo assim, há cerca de 700 mil prófugos haitianos em países como os Estados Unidos, Canadá, República Dominicana, Cuba e crescentemente, Brasil. - Na zona fronteiriça do Paraguai, os brasiguaios continuam em situação jurídica e politicamente instável, sob pressão do movimento campesino paraguaio por reforma agrária e atitude ambígua por parte do Estado, tanto no sentido de impulsar ampla reforma agrária em favor dos trabalhadores rurais sem terra, quanto de garantir segurança jurídica aos vivem e trabalham em seus lotes, legalmente adquiridos. - Muitos países, como México, El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Equador que dependem fortemente, para obter divisas, das remessas dos migrantes aos seus familiares, sentem mais de perto os efeitos da crise em suas economias, por conta do declínio dessas remessas em moeda forte. - Na migração, num primeiro momento, mulheres e crianças são deixadas para trás e as novas leis dificultam cada vez mais a reunificação familiar, criando dramas familiares quase insolúveis. - Internamente, em todos os países, persiste o fluxo migratório do campo para as cidades e, sobretudo, das cidades menores para as maiores. - Por isto, a problemática migratória é um pano de fundo obrigatório dos cursos do CESEEP. De maneira mais específica, o Curso Latino-americano de Formação Pastoral tomou as migrações como tema central de um de seus cursos e converteu-o, posteriormente em tema regular a cada ano. 4. O desafio urbano. - O último censo revelou que, no Brasil, 85% da população já se encontra em cidades. Na América Latina esse índice é de 80%. Em que pese os avanços nas políticas públicas de combate à pobreza, a América Latina continua sendo o continente mais desigual do mundo. A nova face da pobreza é urbana e feminina, atingindo duramente os mais vulneráveis, em especial crianças e jovens, anciãos e adultos sem qualificação profissional. - Nas grandes cidades do continente, a crônica crise urbana na área de habitação, transporte, distribuição de água e implantação de saneamento básico, coleta e tratamento do lixo, da infraestrutura de educação e serviços de saúde, agravou-se pela dimensão e gravidade dos problemas, mas também incapacidade ou inércia do poder público no seu enfrentamento. Nos conflitos entre demandas dos movimentos populares e da cidadania em geral, interesses privados e políticas públicas, tem prevalecido a lógica do capital, da especulação imobiliária e da privatização dos espaços e serviços públicos, com a degradação do espaço urbano e da convivência social. - Há um quase colapso da segurança pública frente à explosão da violência tanto das quadrilhas, quanto da polícia. - O tráfico de drogas já domina setores inteiros das cidades e corrompe o aparato do estado, da polícia aos magistrados, dos legisladores ao executivo. O tráfico elege seus deputados, prefeitos e governadores e compra seus juízes e desembargadores. - As chacinas que se multiplicam do México ao Brasil, país em quejovens negros compõem ¾ da população carcerária. Os presídios superlotados, a ponto de explodir em todo o continente e onde se multiplicam as revoltas por conta das condições de vida insuportáveis, apontam para a gravidade do problema. - Novidade é a crescente presença de mulheres na população carcerária, ligada principalmente ao seu envolvimento com o tráfico de drogas. - A repressão ao tráfico e à narco-guerrilha tornou-se pretexto para crescente presença militar norte-americana em países como Colômbia e Honduras e agora Paraguai, após o golpe contra o presidente Lugo. - As zonas metropolitanas, sobretudo em sua periferia próxima, continuam atraindo a população, criando mega aglomerações, como as cidades do México e São Paulo, com cerca de 20 milhões de habitantes, outras que ultrapassam os 10 milhões, como Rio de Janeiro e Buenos Aires e ainda outras que já se aproximam deste patamar, como Lima, Santiago, Bogotá. - O estudo da problemática urbana, que afeta a quase totalidade da população do continente, por conta de sua irradiação e penetração até mesmo nas zonas rurais mais afastadas, via meios de comunicação social, facilidade de transportes, produtos e serviços oferecidos e hábitos de consumo, tornou-se a espinha dorsal do Curso Latino-americano de Formação Pastoral. Ali, se estudam seus desafios para os movimentos populares, as Igrejas e as políticas públicas, com imersão programada na complexa, rica e profundamente desigual realidade urbana de uma megacidade como São Paulo e seus municípios vizinhos. O curso é complementado por um intenso programa de visitas a prefeituras da região, a iniciativas dos movimentos urbanos por moradia, melhoria do transporte, implantação de redes de água, esgoto, luz elétrica e aos esforços coordenados de igrejas, escolas e movimentos populares junto aos poderes públicos para criação de oportunidades de estudo, trabalho e lazer para os jovens e implantação de bases de polícia comunitária. Em vários lugares, obteve-se uma queda de mais de 70% nos níveis de violência e assassinato de jovens. O curso leva também seus participantes a colaborarem nos fins de semana de iniciativas das Igrejas junto a moradores de rua, a crianças e adolescentes em situação de rua. Completamos essa análise do contexto, com breve incursão pelo campo econômico, político, dos movimentos sociais, a nível local e latino-americano, concluindo com o campo religioso. 1. Campo econômico Neste panorama, há mudanças sensíveis: - Em vários países do continente, a China vem deslocando os tradicionais parceiros comerciais, Estados Unidos e União Europeia, tornando-se a maior parceira comercial de países como Brasil, Peru, Chile, Paraguai e a segundo maior parceira de México e Argentina. Cresceram também vertiginosamente seus investimentos em energia (petróleo, gás, carvão), matérias primas minerais (ferro, cobre, manganês...), logística (portos e ferrovias) e produção de alimentos, soja e proteínas animais (aves, suínos e bovinos), com ativo papel de seus bancos estatais no financiamento do comércio, produção e compra de ativos minerais e de grãos. Seu peso econômico, não se traduz ainda em equivalente influência política. - A hegemonia no continente continua sendo norte-americana, em que pesem os esforços da parte de vários países, para a criação de instituições mais autônomas, sem a presença dos Estados Unidos, como oMercosul, agora alargado com a entrada da Venezuela; CAN (Comunidade Andina de Nações) e UNASUL (União de Nações Sul-Americanas), com seu banco de fomento, o Banco Sul. - Na esfera internacional, Brasil integra o grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), enquanto Chile, Peru e México estão associados à APEC (Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico) da qual fazem parte igualmente Estados Unidos e Canadá. - O difícil panorama internacional com a freada na atividade econômica dos Estados Unidos, União Europeia, Japão e mesmo da China, vem afetando o crescimento de praticamente todos os países da América Latina, com declínio na quantidade e, sobretudo, valor das exportações de matérias primas e insumos. 2. Campo político - Um grupo de países, Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela, Nicarágua, El Salvador, leva uma política mais decidida de recuperação por parte de seus governos do controle público sobre seus recursos naturais. Água, gás, petróleo, eletricidade, telecomunicações e a biodiversidade nas matas, rios e oceanos são reconquistados como bens comuns estratégicos a serviço de seus povos e patrimônio a ser legado para as gerações futuras. Seus governos entraram em choque com as multinacionais que controlavam e exploravam esses recursos, com os bancos que as financiavam, com os investidores que aplicavam seus ativos nessas empresas e com os países de origem que lhes davam cobertura politica, de modo especial, Estados Unidos, Canadá, Espanha, com respaldo da União Europeia. Também empresas brasileiras como a Petrobrás foram afastadas ou tiveram que renegociar seus contratos de exploração energética nesses países. - Motivo de desavenças entre Estados Unidos e a maioria dos países latino-americanos foi também o golpe militar que derrocou o governo democraticamente eleito de Honduras (2009) e o golpe branco que afastou o presidente Fernando Lugo do Paraguai (2012). O país foi suspenso de imediato do Mercosul, por conta da cláusula democrática, até a realização de novas eleições em abril de 2013. A entrada da Venezuela no Mercosul, solicitada em 2001, aprovada pelos quatro países (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) em 2006, ficara empacada pela recusa do Senado do Paraguai, todo ele de oposição ao Presidente Lugo, em ratificá-la. A suspensão do Paraguai e sua consequente ausência da reunião de cúpula do Mercosul em Mendoza, ensejou a admissão da Venezuela, a terceira maior economia do continente sul-americano, e sua entrada oficial no bloco no último dia 31 de julho. O bloco torna-se estratégico no cenário energético internacional por conta de suas ingentes reservas de petróleo e gás, além de ganhar uma porta de saída para o mar Caribe, encurtando as distâncias em relação aos mercados do hemisfério norte: Nafta e União Europeia. O Mercosul completa, assim, com a saída para o norte e o Caribe, sua atual projeção no Atlântico sul, voltada para a África e a Ásia e sua saída pelo Pacífico, via o estreito de Magalhães em direção ao Japão, Coréia e China e ao conjunto da Ásia do sudeste. O bloco ampliado pode sofrer com as incertezas da situação político-econômica da Venezuela. Em que pese a eleição de governos conservadores no Chile, Colômbia e o retorno do PRI ao poder no México, persistem os esforços por maior integração continental. 