Visualizações desde 2005

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

''Francisco começou uma mudança de paradigmas'', afirma Hans Küng

O Papa Francisco começou uma "primavera católica", e o seu impulso reformador poderia chegar até a abolição da obrigação do celibato para os sacerdotes: quem defende isso é Hans Küng em entrevista à revista Spiegel.////////////////////// A nota é de Giacomo Galeazzi, publicada no blog Oltretevere, 08-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Para o teólogo suíço, "a simplificação do vestuário, as modificações no protocolo, uma linguagem completamente diferente não são exterioridade. Francisco começou uma mudança de paradigmas". //////////Küng compara o papa argentino a João XXIII, que, ao contrário dele,fez "as reformas 'en passant' e sem um programa". O teólogo se diz convicto de que o Papa Francisco é capaz de introduzir modificações radicais, porque, "do ponto de vista jurídico, ele tem mais poder do que o presidente dos Estados Unidos". "Se ele quisesse", observa o teólogo, "poderia abolir o celibato da noite para o dia. Eu não acho que essa questão possa ser adiada, porque, a cada dia que passa, há menos padres. Eu não sei como se pode assegurar o cuidado dos fiéis na Alemanha na próxima geração. A base da Igreja está pronta para essa reforma [do celibato]". Küng teme que, no Vaticano, as reformas possam encontrar resistências e que haja "um retorno para trás como na Primavera Árabe": "No Vaticano e na Igreja, existem grupos poderosos que gostariam de inverter o sentido da marcha, porque temem pelos seus próprios privilégios". O teólogo também criticou a decisão de santificar João Paulo II, que definiu de "o pontífice mais contraditório do século XX". Francisco, o ''alegre anunciador'' No período de Natal, nunca tinha sido tão pouco simpático o clima no Vaticano – principalmente para aqueles senhores que até agora detinham o poder e que acreditavam que os faustos da Basílica de São Pedro lhes serviam simplesmente como pano de fundo. Agora, no primeiro sábado do Advento, o papa sorridente pregou a "misericórdia". E, para mostrar que para os cristãos só importa o serviço ao próximo, vestiu-se como um pároco do interior: em vez dos habituais paramentos usados no Advento, bordados a ouro, Francisco tinha apenas um simples pluvial roxo, a cor prevista pelo calendário litúrgico para o mês de dezembro. E a cruz processional era de madeira. A reportagem é de Evelyn Finger, Christiane Florin e Patrick Schwarz, com a colaboração de Marco Ansaldo e Wolfgang Thielmann, publicada no jornal alemão Die Zeit, 05-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. De madeira! Os fãs do glamour na Cúria, aquele gigantesco aparato administrativo do Vaticano, ficaram horrorizados. Onde vamos acabar, sussurravam alguns, se renunciarmos às insígnias do poder? Esses murmuradores, no entanto, já estão um pouco acostumados com o Papa Francisco: cruzes de ferro como se não houvesse um precioso tesouro da Igreja. A maleta preta velha e engordurada, como se o sucessor de Pedro fosse um simples empregado. Os velhos sapatos com cadarços, como se o representante de Deus fosse simplesmente um homem. Há apenas um ano – nas vésperas do Advento, com o antecessor Bento XVI –, a Basílica de São Pedro cintilava com diamantes, e o antigo papa estava ornado como uma... sim, como uma árvore de Natal. Há nove meses, é o argentino de 76 anos Jorge Mario Bergoglio o líder espiritual dos católicos. Ele é o primeiro papa – isso não acontecia há muito tempo – que consegue irritar o mundo. O mundo pequeno, dentro dos muros do Vaticano. E o mundo grande do lado de fora. Ele não só conservou os seus sapatos velhos. Ele também concedeu entrevistas que são entendidas pelos leigos. Ele foi para Lampedusa para se encontrar com os refugiados sobreviventes das travessias nos botes, entrando em contato com uma das muitas realidades urgente do nosso tempo. Ele contratou especialistas externos para lançar luz na escuridão das finanças vaticanas. Ele enviou questionários para todo o mundo para saber o que os católicos pensam sobre amor, sexo e coabitação. E receitou um remédio a milhares de pessoas na Praça de São Pedro. Com a sua figura branca no alto da janela do Palácio Apostólico, ele gritou no Ângelus à multidão: "Agora eu gostaria de lhes aconselhar um remédio!". Depois, levantou uma caixa de medicamento, com a palavra "Misericordina". (Não era uma nova marca de remédios, mas sim a antiga palavra latina para "misericórdia".) Embaixo, na praça, irmãs distribuíram 25 mil dessas caixas, dentro das quais havia um pequeno terço. A multidão riu e aplaudiu. Um papa com senso de humor. Ou apenas marketing? Contra essa última insinuação, falam as 256 páginas escritas pelo papa, uma carta apostólica, um novo "manifesto vaticano": a Evangelii Gaudium, "a alegria do evangelho". Não foi a competente Congregação para a Doutrina da Fé que escreveu esse grande volume, mas sim o papa pessoalmente. Em vez de desaparecer, no mês de agosto, para Castel Gandolfo, isto é, a residência de verão cercada por bosques nas colinas acima do Lago Albano, ele permaneceu nos 35 graus da quente Roma para escrever, contra a certeza de que uma Igreja com 2 mil anos de idade não pode mudar. Renovação inadiável Agora, não só os fiéis leem incrédulos que o papa está mais perto de "uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas ruas" em vez de "uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças". A sua Igreja, diz Francisco, ficou sem alegria e amor – é hora de uma "renovação inadiável". Do mandamento fundamental do amor ao próximo, o papa tira máximas revolucionárias no campo social: não à idolatria do dinheiro! Não à desigualdade social! Não à preguiça do coração! Acima de tudo, porém, ele declara guerra à dureza de coração, começando pela sua própria casa. Aqui alguns cardeaisl começam a murmurar: este papa quer arruinar a Igreja! Ele repreende mais os pecados do clero do que os do mundo lá fora! Adorna a Igreja com galhos e ramos secos. Quer fortalecê-la com a fraqueza. No Vaticano, o Kremlin católico, os nomes "Francisco" e "Gorbachev" são pronunciados juntos cada vez mais frequentemente. A revolução começa com o café da manhã na Casa Santa Marta, onde o papa mora. Na sala comum, ele não se senta sempre na mesma mesa. Ele vai buscar a sua refeição pessoalmente e se senta ao lado dos outros. Apenas para trabalhar ele sobe ao Palácio Apostólico, na Secretaria de Estado, onde estão grandes afrescos e antigos mapas-múndi que dão a impressão de se estar muito no alto. Dominadores do orbe terráqueo. Mas ele se interessa por aqueles que estão embaixo. Muitos católicos, cujo cotidiano tinha pouco a ver com o que um velho diz em Roma, mal podem acreditar: finalmente um papa quer saber algo das suas vidas. Finalmente, alguém com autoridade diz que excluir, denunciar e incutir temor não são virtudes cristãs. Finalmente desmorona o sistema das punições para aqueles que pensam diferente e dos elogios daqueles que seguem rigorosamente as prescrições. Nenhuma proibição de ensino, de pensamento, de expressão. Muito ainda está só no papel, não na prática. Mas, depois de anos de nada, já basta a frase de que muitos padres nas igrejas tem uma "cara de funeral" para explodir a euforia nas pessoas. Justamente em nome da Boa Nova, diz ele, muitas pessoas se detêm no descontentamento, no lamento, na crítica ou no remorso. Justamente o homem que está no alto prescreve agora um riso libertador e anárquico. Destruidor de tradições O sorriso nos olhos de Francisco é o mais difícil para Cesare Bella. Ele é um artista do Studio Mosaico, um laboratório muito antigo ao lado da Casa Santa Marta. Bella e Francisco estão próximos, mas a sua relação ainda não é clara: enquanto o papa tende para o futuro, Bella tem uma tradição a defender. O seu trabalho consiste em fazer um mosaico que represente o papa, como é o costume há 500 anos. O quadro está quase pronto. E Bella se pergunta: ele vai ser do agrado desse destruidor de tradições? Oito pessoas trabalham no Studio Mosaico. Quem trabalhava lá antes deles decorou as paredes da Basílica de São Pedro, todos os anjos e os gigantescos mosaicos com os santos, até a cúpula. Uma grande transfiguração de minúsculas pedras. No laboratório, sente-se o cheiro do pó das antigas peças conservadas em intermináveis fileiras de gavetas. Todas as