3. Campo dos movimentos sociais Mesmo em países, como Bolívia e Equador, cujos governos foram eleitos com forte apoio dos movimentos populares, hoje, os movimentos indígenas se insurgem contra políticas governamentais que violam seus territórios, com a construção de estradas, concessões para a exploração de gás e petróleo ou construção de hidroelétricas. No Peru, as populações indígenas obrigaram o governo a recuar na sua concessão de licenças para grandes mineradoras operarem em áreas de proteção ambiental, enquanto negociam compensações por danos ambientais e sociais para a construção de hidroelétricas na Amazônia peruana. Conflitos semelhantes vêm eclodindo sistematicamente no Brasil por conta das hidroelétricas em construção na região amazônica: Belo Monte no Rio Xingu; Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira e 22 outras planejadas, licitadas ou já em início de construção no Rio Teles Pires (seis usinas previstas, incluindo a da foz do Apiacás), Juruena, Jamanxin (Cachoeira dos Patos, Cachoeira do Caé, Jamanxin),Tapajós (São Luiz e Jatobá) e noutros rios amazônicos. Outros movimentos sociais, com exceção do MST que vive porém divisões e contradições, perderam força e incidência social e política. No Chile, no entanto, de maneira surpreendente, é o movimento estudantil secundarista e depois universitário que vem colocando em cheque a política educacional herdada dos anteriores governos, tanto militar quanto civil da concertação socialista/democrata cristã, de se privatizar praticamente todo o ensino do país. À medida que se prolongaram as greves e outros setores sociais aderiram aos protestos é o próprio modelo de economia e de sociedade que passou as ser contestado. Em que pese o prolongado crescimento econômico do Chile, país que levou ao extremo a economia de mercado, seguindo o modelo econômico neoliberal, persistem, como no restante da América Latina, profundas desigualdades sociais e bolsões de pobreza extrema. De maneira fragmentária, sem capacidade de transbordar para o conjunto da sociedade, manifestam-se movimentos ligados a moradia e transporte nas grandes cidades; o movimento negro contra discriminações por raça e cor, por regularização das terras quilombolas ou por quotas raciais nas universidades; populações indígenas quando são violados seus territórios pela abertura de estradas, desmatamentos, construção de hidroelétricas e instalação de projetos de mineração. Somem-se a isto movimentos pelos direitos dos aposentados, das pessoas com deficiência, por atendimento digno na saúde. Essas lutas e mobilizações ganham atenção apenas pontual da mídia ou são literalmente ignoradas. Não se pode negar que nos anos recentes, em países como Brasil, graças a políticas públicas de inclusão social, houve ingresso no mercado de trabalho formal, melhoria econômica e ascensão social de milhões de pessoas. Deve-se dar especial destaque às mulheres, que avançaram mais do que os homens em anos de estudo, qualificação profissional e ingresso no mercado de trabalho, mormente nos serviços, com diminuição na diferença salarial paga para igual trabalho. Persistem diferenças, mas que vêm se estreitando, graças à luta organizada das mulheres e das políticas públicas específicas para a diminuição de desigualdades e descriminações por razões de gênero, raça, cor ou deficiência física. Fenômeno semelhante se observa em países orientação política distinta, como Peru, Colômbia, México. É visível o efeito demonstração e o impacto de suas políticas por equidade de gênero, eliminação da pobreza e direitos humanos, que a ascensão de mulheres à presidência de seus países: Michelle Bachelet no Chile (2006-2010), Cristina Fernández de Kirchner (2007-2011), reeleita para novo termo presidencial (2011-2015), na Argentina; Dilma Rousseff no Brasil (2011-2015); Laura Chinchilla (2010-2014), na Costa Rica, vem exercendo sobre a vida de mulheres e homens de seus países e no restante do continente. Elas impulsaram políticas de equidade de gênero e trouxeram para seus ministérios grande número de mulheres, além de nomeá-las ministras da Suprema Corte e de outros Tribunais Superiores ou dirigentes das maiores empresas públicas, como a Petrobrás no Brasil, com sua nova presidente, Graça Foster. Por outro lado, grandes mobilizações e concentrações populares têm acontecido apenas em torno a três eixos: - o da música: cantores bandas e populares tocando em praias, praças e estádios atraem multidões, tendo sido criada uma verdadeira indústria de caráter internacional, a do “show bussiness” do qual o “Rock in Rio”, é um bom exemplo. - o da religião, com eventos como “A marcha por Jesus”, iniciativa multitudinária de igrejas e movimentos evangélico/pentecostais, com grande apelo entre os jovens pela presença de bandas e cantores de música gospel, unindo ritmos modernos com mensagens religiosas. O formato dessas manifestações de cunho religioso aproxima-se do “show bussiness” musical. Na mesma linha, concentram-se multidões atraídas por padres cantores da Igreja Católica, como Marcelo Rossi e Fábio de Melo. Indício de que se movem no mesmo universo, é oepíteto que ganharam essas celebrações: “Show missa”. - o da diversidade sexual com as Paradas do Orgulho Gay. As manifestações por direitos humanos, com forte conotação política, marcaram os anos das ditaduras militares, assim como as mobilizações pelo estado do direito, por anistia, pelo fim das prisões arbitrárias e torturas. O período posterior conheceu lutas, com marcado caráter social, contra a carestia, o desemprego, o arrocho salarial ou em favor da reforma agrária. Foram depois deslocadas para questões ligadas à equidade de gênero, ou aos direitos reprodutivos e descriminalização do aborto nas lutas feministas. Agora o cenário vem sendo ocupado por reivindicações relacionadas à diversidade sexual, como oficialização de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo; adoção de crianças por casais de gays e lésbicas; aplicação das normas previdenciárias e de seguro saúde, das leis que regem partilha e herança de bens a uniões de pessoas do mesmo sexo. As outras lutas e reivindicações persistem, mas em tom menor e incapazes de mobilizações multitudinárias como a das Paradas do Orgulho Gay que se multiplicam pelas grandes cidades do continente. 4. Campo religioso O panorama religioso latino-americano e caribenho sofre uma rápida e profunda mutação, em termos da sociedade, das igrejas e do ordenamento jurídico dos Estados, que têm alterado suas constituições, para contemplar o atual quadro de pluralismo religioso, oferecendo iguais garantias para todas as igrejas, religiões e para os que se declaram sem religião, suprimindo o estatuto diferenciado ou antigos privilégios da Igreja Católica. Assinalamos algumas das tendências em curso: a) Crescente pluralismo religioso. Sempre houve na América Latina e no Caribe uma variedade de caminhos religiosos presentes nos mais de dois mil povos originários existentes anteriormente à chegada dos europeus; nos milhões de escravos trazidos de diferentes regiões, culturas e sistemas religiosos existentes na África; na diversificada colonização europeia que determinou hegemonia católica nas áreas colonizadas por Espanha, Portugal e França (Quebec no Canadá, Louisiana, nos Estados Unidos, Haiti, Guadalupe, Martinica no Caribe, Guiana Francesa na América do Sul), presença anglicana nas ilhas inglesas do Caribe, na Guiana Inglesa, na antiga Honduras Britânica (Belise), presença reformada nas ilhas holandesas e no Suriname, presença luterana nas Ilhas Virgens dinamarquesas. A substituição dos escravos nas lavouras por trabalhadores chineses adeptos das religiões tradicionais da China (Peru e Cuba); indianos hindus e muçulmanos (Trinidad Tobago, Guiana Inglesa, Jamaica e noutras ilhas britânicas), indonésios muçulmanos (Antilhas Holandesas e Suriname), japoneses shintoistas e budistas (Peru e Brasil) e a posterior imigração europeia, particularmente intensa para a Argentina, Uruguai, Brasil, Chile, Venezuela, diversificou ainda mais o panorama religioso do continente a partir da segunda metade do século XIX em diante. Isto não impediu que a América Latina fosse vista como continente, majoritariamente católico, pelo menos nominalmente. A novidade, hoje, é a multiplicação de experiências religiosas de toda índole, reflorescimento de cultos indígenas e afro-americanos, aliados ao fato de grande número de pessoas mudar de religião. Há dois fenômenos aparentemente contraditórios nesse campo: de um lado, uma verdadeira explosão religiosa, particularmente vistosa no multiplicar-se de movimentos e igrejas pentecostais e neopentecostais e, de outro, uma desafeição frente às formas religiosas mais institucionalizadas das Igrejas tradicionais. No limite, as pessoas se declaram “sem religião”, sendo este o segmento que, nos últimos trinta anos, mais rapidamente cresceu na população em geral, em especial nos centros urbanos, seja na Argentina, no Brasil, no Chile ou no México. Há outra novidade nessas formas de descrença. Elas permeiam também os setores populares tradicionalmente religiosos. Nesse sentido, elas diferem do clássico agnosticismo dos meios intelectuais à raiz dos conflitos entre fé e ciência na segunda metade do século XIX. Diferem também do movimento de “perda de fé” da classe operária, nas primeiras décadas do século XX, por acomodamento da Igreja Católica e de outras Igrejas cristãs aos interesses dos setores burgueses da sociedade e por sua aliança política com partidos conservadores contra os partidos socialistas, anarquistas, comunistas ou de esquerda alinhados com os interesses dos trabalhadores, nos conflitos entre capital e trabalho. Difere ainda da aproximação de intelectuais e universitários ao marxismo e concomitante desafeição religiosa. O fenômeno atual de abandono da religião é particularmente visível nos cinturões populares das grandes aglomerações urbanas, nas cidades dormitório ao lado de zonas industriais, nas favelas e cortiços dos centros urbanos. b) Pentecostalização do cristianismo.Se é possível distinguir três grandes expressões históricas do cristianismo, a do antigo oriente, a do ocidente latino católico e a da reforma protestante, é necessário acrescentar uma quarta, a do pentecostalismo que é reivindicada hoje por um quarto dos atuais dois bilhões de cristãos. Ao lado das igrejas e movimentos pentecostais, é visível a força do movimento carismático, tanto no seio do anglicanismo, das igrejas protestantes, como a luterana, a metodista, as presbiterianas, como ao interior da igreja católica. Nesse sentido, paralelamente ao crescimento pentecostal na América Latina e no Caribe está em curso igualmente uma pentecostalização de amplos setores do catolicismo, mormente entre as classes medias e altas. Basta o exemplo recente do Brasil para se medir a força do movimento pentecostal. Os dados do último censo (2010) no campo religioso, divulgados há poucos dias, indicam o persistente crescimento do mundo evangélico/pentecostal e o declínio dos fieis católicos e das Igrejas protestantes tradicionais: EVOLUÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO DA PERTENÇA RELIGIOSA NO BRASIL CENSOS: 1970, 1980, 1991, 2000, 2010 ANOS POPULAÇÀO TOTAL - MILHÕES CATOLICOS EVANG. MISSÃO EVANGÉLICOS PENTECOSTAIS EVANG TOTAL OUTRAS RELIGIÕES SEM RELIGIÃO 1970 93 470 85 775 -- -- 4 833 2 157 0,704 91,8% -- -- 5,2% 2,5% 0,8% INDICE 100 100 -- -- 100 100 100 1980 119 009 105 860 4 022 3 864 7 885 3 310 1 953 89,0% 3,4% 3,2% 6,6% 3,1% 1,6% INDICE 127 123 100 100 163 153 277 1991 146 814 122 365 4 388 8 768 13 157 4 345 6 846 83,3% 3,0% 6,0% 9,0% 3,6% 4,7% INDICE 157 142 109 227 272 201 972 2000 169 870 125 517 8 477 17 975 26 452 5 409 12 492 73,9% 5,0% 10,6% 15,6% 3,2% 7,4% INDICE 182 146 210 374 547 250 1774 2010 190.775 123,289 7.686 25370 42.276 9621 15.335 64,63% 4,02% 13,30% 22,16% 5,04% 8,03% INDICE 204 143 191 656 880 446 2178 FONTE: DADOS DEMOCRÁFICOS: CENSOS IBGE: 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. INDICES DO AUTOR. Nota bene: O Censo de 1970 englobou todos os evangélicos, de missão e pentecostais, numa única categoria. Porcentagens e índices permitem visualizar as principais tendências nos últimos quarenta anos: - A população do país pouco mais do que dobrou entre 1970 e 2010 (Índice de 100 para 204). Os católicos não seguiram o ritmo do crescimento populacional (100 para 143) e, por primeira vez, entre 2000 e 2010, declinaram em números absolutos, caindo de 125.516 milhões para 123.289 (Índice de 146 para 143). - Declinou igualmente o número dos Protestantes de Missão que engloba luteranos, metodistas, presbiterianos, congregacionais e batistas. Baixaram de 8.4 milhões, para 7.8, entre 2000 e 2010. Se excluirmos deste grupo os batistas que representam metade desses fieis e é uma igreja que continua crescendo fortemente, o declínio seria mais acentuado (Índice de 210 para 191). - Os pentecostais e neopentecostais continuam crescendo e muito. Passaram na última década de 17.9 milhões para 25.3 (Índice de 374 para 656). Há algumas surpresas internas: A Igreja Universal do Reino de Deus, dona da Rede Record, que tivera crescimento fulminante entre 1991 e 2000, perdeu fieis na última década, assim como sua vistosa bancada de deputados na Câmara Federal. Outro fenômeno é do numeroso grupo de pessoas que se declaram “evangélicas”, sem indicar uma Igreja específica e que alcançou 9 milhões de pessoas. Consolidou-se a posição da Assembleia de Deus como a grande Igreja pentecostal, com 12.3 milhões de fieis. Ela congrega mais da metade de todos os pentecostais afiliados. - O conjunto dos evangélicos passou a somar 42,2 milhões de fieis, 22,16% da população brasileira, com um índice de 880 a partir da década de 70. Multiplicaram-se quase por nove, seus adeptos, nos últimos 40 anos. - O bloco das “Outras religiões” também cresceu. Seu índice passou de 100 a 440 entre 1970 e 2010. Neste bloco, o grupo mais importante é o dos espíritas que somam 3.8 milhões de adeptos, fazendo do Brasil o país com o maior número de espíritas em todo o mundo. Dentro desse bloco, encontram-se também as religiões indígenas e afro-brasileiras. Nestas, é marcante a liderança feminina das mães e filhas de santo. - Finalmente, o segmento que mais cresceu é o daqueles que se declaram sem religião. Este engloba ainda ateus e agnósticos. Seu índice saltou de 100, em 1970, para 2.178, em 2010. Isto significa que, nesse período, há 21 vezes mais pessoas que se declararam sem religião, notadamente no meio urbano e, de modo particular, nas grandes cidades. Seu ritmo de crescimento, entretanto, foi menor entre 2000 e 2010, se confrontado com o da década anterior (1991 a 2000), quando este grupo mais do que dobrou. Secularização e explosão religiosa convivem lado a lado nas grandes cidades brasileiras, mas espraia-se de maneira mais rápida a mancha dos que se declaram “sem religião”, sem nos aprofundarmos sobre os múltiplos significados que pode esconder essa expressão. - Não com o mesmo ímpeto, mas com tendências semelhantes em direção a uma ampla e crescente diversificação religiosa da sociedade, caminha toda a área centro-americana, de modo particular em países que foram duramente afetados pela guerra e deslocamentos massivos de população, como Nicarágua, El Salvador e Guatemala, mas também países como Chile, Argentina, Peru, Equador, Colômbia e México, em que pese a formação social relativamente diferente entre eles. c) Mediatização da mensagem religiosa. As igrejas que tiveram crescimento mais acelerado foram as que se apoiaram mais diretamente na utilização maciça dos meios de comunicação social, em especial, do radio, da televisão e agora da internet. O fenômeno das Igrejas eletrônicas dos Estados Unidos vem se replicando na América Latina e no Caribe, com a difusão de uma cultura “gospel” que permeia as várias igrejas cristãs indistintamente. Pastores e padres cantores, grandes festivais musicais religiosos vem se tornando a forma mais recorrente desta corrente religiosa, que alia emoção e subjetividade, com grandes “happenings” coletivos, mas com raso embasamento doutrinal e escasso compromisso social ou político, a partir de sua fé. e) Massificação e o anonimato no mundo urbano. Nos últimos 50 anos, todo o continente conheceu altíssimas taxas de urbanização sustentadas pela maciça imigração do campo para a cidade, dos pequenos e médios centros urbanos para as grandes metrópoles. Megalópoles, como a cidade do México ou São Paulo, metrópoles como Santiago do Chile, Bogotá, na Colômbia, Lima, Rio de Janeiro, no Brasil e Buenos Aires, na Argentina, mudaram a paisagem humana e social do continente. Para um catolicismo e determinados ramos do protestantismo que floresceram em ambientes rurais e em pequenas cidades, tornou-se um ingente desafio responder às novas interrogações e demandas do mundo urbano e encontrar formas de inserção criativas e proféticas nas megacidades, num ambiente de franca concorrência religiosa e de formas alternativas de vida, secularizadas e sem maiores referências ao transcendente. Para o mundo latino-americano, a teologia da libertação que nasceu ecumênica, desenvolvendo-se simultaneamente entre evangélicos (Rubem Alves, José Miguel Bonino, Julio de Santa Ana) e entre católicos (Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino, Juan Luiz Segundo, entre outros), os 40 anos do livro seminal de Gustavo Gutierrez, Teologia da Libertação, é um chamado para que as questões da exclusão e da justiça, dos pobres e de sua libertação continuem no centro da vida e dos sonhos dos seguidores de Jesus e das comunidades que lhe são fieis muitas delas até o martírio. Nessa linha, desempenham papel fundamental as pastorais sociais nos vários países. O CESEEP veio colaborando para a organização, junto com Ameríndia e outras instituições, do “Congreso continental de teología a los 50 años del Vaticano II y 40 años de la Teología latinoamericana y caribeña” que irá acontecer naUniversidade UNISINOS de São Leopoldo, RS, de 07 a 11 de outubrodeste ano. Para o mundo católico e cristão em geral, os 50 anos do Concílio Vaticano II (1962-1965) são uma oportunidade para revisitá-lo e reinventá-lo nas suas grandes intuições frente aos desafios de hoje, em particular o da erradicação da pobreza, do compromisso ecumênico e do diálogo inter-religioso, na linha de sua recepção mais criativa traçada pelas Conferências gerais do Episcopado latino-americano em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992), Aparecida (2007). Nesta retomada do Concílio, a CNBB propôs um itinerário bíblico: que as comunidades aprofundassem a cada ano um dos evangelhos, tendo como tema: “A formação de um discípulo missionário segundo a pedagogia de Jesus”. No ano de 2012, marcando os cinquenta anos do início do Concílio (1962), o evangelho escolhido foi Marcos, tendo por lema a palavra de Jesus a Bartimeu, ao cego de Jericó: “Coragem! Levanta-te! Jesus está te chamando!” (Mc 10, 49). Nos próximos anos, permanece o tema da formação de um discípulo missionário segundo a pedagogia de Jesus, no evangelho de Mateus (2013), de Lucas (2014) e de João (2015). O coordenador geral do CESEEP foi convidado pela presidência da CNBB para integrar a Comissão especial do Concílio Vaticano II eleita pela Assembleia Geral para cuidar do cinquentenário do Concílio. Foi ainda nomeado pelo Pontificio Comitato di Scienze Storiche, como coordenador geral para o Brasil do projeto internacional de pesquisa sobre os arquivos dos padres conciliares do Vaticano II. A esfera ecumênica encontra-se diante de quatro grandes desafios: o da extrema fragmentação do campo cristão; o do recrudescimento dos fundamentalismos; o do enrijecimento das Igrejas em suas identidades confessionais; o do proselitismo, como estratégia de crescimento numérico. Por outro lado, é alentador todo o trabalho ecumênico impulsado pelo CEBI e outros grupos em torno da leitura popular da Bíblia, que liga fé e vida e permite destravar fundamentalismos, superar confessionalismos ensimesmados e estabelecer diálogo em torno das demandas populares e do sentido da Palavra de Deus para o compromisso cristão na família, na comunidade e na sociedade. As CEBs e seus encontros intereclesiais no Brasil e latino-americanos pelo continente, têm impulsado um espaço importante para um ecumenismo de base. A V Conferência do Episcopado Latino-americano em Aparecida (2007) devolveu legitimidade às CEBs e ao seu compromisso transformador. Em toda a América Latina, prossegue uma fecunda cooperação nesse campo entre cristãos de diferentes confissões religiosas. O CESEEP em cada um dos seus cursos e de modo particular os Cursos Bíblicos participa desse esforço de retornar sempre às referências fundantes da fé cristã e à comum obediência à Palavra de Deus. No Brasil, por mais de vinte anos o coordenador geral do CESEEP acompanhou em nível nacional a Ampliada Nacional das CEBs, encarregada de organizar os Encontros Interclesiais. A partir de 2.000, essa tarefa vem sendo exercida pelo presidente do CESEEP, Pe. Benedito Ferraro. Biblistas, teólogas feministas e teólogos da libertação têm sido exemplares neste trabalho comum levado de maneira ecumênica. Centros de formação teológica, como ISEDET na Argentina, Universidade Bíblica de Costa Rica, o Seminário Evangélico de Teologia de Matanzas, em Cuba, a Comunidade Teológica do Chile; a Universidade Metodista de São Bernardo, a Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, a Escola Superior de Teologia (EST) da IECLB em São Leopoldo e muitos outros espaços mantém orientação ecumênica nos seus programas, no corpo de professores e de estudantes. Biblistas e teólogas como Elza Tamez na Universidade Bíblica da Costa Rica e Ofélia Ortega no Seminário de Matanzas em Cuba desempenharam papel importante nesse compromisso ecumênico e libertador no campo da formação teológica, trazendo a contribuição da leitura feminista da Bíblia e da teologia. Pelo aspecto mais oficial das Igrejas, em quase todos os países da América Latina e do Caribe, há Conselhos de Igrejas cristãs. Poucos, entretanto, contam com a participação da Igreja Católica. Uma das exceções é a Caribbean Conference of Churches (CCC) que congrega 33 Igrejas, presentes em 34 territórios do Caribe inglês, holandês, francês e espanhol, com o seguinte propósito: “Promover o Ecumenismo e a Transformação Social na obediência a Jesus Cristo e na solidariedade com o pobre”. A Conferência Episcopal das Antilhas que reúne os bispos católicos do Caribe inglês, holandês e inglês, mas não espanhol, é membro pleno do CCC. Outra exceção é o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), no Brasil. O CONIC reúne Igrejas orientais, Igrejas saídas da Reforma, a Episcopal Anglicana e a Igreja Católica, mas nenhuma Igreja pentecostal, o segmento mais importante do mundo evangélico no país. O Conselho Latino-americano de Igrejas (CLAI), por outro lado, congrega igrejas evangélicas, com crescente abertura aos movimentos e Igrejas pentecostais, mas deixa de fora a Igreja Católica, embora mantenha laços de boas relações e cooperação, em países, como o Brasil. O CESEEP, por sua vez, é membro fraterno tanto do CLAI em nível latino-americano, quanto do CONIC, em nível nacional, podendo assim conviver, transitar e colaborar com as iniciativas de ambos os organismos buscando dar sua contribuição no sentido de construir pontes entre mundos por vezes afastados entre si. O CESEEP participa igualmente de modo permanente no grupo Fé-Brasil e mantêm laços estreitos com os vários centros e instituições ecumênicas do Brasil, da América Latina e do Caribe. Nas duas últimas décadas, vem se dedicando ainda a estabelecer diálogo e cooperação com as religiões não cristãs, seja com as religiões indígenas, as de matriz afro-americana, a umbanda e o espiritismo, seja com o judaísmo, o islamismo, o budismo e o hinduísmo. Seu Curso de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso comporta intenso programa de visitas aos locais de reunião e culto dessas religiões; diálogo com sua espiritualidade e sua contribuição frente a desafios atuais, como a violência, a crise ambiental, a injustiça, a pobreza, a disseminação da AIDs e das drogas entre a juventude. Por último, o crescimento do segmento de pessoas, que se declaram sem religião, o que mais cresce entre a população dos centros urbanos, tem trazido novo desafio ao CESEEP: o de jovens desconectados de qualquer pertença eclesial ou prática religiosa e que se inscrevem para os seus Cursos, preocupados em buscar um sentido para suas vidas, uma espiritualidade e um engajamento em ações cidadãs em favor da justiça, da vida, do meio ambiente e da promoção humana de excluídos e discriminados. O CESEEP tem buscado se situar frente a esses diferentes desafios e apostar no processo formativo de pessoas e grupos, capaz de ampliar seus horizontes, oferecer uma experiência de partilha e vivência latino-americana e ecumênica e propor elementos de discernimento para suas escolhas de fé e de cidadania.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

As proposições do Sínodo: que Igreja para o futuro?

Quinta, 22 de novembro de 2012 "A dinâmica metodológica interna do evento Sinodal e a consequente elaboração das Proposições possibilita-nos analisar como o episcopado católico pretende conduzir a Igreja nos próximos anos, inspirados pelos 50 anos do Concílio Vaticano II e pelos 20 anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica. Meu objetivo é verificar qual projeto futuro de Igreja está por traz do conceito de 'Nova Evangelização'”, Sérgio Ricardo Coutinho, mestre em História Social pela Universidade de Brasília – UnB e doutorando na mesma área pela Universidade Federal de Goiás – UFG. É professor do curso de pós-graduação em História do Cristianismo Antigo na UnB e de História da Igreja no Instituto São Boaventura, de Brasília, além de presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil). Eis o artigo. Introdução Em outro artigo publicado aqui no IHU, me arrisquei propor uma análise sobre as disputadíssimas hermenêuticas acerca do Concílio Vaticano II (ruptura ou continuidade?). Naquela oportunidade, procurei estabelecer um diálogo, no campo da Teoria da História, com o historiador alemão Heinhart Kosseleck por meio das categorias de “espaço de experiência” (passado) e “horizonte de expectativas” (futuro) para compreender melhor os projetos históricos por de trás de cada uma daquelas abordagens. Agora, venho novamente arriscar uma leitura, a partir do mesmo autor, das Proposições (cf. aqui a versão em inglês) elaboradas pelos Padres Sinodais neste último Sínodo, encerrado em 28/10, em Roma, intitulado A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã. A dinâmica metodológica interna do evento Sinodal e a consequente elaboração das Proposições possibilita-nos analisar como o episcopado católico pretende conduzir a Igreja nos próximos anos, inspirados pelos 50 anos do Concílio Vaticano II e pelos 20 anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica. Meu objetivo é verificar qual projeto futuro de Igreja está por traz do conceito de “Nova Evangelização”. Por isso, a proposta metodológica da “história dos conceitos” de Kosseleck nos será de grande valia aqui. Como bem afirmou ele, “a história dos conceitos é (...) um método especializado na crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político”, consequentemente, “uma análise histórica dos respectivos conceitos deve remeter (...) também a dados da história social, pois toda semântica se relaciona a conteúdos que ultrapassam a dimensão linguística” (1). O “evento” Sínodo sobre a Nova Evangelização Do ponto de vista do “evento sinodal”, apesar de não expressar a colegialidade de toda a Igreja, pois o mesmo é apenas um instrumento consultivo do papa, em si mesmo procurou ser o mais participativo. O Sínodo contou com a participação de 263 Padres Sinodais (2), sendo que 172 foram eleitos por suas Conferências Episcopais (pela CNBB foram Dom Odilo Scherer, Dom Geraldo Lyrio, Dom Sérgio da Rocha e Dom Leonardo Ulrich Steiner), 10 pela União dos Superiores Gerais, 40 foram eleitos diretamente pelo Papa (entre eles Dom Benedito Beni dos Santos), 37 participaram ex officio (possuem cargos na Cúria Romana) e 3 designados pelas Igrejas Católicas Orientais. De todos esses, 6 eram Patriarcas, 49 Cardeais, 3 Arcebispos maiores, 71 Arcebispos, 120 Bispos e 14 padres. Fizeram parte também do Sínodo: 20 delegados fraternos representantes de Igrejas e Comunidades Eclesiais, 45 especialistas e consultores, 49 ouvintes (mulheres e homens) e um inúmero grupo de assistentes, técnicos, tradutores e colaboradores da Secretaria Geral do Sínodo. Os primeiros dias do Sínodo foram dedicados a um amplo “agir comunicativo”. Deu-se tempo para os oradores (cardeais, arcebispos e bispos) se inscreverem para comentar algum aspecto do documento Instrumento de Trabalho. Cada um teve cinco minutos para falar, usando uma das 5 línguas oficiais (inglês, francês, italiano, espanhol e alemão), e todos, na Assembleia, acompanhavam com o texto do pronunciamento em mãos e tradução simultânea. Após, seguiam-se debate livre e restrito a intervenções de 4 minutos. Aqui fica evidente a presença da “modernidade” na Igreja: é o que J. Habermas chama de razão comunicativa, onde os atores do processo buscam o entendimento e um consenso normativo por meio da “linguagem pragmática”. O próprio Regulamento do Sínodo assim expressa este objetivo: “(...) pode parecer enfadonho ter que escutar em vários dias tantos discursos. Mas, na realidade, trata-se de uma escuta muito útil para alimentar a colaboração e a amizade entre todos, para obter, da variedade de falas, os elementos comuns, os problemas mais importantes e as questões que mais preocupam os responsáveis pela Evangelização em todo o mundo. O trabalho em comum exige paciência” (Art. 38 d). Os bispos brasileiros também fizeram uso da palavra. Dom Odilo Scherer fez um pronunciamento afirmando que ao longo da história da Igreja, já houve muitos momentos de “nova evangelização”, com a atuação de grandes santos e pastores, entre os quais citou Dom Bosco. A Igreja, mais do que estrategistas pastorais, precisa hoje de novos e santos evangelizadores que anunciem o Evangelho com a própria vida e testemunho. Dom Leonardo Steiner falou da importância dos leigos na nova evangelização. Referiu-se também aos jovens, como um novo areópago da Igreja hoje, das boas experiências com jovens missionários de jovens principalmente através da música e da mídia em geral. Dom Geraldo Lyrio Rocha discursou sobre a dimensão evangelizadora da Liturgia. Falou da “arte de celebrar”, da importância da homilia, dos ritos que comunicam o mistério e sobre o papel mistagógico da Liturgia, ou seja, os ritos, bem celebrados, por si só são uma catequese através dos sinais que favorecem à educação da fé. Dom Benedito Beni dos Santos afirmou que a Nova Evangelização está em fase de desenvolvimentona América Latina nos projetos de missão permanente. No Brasil, estes projetos acontecem com os movimentos e as novas comunidades como Canção Nova e Arautos do Evangelho. Já Dom Sérgio da Rocha chamou a atenção para desenvolver com maior esforço a iniciação cristã como autêntico processo evangelizador e que, para isso, seria importante “configurar para o catequista um ministério estável e instituído dentro da Igreja”. A palavra foi dada também a algumas mulheres e leigos que participavam na condição de auditrices (ouvintes), como a Ir. Mary Lou Wirtz, presidente da União das Superioras Gerais, Sra. Maria Voce, Superiora Geral dos Focolarinos (sucessora de Chiara Lubich), a Ir. Maria Antonieta Bruscato, Provincial das Irmãs Paulinas (brasileira) e Lydia Jiménez González, fundadora das Cruzadas de Santa Maria. Entre os leigos, o mais conhecido a falar, foi Francisco José Gomes (Kiko) Argüellos Wirtz, fundador do Neocatecumenato. Após os discursos, todo o material foi organizado já em vista da elaboração de, inicialmente, 50 proposições e distribuídas em 4 grandes conjuntos temáticos: 1) A natureza da Nova Evangelização; 2) O contexto atual do Ministério da Igreja; 3) As respostas pastorais às atuais circunstâncias e 4) Agentes e participantes da Nova Evangelização. Para isso, os dias seguintes foram dedicados aos trabalhos em grupos. Todos os quase 400 participantes foram divididos em 12 grandes grupos, chamados Circuli Minores, usando como critério de divisão as cinco línguas oficiais (4 grupos de língua inglesa, 3 de língua italiana, 2 de língua francesa, 2 de língua espanhola e 1 de língua alemã). Cada grupo com cerca de 40 pessoas sob a coordenação de um Moderador e que tinham a missão de redigir as Proposições. Recolhendo as discussões realizadas em um dos grupos de língua hispânica (3), é possível observar, com rara oportunidade, como um determinado conceito é construído. No caso deste “atual” conceito de “Nova Evangelização” (a partir de agora NE), este seria elaborado de forma intersubjetiva, apesar dos desafios e das dificuldades que tal pragmática linguística ilocucionária pressupõe (a busca do consenso). Muito diferente do “antigo” conceito de NE que, construído teoricamente e levado a cabo politicamente pelo Papa João Paulo II, chegou-nos de forma perlocucionária (4). Sobre esta, voltaremos mais adiante. De modo geral, foi rejeitado por todos os participantes do grupo que a tal NE significasse toda a pastoral da Igreja, ou seja, onde cada um a entende como quer, deixando tudo como estava antes, sem mudar nada. Seria um modo de fugir dos problemas e dos desafios. Daí ser importante evitar que se crie mais um slogan que todos repetem, mas sem nenhum conteúdo consistente. Para alguns dos participantes do grupo, a NE seria uma proposta para enfrentar a descristianização de antigas Cristandades, como é o caso da Europa (compreensão semelhante a de João Paulo II). Para outros, como uma espécie de diálogo para encarar o mundo hostil contra a presença pública da Igreja na sociedade. Não poucos a interpretavam como projeto da Igreja para recuperar o prestígio perdido pelo desaparecimento da Cristandade. Já os latino-americanos identificavam a NE com o projeto que nasce dos documentos de Aparecida, de uma Igreja missionária, que busca gerar e formar discípulos missionários. Outros sugeriram que se busquem as razões pelas quais estamos falando agora de NE. Uma intervenção sugeriu que se aprofundassem os fundamentos antropológicos, teológicos, eclesiológicos e bíblicos dessa proposta da Igreja, pois ela não pode continuar dando respostas para perguntas que ninguém faz: quais seriam mesmo as questões às quais a Nova Evangelização quer responder? Nesse sentido, alguns criticaram a falta de um status questionis, ou seja, uma espécie de ver a realidade concreta, esclarecer por que estamos aqui falando desse assunto? O que nos leva a nos preocupar com uma Nova Evangelização? Bispos de países de recentíssima evangelização, como o Timor-Leste, afirmaram: “Nós nem ainda acabamos de realizar uma verdadeira evangelização entre o nosso povo, e por que já temos que pensar numa nova? Que novidade é essa tendo em vista ao que já estamos a duras penas fazendo?” Ao término de todo este processo de debates nos Circuli Minores, chegou-se a algumas orientações em vista das Proposições: a) necessidade de esclarecer melhor o que seja NE. Concordou-se, após várias intervenções, que fosse melhor apresentar as características da NE que buscar uma definição completa; b) O texto das Proposições precisaria ser mais de caráter propositivo, alegre e entusiasta. Ele mesmo deveria espelhar o espírito da NE; c) insistir no caráter sobrenatural da NE: é de iniciativa divina, depende da graça de Deus e precisa começar no coração de cada um, a começar dos pastores; d) O novo da NE está na conversão do coração dos evangelizadores e não tanto nos projetos, metodologias ou planos mirabolantes. Ela deve se basear, em primeiro lugar, no testemunho de vida, a começar dos evangelizadores; e) O importante do título do Sínodo não é a NE, mas sua finalidade: a transmissão da fé. Portanto NE é anunciar, falar de Jesus e seu Evangelho; é catequese, evangelização; f) a NE deve ter duas grandes frentes: por um lado, a pastoral “normal” do Povo de Deus para defender, alimentar e fazer crescer a fé; por outro, uma dimensão missionária de primeiro anúncio e de evangelização para aqueles que não conhecem Jesus Cristo ou estão afastados da Igreja. O “Horizonte de Expectativas” nas Proposições Queremos aqui retomar com um pouco mais de detalhes, antes de nos deter sobre as Proposições, a compreensão perlucionária da antiga concepção de NE a partir do projeto histórico-eclesial do papa João Paulo II. Para a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, o Papa João Paulo II, diante de um mundo moderno hostil a Igreja e com o desejo de manter o regime de autoridade no qual o sistema romano sempre se apoiou, desenvolveu duas estratégias complementares com traços suscetíveis de serem identificados: a de compensação profética (5) e a da antecipação messiânica. Na análise do conceito de NE, nos interessa aqui a segunda estratégia. Na “antecipação messiânica” estava contido todo o “horizonte de expectativas” do Papa João Paulo II. Esta estratégia projeta em um futuro radicalmente transformado um mundo novo no qual poderia ser plenamente restituída a plausibilidade da mensagem da Igreja. Esta estratégia, segundo Léger, se cristalizou no conjunto abundante das mensagens pontifícias relativas à NE. A expressão foi formulada pela primeira vez por João Paulo II em um discurso para os bispos do CELAM, no Haiti, em 1983. Depois, em 1985, na “Carta dirigida a todos os jovens do mundo”, e nos discursos pronunciados aos jovens reunidos por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (Compostela-1989; Czestochowa-1991; Denver-1993; Manila-1995) oferecem exemplos numerosos da essência do projeto: um apelo a uma mobilização católica (ou “concentração católica”), única capaz de servir de alavanca a uma regeneração global do mundo moderno. Esta visão encontra sua expressão mais acabada na Carta Apostólica “Quando se avizinha o terceiro milênio da era cristã” (Tertio Millenio Adveniente), de 1994 (6). Esta carta situava aquele momento presente em que se impunha a recristianização de um “Ocidente que se desliga de suas raízes cristãs” e, por este motivo, tornava-se “terreno de missão sob a forma dos diferentes areópagos” que são “as vastas áreas da civilização contemporânea e da cultura, da política e da economia” (7). Em outras palavras, NE era outro nome para Cristandade. O pressuposto era o mesmo dos líderes católicos da reação contrarrevolucionária do séc. XVIII: não há verdadeira civilização nem autêntica convivência humana fora da Cristandade, fora de uma sociedade onde a Igreja dite as regras e valores do viver social (8). Pois bem, as Proposições parecem caminhar por outro princípio que não o da Cristandade. Neste sentido, a concepção de NE (9) que nasce dos Padres Sinodais está em descontinuidade com a concepção anterior. Isto porque o “espaço de experiência” que, de certo modo, informa o projeto futuro contido neste documento são as comemorações dos 50 anos do Concílio Vaticano II e os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica. Antes de tudo, precisamos falar alguma coisa sobre o gênero literário das Proposições (10). Como o próprio termo diz, é uma ação de “pôr diante dos olhos”, de propor a exame ou deliberação. No caso, os bispos “colocam diante dos olhos” do papa o que pensam sobre a NE. De fato, logo na Introdução, fica claro que o gênero deste texto é o de municiar o papa com os conteúdos para uma futura publicação da Exortação Apostólica Pós-Sinodal: “(...) os padres sinodais consideram importantes as seguintes Proposições. (...) pedem também humildemente ao Santo Padre que considere a conveniência de um documento sobre a transmissão da fé cristã através de uma Nova Evangelização” (Prop. 1). Na percepção dos Padres Sinodais, o princípio que deve orientar toda a proposta de NE é a Santíssima Trindade. Daí que valoriza muito a comunhão eclesial e a vida em comunidade, seja ela diocesana, paroquial, pequenas comunidades, religiosas e carismáticas. Na Prop. 4 temos: “A Igreja e sua missão evangelizadora têm a sua origem e fonte na Santíssima Trindade de acordo com o plano do Pai, a obra do Filho, que culminou em sua morte e gloriosa ressurreição, e da missão do Espírito Santo. A Igreja continua a missão do amor de Deus em nosso mundo. (...) A Nova Evangelização reconhece a primazia da graça de Deus e de como, pelo batismo, vem viver em Cristo. Esta ênfase na filiação divina deve levar os batizados a uma vida de fé que manifesta claramente sua identidade cristã em todos os aspectos de sua atividade pessoal”. Daí, a consequente necessidade da Igreja ser missionária (11): “Deus, nosso Salvador, quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1 Tm 2, 4). Uma vez que a Igreja acredita neste plano divino de salvação universal, ela deve ser missionária (cf. Evangelii nuntiandi, 14, Catecismo da Igreja Católica, 851)”. (Prop. 6) Em sintonia com a eclesiologia do Concílio Vaticano II, a “Igreja local”, a “comunidade eclesial diocesana” é o lugar por excelência da NE: “A igreja particular, liderada pelo bispo, auxiliada por padres e diáconos, com a colaboração das pessoas consagradas e os leigos, é o sujeito da Nova Evangelização. É assim porque, em cada lugar, a Igreja particular é a manifestação concreta da Igreja de Cristo e, como tal, inicia, coordena e realiza as ações pastorais através da qual a Nova Evangelização se dará. (...) as dioceses são ‘uma porção do povo de Deus sob o cuidado pastoral do bispo, ajudado por seu presbitério’ (Christus Dominus, 11)”. (Prop.41 e 43) O documento apresenta uma compreensão do mundo, lugar por excelência da atividade missionária, bem diferente daquela empreendida pelo papa João Paulo II. O mundo não precisa de conversão, mas de testemunhas que vivam uma fé autêntica. Por isso, há um abandono, pelo menos neste documento, das estratégias de compensação profética e de antecipação messiânica. Há o desejo de a Igreja retomar sua “autoridade” não pela imposição de uma “norma” (como era a prática em épocas de Cristandade), mas pelo sentido dado por seus membros. Assim, temos: Somos cristãos vivendo em um mundo secularizado. Considerando que o mundo é e continua sendo a criação de Deus, a secularização se insere na esfera da cultura humana. Como cristãos, não podemos ficar indiferentes ao processo de secularização. Estamos, de fato, em uma situação semelhante à dos primeiros cristãos e, como tal, devemos ver isso tanto como desafio e possibilidade. Vivemos neste mundo, mas não somos deste mundo (cf. Jo 15,19;17,11-16). O mundo é criação de Deus e manifesta seu amor. Em e através de Jesus Cristo, recebemos a salvação de Deus e somos capazes de discernir o progresso de sua criação. Jesus abre as portas para nós de novo, de modo que, sem medo, possamos abraçar amorosamente as feridas da Igreja e do mundo (cf. Bento XVI) (Prop. 8). Na Prop. 13, os padres sinodais reconhecem que, para proclamar a Boa Nova nos mais diferentes contextos do mundo, marcados pela globalização e secularismo, a Igreja se vê diante de desafios também diferentes: ora diante de perseguições, ora diante de indiferenças, ora diante de interferências, restrições ou de assédios. Por isso, o “Evangelho oferece uma visão da vida e do mundo que não pode ser imposto, mas apenas proposto, como a boa notícia do amor gratuito de Deus e da paz. A mensagem de verdade e de beleza pode ajudar as pessoas a fugir da solidão e da falta de sentido onde muitas vezes estão relegadas nas condições da sociedade pós-moderna. Portanto, os crentes devem se esforçar para mostrar ao mundo o esplendor de uma humanidade baseada no mistério de Cristo”. De uma estratégia de “compensação profética”, os bispos sinodais propõem a “reconciliação” como a estratégia desta “nova” NE: “Em um mundo que está cindido por guerras e violência, um mundo ferido por um individualismo muito difundido, que separa os seres humanos entre si, e coloca um contra o outro, a Igreja deve desempenhar o seu ministério de reconciliação de maneira calma e firme. (...) a Igreja tem que fazer um esforço para derrubar os muros que separam os seres humanos. (...) ela tem que pregar a novidade do Evangelho salvífico de Nosso Senhor, que veio para nos libertar de nossos pecados e para nos convidar a construir a paz, harmonia e justiça entre os povos”. (Prop. 14) Por outro lado, os padres sinodais sabem que para uma NE neste mundo é necessário fazer uma opção prévia e radical: a opção pelos pobres. A crise econômica atual afeta seriamente os pobres, diz o texto. Há novos rostos pobres e da pobreza: famintos, sem-teto, doentes e abandonados, viciados em drogas, os migrantes e os marginalizados, refugiados políticos e ambientais, os povos indígenas. “A opção preferencial pelos pobres nos leva a buscar os pobres e para trabalhar em seu nome, de modo que eles podem se sentir em casa na Igreja. São tanto destinatários como atores numa Nova Evangelização” (Prop. 31). O projeto propriamente dito de NE aparece na Prop.7: “Evangelização pode ser entendida em três aspectos. Em primeiro lugar, a evangelização ad gentes é o anúncio do Evangelho aos que não conhecem a Jesus Cristo. Em segundo lugar, ele também inclui o crescimento contínuo na fé, que é a vida ordinária da Igreja. Finalmente, a Nova Evangelização é dirigida especialmente para aqueles que se tornaram distantes da Igreja”. Para isso a Igreja precisa de uma “conversão pastoral”, a começar pelos próprios bispos. Sair de uma ação pastoral de manutenção (pôr um fim à Cristandade) para uma pastoral decididamente missionária é o desejo dos padres sinodais. Para isso, é necessário fazer “mudança nas estruturas”. Neste ponto, a contribuição dos bispos latino-americanos foi decisiva, pois esta proposição é quase que uma cópia literal do Documento de Aparecida: Muitos bispos falaram da necessidade de renovação na santidade em suas próprias vidas, se quiserem ser verdadeiros e efetivos agentes da Nova Evangelização. A nova evangelização requer a conversão pessoal e comunitária, novos métodos de evangelização e a renovação das estruturas pastorais, para ser capaz de passar de uma ação pastoral de manutenção para uma ação pastoral verdadeiramente missionária. A Nova Evangelização nos orienta para uma autêntica conversão pastoral que nos leva a atitudes e iniciativas que conduzem para avaliações e mudanças na dinâmica das estruturas pastorais que já não respondem às exigências evangélicas da época atual. (Prop. 22) Entre estas estruturas está aquela que mais carrega o peso da Cristandade: a paróquia. Mesmo sendo vista como “a presença primária da Igreja nos bairros, no lugar”, segundo as proposições 26 e 44, os padres sinodais desejam que a paróquia encontre maneiras adequadas para dar mais ênfase na evangelização, animando seus membros a serem agentes da NE, incluindo missões populares (prática típica do Brasil) e programas de renovação. E apelam para que elas, juntamente com suas “pequenas comunidades cristãs” (leia-se aqui “comunidades eclesiais de base”, termo várias vezes usados pelos bispos da África e da Ásia), devam ser “células vivas” e lugares para “promover o encontro pessoal e comunitário com Cristo, experimentar a riqueza da liturgia, para dar inicial e permanente formação cristã, e para educar todos os fiéis na fraternidade e na caridade, especialmente para com os pobres”. Para uma NE que renove as estruturas, é necessária uma Ação Pastoral Orgânica. Cada diocese como comunidade primária da missão da Igreja, deve animar e conduzir uma atividade pastoral renovada integrando a variedade de carismas, ministérios, estados de vida e recursos. Todas elas coordenadas dentro de um projeto orgânico missionário, a partir do diálogo e da cooperação de todos os membros da diocese: paróquias, pequenas comunidades cristãs, as comunidades educativas, comunidades de vida consagrada, associações, movimentos e fiéis individualmente. “Cada plano pastoral deve transmitir a verdadeira novidade do Evangelho, centrada em um encontro pessoal e vivo com Jesus”. (Prop. 42) No entanto, os bispos do Sínodo apostam ainda nos movimentos e nas “novas comunidades” eclesiais em função de seus ideais de santidade e de unidade, e “as incentiva a utilizar seus carismas em estreita colaboração com as dioceses e as comunidades paroquiais, que por sua vez, irão beneficiar o seu espírito missionário”. (Prop. 43) Conclusão De fato, as Proposições trazem um desejo contido vindo dos quatro cantos do mundo católico romano por uma Igreja mais crível. É plausível o “projeto futuro” da Igreja contido nelas? Parece-nos que o projeto de Igreja que nasce da Conferência de Aparecida é muito mais ousado, mas nestes anos fica evidente a pouca vontade política de implantá-la. A próxima tarefa é observar o quanto das mesmas estará plenamente contemplado na próxima Exortação Apostólica Pós-Sinodal de Bento XVI, além de todo o trabalho de implantação do projeto da NE pelo recém-criado Dicastério romano, conduzido por Dom Rino Fisichella. Enquanto isso, aqui no Brasil, continuemos trabalhando pela “conversão pastoral” da Igreja para que seja de fato “povo de Deus”. Notas 1. KOSSELECK, Heinhart. “História dos Conceitos e História Social” in Idem. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2011 (2ª reimpress.), p.103. 2. Durante a realização do evento e nas votações das Proposições, o número de Padres Sinodais ficou em torno de 255. 3. Neste grupo estavam presentes os latino-americanos de língua espanhola e portuguesa, africanos de língua portuguesa, timorenses e espanhóis. O acesso a estas informações só foi possível graças aos boletins quase que diários enviados pelo Pe. Luiz Alves de Lima, sdb, um dos peritos deste Sínodo. 4. Na “Teoria dos Atos de Fala”, amplamente estudados por J. L. Austin e utilizado por J. Habermas em sua “Teoria do Agir Comunicativo”, pelos atos locucionários o falante diz “algo”; pelos atos ilocucionários, o falante realiza uma ação “ao dizer” algo; e, enfim, pelos atos perlocucionários, o falante causa algo no mundo “pelo fato” de agir quando diz algo. Enquanto que para os atos ilocucionários o que é constitutivo é o “significado do enunciado”, para os atos perlocucionários o que é capital é a “intenção” do agente. Por isso é que Habermas só entende por agir comunicativo “as interações mediadas pela linguagem nas quais todos os participantes buscam atingir fins ilocucionários, e tão somente fins como esses. Ao contrário, considero agir estratégico mediado pela linguagem as interações em que ao menos um dos participantes pretende ocasionar com suas ações de fala efeitos perlocucionários em quem está diante dele”. (HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, vol. 1: Racionalidade da ação e Racionalização social, 2012, p.510). 5. Esta estratégia se baseia no seguinte raciocínio: “se a Igreja não é ouvida, não é porque seu discurso seja inadaptado, mas sim porque trata-se de um discurso profético que, por definição, está na contramão das tendências e expectativas da opinião pública”. Ou então no sofisma: “há uma recusa em ouvir os que têm razão. Ora, não sou ouvido; portanto, tenho razão...”. HERVIEU-LÉGER, Danièle. “O bispo, a Igreja e a modernidade” in LUNEAU, René & MICHEL, Patrick. Nem todos os caminhos levam a Roma: as mutações do catolicismo. Petrópolis: Vozes, 1999, pp.319-321. 6. Um pouco antes, em Santo Domingo, no discurso inaugural da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho (1992), João Paulo II assim se expressava sobre a NE: “A nova evangelização há de ser uma resposta integral, pronta, ágil, que fortaleça a fé católica nas suas verdades fundamentais, nas suas dimensões individuais, familiares e sociais” (SD, Discurso Inaugural, n. 11). Sobre os detalhes deste projeto cf. LIBANIO, João Batista. Igreja contemporânea: encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2000, pp. 153-184. 7. “(...) com as tumultuosas experiências do século XX, atribulado pela primeira e segunda guerra mundial, pela experiência dos campos de concentração e por massacres horrendos” (n.18), “(...) Com a queda dos grandes sistemas anticristãos no continente europeu — o nazismo primeiro e depois o comunismo —, impõe-se a tarefa urgente de oferecer de novo aos homens e mulheres da Europa a mensagem libertadora do Evangelho.” (n. 57), “O sucedido mostra que o mundo tem, mais que nunca, necessidade de purificação; precisa de conversão”. (n. 18) 8. MENOZZI, Daniele. A Igreja Católica e a secularização. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 15. 9. O termo “Nova Evangelização” e seus derivados “evangelizar”, “evangelizador”, “evangélico” aparecem 161 vezes ao longo do texto. Se acrescermos o termo “Evangelho” chegamos ao número de 193 citações. 10. O texto-final foi aprovado com 58 Proposições. Cada proposição recebeu, em média, uma votação bem expressiva: 230 placet, 15 non placet e 5 Abstenções. 11. Os termos missão(ões), missionário(a) aparecem 36 vezes ao longo do texto. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515715-as-proposicoes-do-sinodo-que-igreja-para-o-futuro

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A Teologia da Libertação e as igrejas asiáticas: uma verdadeira sinfonia

Discutir o futuro das Teologias da Libertação asiáticas foi o tema central da conferência do teólogo vietnamita Peter Phan na manhã desta quarta-feira, 10-10-2012, dentro da programação do Congresso Continental de Teologia. A reportagem é de Márcia Junges. Com um bom humor peculiar e esforçando-se para falar em espanhol e português, mas tendo que recorrer ao inglês constantemente, Phan argumentou que a Teologia da Libertação não está morta – longe disso. “Ela está viva, especialmente na Ásia”. Ele estabeleceu uma descrição ampla dos vínculos teológicos entre a vertente latino-americana e a asiática. Em seguida, ofereceu uma visão geral de exemplos representativos da Teologia da Libertaçãonesse continente. Finalmente, deu sugestões sobre como as teologias dos dois continentes podem continuar a se fertilizar e enriquecer. A Teologia da Libertação asiática não surgiu somente depois da Teologia da Libertação da América Latina na década de 1970, observou Phan. Um estudo de suas origens mostrou que essa vertente teológica não surgiu do nada, como uma criatio ex nihilo, mas como resultado do contexto da teologia latino-americana, e isso deveria ser visto como continuação do projeto antigo de fazer uma fé cristã genuinamente asiática. Contudo, as tendências liberacionistas asiáticas não são clones dos seus pares latino-americanos. “Naturalmente, temos muitas coisas em comum com a América Latina, mas não somos clones de ninguém”, frisou Phan. “Somos gêmeos, na verdade, irmãos. Nos parecemos porque começamos com a mesma pergunta: o que o contexto de vida no qual estamos inseridos pode nos ensinar para sermos cristãos?” Uma teologia “glocal” A Teologia da Libertação pode ser considerada a primeira teologia global verdadeira. Ao mesmo tempo, ela é uma teologia verdadeiramente local. Podemos falar, então, de uma teologia glocal, neologismo que une a característica local e universal concomitantemente. Outro aspecto importante a ser debatido é que aTeologia da Libertação é seguida inclusive por não cristãos, como budistas e hinduístas. Na Ásia a Teologia da Libertação é uma verdadeira sinfonia, pois é composta de muitas vozes diferentes. Peter Phan mencionou o exemplo dos dalits, os intocáveis, pessoas que estão fora do sistema de castas da Índia, que são indignos de comporem qualquer uma delas. Pensando em sua vida, no contexto econômico, social e político no qual estão inseridos, surgiu a Teologia da Libertação Dalit, que não busca inculturar a fé cristã, mas criar categorias teológicas e filosóficas hindus exclusivas. “A Teologia da Libertação Dalit privilegia a situação desse povo”, mencionou. A opressão sistemática à qual os dalits são submetidos é o objeto central dessa corrente teológica. Deus servo Os cristãos estão habituados a chamar a Deus de Senhor. Para os dalits, esse título não é justo e nem bom. Deus não é Senhor, ele é servo. Assim como eles, Deus é um servo que cozinha, que limpa e realiza serviços braçais. Peter Phan explicou que a partir disso foi trocada a linguagem teológica junto a esse segmento da sociedade indiana. Os dalits não cantam ao Senhor, mas ao servo, porque essa é a experiência que eles vivenciam. “Eles são sempre servos, e assim não tem dignidade humana, são escravos. O seu Deus, então, é sempre escravo e servo. Essa é uma intuição profunda do cotidiano dos dalits”. Peter Phan relembra a ideia de Arvind P. Nirmal, que fala, inclusive, em Cristo como um dalit. Nessa lógica, ele insiste que os outros cristãos também são dalits cristãos. Mas quem é o Cristo? Jesus Cristo é um dalit, mesmo que fosse judeu. Em segundo lugar, sua humanidade e divindade devem ser entendidas em termos de sua “dalitnidade”. Deus é um dalit. É um espírito consolador de vida, e não transcendente. A Igreja não é uma organização, instituição, mas uma comunidade em solidariedade a todos aqueles que sofrem como um dalit, ponderou Phan. Hemenêuticas pós-colonial A Teologia Feminista asiática e várias de suas expoentes foram mencionadas na conferência de Phan: Marianne Katoppo, Chung Hyun Kyung, Gabriele Dietrich, Aruna Gnanadason, Virginia Fabella, Mary John Manazan, Sun Ai Park, Vandana Mataji, Kwok Pui-Lan. A partir da experiência de múltiplas opressões é que essas teólogas feministas criam uma teologia totalmente liberadora daquela de recorte clássico. Outras Teologias da Libertação na Ásia podem ser encontradas nas Filipinas, com a Teologia da Resistência, bem como na Índia e em Taiwan. Quanto ao futuro dessas teologias asiáticas, Phan mencionou a necessidade de se fazer uma nova interpretação bíblica, composta por hermenêuticas intertextuais. Ele sugeriu que uma página da Bíblia fosse lida seguida por um texto hindu. “Com isso abre-se uma visão totalmente diferente. São modos diversos de conceber Deus, os humanos, o mundo, a teologia, a moral, a ética. Tratam-se de leituras intertextuais frente a textos não cristãos”. Para Phan, os não cristãos também possuem uma revelação. Um Deus que não está presente em todas as religiões não é Deus, argumenta. “É preciso uma hermenêutica pós-colonial. Vivemos um neocolonialismo de mercado”. Quem é Pether Phan? Peter C. Phan é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e doutor em Filosofia pela Universidade de Londres, instituição na qual também obteve doutorado em Teologia Pastoral. Publicou diversas obras sobre vários aspectos da teologia, traduzidos em italiano, alemão, francês, espanhol, polonês, chinês, japonês e vietnamita. É o atual titular da Cátedra Ignacio Ellacuría de Pensamento Social Católico da Universidade de Georgetown. Além disso, já lecionou na Universidade de Dallas, na Catholic University of America de Washington e no Union Theological Seminary de Nova Iorque, dentre outros. Em 2010 foi homenageado com o prêmio John Murray Courtney, a mais alta honraria concedida pela Sociedade Teológica Católica da América, por seu “extraordinário e distinto êxito em Teologia”. Na tarde de quarta-feira, 10-10-2012, Peter Phan concedeu uma entrevista exclusiva à IHU On-Line, pessoalmente. Em breve o material será publicado na revista IHU On-Line, em www.ihuonline.unisinos.br Texto: Márcia Junges Foto: Wagner http://www.unisinos.br/eventos/congresso-de-teologia/en/congress/noticias/219-a-teologia-da-libertacao-e-as-igrejas-asiaticas-uma-verdadeira-sinfonia

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Congresso Continental de Teologia, algo mais do que um congresso

Quinta, 01 de novembro de 2012 Para Cecilio de Lora, o Congresso Continental de Teologia, realizado na Unisinos, contou com “aproximações bíblicas e hermenêuticas; sistemáticas e metodológicas; a partir de perspectivas sociais e também científicas, por parte de teólogos sacerdotes e leigos, homens e mulheres, católicos e protestantes”. Seu artigo é publicado no sítio Ameríndia. A tradução é do Cepat. Eis o artigo. De 7 a 11 de outubro deste ano, 2012, aconteceu na Unisinos, em São Leopoldo - RS, Brasil, o Congresso Continental de Teologia, aos 50 anos do Vaticano II e 40 anos da teologia latino-americana e caribenha. A organização, precisa e delicada, esteve sob a responsabilidade da Ameríndia e de outras agências latino-americanas, com a direção geral de Agenor Brighenti, o bom teólogo brasileiro, hoje à frente da Ameríndia. Esse Congresso veio sendo preparado há três anos, a partir dos Congressos Regionais na extensão geográfica americana e caribenha. Não foi algo improvisado, mas maduramente refletido e minuciosamente preparado. Foi uma alegria coincidir com as datas inaugurais do Sínodo Romano para uma Nova Evangelização, no início do Ano da Fé. Um sinal de comunhão eclesial, em que pastores e rebanhos buscam apaixonadamente a realização do Reino de Deus, a paixão de Jesus. No Congresso estiveram presentes 750 participantes, leigos e leigas, religiosas e religiosos, sacerdotes e bispos (17 provenientes do México, Chile e Brasil), católicos e protestantes de diversas confissões (sobretudo anglicanos), latino-americanos, caribenhos, europeus e até asiáticos. Esta diversidade, alegre e harmoniosa, foi uma manifestação, espontânea e prazerosa, da autêntica catolicidade. Para além do Congresso, esta assembleia cristã foi um verdadeiro Kairós, ou seja, um momento de graça, de comunhão, de esperança... Antes de resenhar outros momentos importantes do encontro, convém ressaltar esta impressão profunda pela qual todos nós saímos do encontro. No ambiente, ressoavam as últimas palavras, sinceras e dolorosas, do cardeal Martini, antes de morrer no dia primeiro de setembro (2012), sobre a necessidade de superar o distanciamento da Igreja cansada... 200 anos atrás da realidade... Porém, também as de Aparecida: “A Igreja necessita de forte impulso que a impeça de se instalar na comodidade, no cansaço e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do Continente. Necessitamos que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo. Esperamos um novo Pentecostes que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente; esperamos uma vinda do Espírito que renove nossa alegria e nossa esperança” (DA 362). Esperança e alegria poderiam resumir adequadamente o que foi vivido na Unisinos. Com efeito, em todos os seus aspectos, esperança e alegria marcaram o Congresso: na participação entusiástica de todos e todas em todos os eventos que começava com a primeira Eucaristia do dia, às 6h30min, até a última Conferência da noite, que se iniciava às 20h00s; na liturgia inicial de cada dia, de preparação criativa e delicada, estética e religiosamente estimulantes; nas relações cordiais, sem distinções – alguns destacavam a horizontalidade e outros a liberdade -, verdadeiramente comunitárias no melhor dos sentidos evangélicos... Tinha-se a impressão de que o Congresso era ponto de chegada de buscas múltiplas e plurais, como também ponto de partida para uma nova tarefa teológica, pastoral... a partir de Cristo, como nos recomendou Bento XVI em sua primeira encíclica, e que vigorosamente a nossa Igreja latino-americana e caribenha acolheu (DA 12). Tudo isso, fiéis ao Espírito que sopra hoje de maneira forte e nova. Vários conferencistas sublinharam a importância, teológica e vital, de uma pneumatologia que também parta de pressupostos culturais, espirituais e doutrinais de nossas Igrejas latino-americanas. Os conteúdos foram profundos, enriquecedores, bem articulados. Na sessão inaugural do domingo, dia 7, falaram: Agenor Brighenti, grande inspirador de todo o caminhar antes e durante o Congresso, e o bispo brasileiro dom Demétrio Valentini que durante todo o tempo acompanhou os trabalhos, sendo ele próprio responsável de um seminário sobre “Teologia e renovação eclesial”. A segunda-feira, dia 8, esteve centrada nas “Novas interpelações e perguntas”, a terça-feira, dia 9, nas “Hermenêuticas cristãs”; a quarta-feira, dia 10, na “Práxis e mística”; e na quinta-feira, dia 11, ocorreu a jornada conclusiva, com as “Prospectivas para a teologia”. Ao longo destes dias, houve a apresentação de Conferências gerais para todo o Congresso, pela manhã e ao fim do dia. Além disso, aconteceram vinte Oficinas, continuadas durante três dias, sobre diversos temas relacionados com o desenvolvimento da teologia latino-americana em diversas perspectivas, muito ricas, animadas por especialistas bem conhecidos. Na continuação, alguns painéis abertos, de interesses atuais. Esta logística contou com delicada organização, livre participação e enriquecimentos mútuos. Mais adiante, todos os materiais do Congresso serão publicados, primeiramente de forma virtual e depois impressa. Por isso, não é o caso, nesse momento, apresentar os ricos e variados conteúdos, algo impossível. Cabe, sim, destacar que houve aproximações bíblicas e hermenêuticas; sistemáticas e metodológicas; a partir de perspectivas sociais e também científicas, por parte de teólogos sacerdotes e leigos, homens e mulheres, católicos e protestantes... Uma gama variada, muito rica, da qual parece importante ressaltar, aqui, a figura de Gustavo Gutiérrez. Gustavo – hoje frei Gustavo Gutiérrez – é uma pessoa bem conhecida, cuja presença era esperada com interesse e emoção. E em agradecimento, é claro, pois os quarenta anos de sua obra “Teologia da Libertação” é um ponto de referência importante para o Congresso. Porém, estando disposto a viajar, uma queda lhe impediu de vir (“os acidentes são sempre acidentais”, dizia-nos com bom humor ao começar sua exposição). Esta palestra aconteceu por videoconferência. Sua aparição na tela arrancou longos aplausos, intermináveis e emocionantes, com toda a assembleia em pé. Não é por acaso que é considerado o pai da teologia da libertação. Com seu estilo habitual, profundo, comprometido e até em ocasiões agudamente irônico, Gustavo sublinhou a insubstituível centralidade do pobre no processo da teologia da libertação. Quando lhe perguntaram, em nome dos jovens, o que se podia esperar deles no desenvolvimento desta teologia, Gustavo respondeu quase lapidarmente “vigor, rigor e proximidade com o pobre”. Gustavo, enfim, trouxe para a assembleia a lembrança emocionada de José Comblin (“o professor”) e de Ronaldo Muñoz, recentemente falecido, que tanto contribuíram por meio da vida e obra para o desenvolvimento da teologia da libertação. Além da cortesia, parece também importante destacar a presença e contribuição de Andrés Torres Queiruga, teólogo vindo expressamente da Espanha para falar no Congresso, convidado por seus organizadores. Sua primeira palestra teve como título “Teologia e novos paradigmas”, sendo enriquecedora, trazendo novos pontos de vista ao nosso fazer teológico. Na segunda conferência abordou o tema da “Teologia latino-americana e teologia europeia: interpelações mútuas”, questão não isenta de sérias confrontações interculturais. O espírito acadêmico e a personalidade próxima e cheia de simpatia, do professor emérito de Santiago de Compostela, foram muito apreciados. Ainda ressoa sua expressão mística e profética: Deus nem quer, nem sabe, nem pode fazer outra coisa que amar. A teologia da libertação vive e goza de boa saúde. Antes de tudo, foi importante e gratificante o encontro de três gerações de teólogos da libertação, a primeira das quais, liderada por Gustavo, era generosa e carinhosamente apelidada de dinossauros. Aqui, não são apresentadas listas que podem ser incompletas e, portanto, perigosas. Contudo, entre todos e todas – um bom grupo de teólogas, leigas e religiosas – houve um rico e contínuo diálogo. Particularmente, foi importante a reunião de estudantes de teologia, para firmar acordos e compromissos que, posteriormente, foram compartilhados com a plenária, sendo calorosamente acolhidos e apoiados. A teologia da libertação continuará enquanto houver pobres e pobreza. O título da Mensagem Final, “Perto de Deus... perto dos pobres”, tomado quase literalmente de Aparecida (392), destaca esta centralidade bíblica e teológica, já sublinhada em Medellín (1968). Além disso, esta teologia se abre criativa e esperançadamente aos novos horizontes, inesquecíveis hoje em dia: o da ecologia, o da justiça e a paz, num mundo que globaliza a pobreza, o da mulher, o da teologia indígena e afrodescendente... Enfim, sonhou-se com uma Igreja como João XXIII quis e configurou o Concílio: Luz dos Povos, Povo de Deus, em comunhão com as tristezas e alegrias de nossos povos..., tudo isso matizado por nossas Conferências Episcopais (Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida), a última das quais nos convida, mais uma vez, a um novo Pentecostes, que renove nossa alegria e nossa esperança. Isto, o Congresso Continental da Unisinos quis e viveu. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515091-congresso-continental-de-teologia-algo-a-mais-do-que-um-congresso