vezes que um novo papa é eleito, coloca-se sobre o cavalete uma pesada laje de pedra redonda de 136 centímetros de diâmetro. Em primeiro lugar, um dos artistas aplica o fundo dourado. Depois, se dedica ao hábito papal com a capa vermelha. No fim, um dos mestres começa a fazer o seu rosto. Para a pele de Francisco, Bella usou peças de mosaico opacas, de 100 anos de idade e com quase 1.000 nuances. E só para as pupilas utilizou 70 cores. E, para fazer isso, ele tinha apenas uma foto um pouco desfocada como modelo. Porque este papa – que não quer nenhum culto à personalidade e que precisamente por isso é apreciado – se deixa fotografar apenas a contragosto. Ele concedeu ao fotógrafo do Vaticano apenas dois encontros. E, a cada vez, depois de alguns minutos, dizia: "Agora chega". No Studio Mosaico, dizem que lhes agrada o seu novo vizinho. Pelo bom humor que ele difunde. Porque cumprimenta os guardas suíços apertando as suas mãos, conversando com os policiais e porque não deixa que lhe tragam o café, mas ele mesmo o busca sozinho na máquina. Esta semana, o papa vai ver o seu retrato, antes que ele seja colocado na Basílica de São Paulo, no fim da longa série dos seus 265 antecessores. Um friso de cabeças de substitutos de Deus! Uma galeria que vai do passado até o presente. O que realmente interessa a esse papa de olhos sorridentes? Essa é a pergunta do cardeal Gerhard Ludwig Müller, e ele não sorri pensando nisso. O bávaro vem da diocese de Regensburg, é o segundo mais poderoso da Igreja Católica – e o mais tenaz opositor de Francisco. Perto das 12 horas de um dia da semana passada, o carro do papa passou pela praça da Cidade Leonina, ao lado da colunata da Basílica de São Pedro, na frente da residência privada de Müller. Pouco depois, Francisco estava sentado à mesa de jantar da casa de Müller, as freiras Huberta e Helgardis serviram bife à milanesa e batatas cozidas. No momento do café, o argentino Jorge Mario Bergoglio disse em bávaro perfeito: "I ko nimma". Em honra ao seu anfitrião, ele tinha aprendido com Huberta e Helgardis algumas palavras de bávaro. Esse homem, ao que parece, quer contentar até mesmo o seu mais obstinado opositor. "Amai os vossos inimigos"... Francisco e Müller. O papa e o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Os dois não se distinguem apenas pelo comprimento do seu título. Raramente o mais alto guardião de antigas doutrinas da fé, isto é, Müller, esteve em tão más relações com o anunciador de tal fé. Do ponto de vista do alemão, um latino-americano, bem-humorado e despreocupadamente, está demolindo um antiquíssimo edifício. Quanta desordem e insegurança Francisco trouxe ao mundo ordenado da dogmática romano-católica! Ele não mostra nenhuma deferência e nem mesmo um pouco de respeito pelo Santo Ofício, a base do poder de Müller, antigamente a autoridade da Inquisição, a qual, ainda com o Papa João Paulo II, tiveram que comparecer os "desviacionistas" de todas as partes do mundo para se defenderem, em uma luta sem esperanças, para que não lhes fosse retirada a permissão para ensinar. Francisco é contra? Recentemente, ele aconselhou os visitantes que vinham da sua pátria para que não se preocupassem muito caso recebessem uma advertência de Roma. Leiam, ponham de lado e continuem no seu caminho, foi o seu conselho espirituoso. Se Francisco quer uma Igreja pobre, Müller espera uma Igreja pomposa. Onde Francisco vê aliados, por exemplo entre os protestantes, Müller vê rivais ou renegados. Quando Francisco prega compreensão, diante dos divorciados em segunda união ou dos homossexuais, Müller insiste com as proibições. E enquanto Francisco prescreveu ao pródigo bispo alemão Tebartz-van Elst um período de suspensão, Müller troveja contra a mídia que massacram um honesto dignitário. Mas o chefe e o ideólogo-chefe não estão tão distantes um do outro quanto no seu modo de olhar para os milhões e milhões de católicos em todo o mundo. Para Müller, a Igreja governa sobre o povo de Deus, diz-lhe o que é bom e o que é mau, o que deve ser feito e o que se deve evitar. Quão diferentemente se posiciona o papa! Para ele, a Igreja começa de baixo, e no alto deve dar uma boa prova de si mesma – antes o povo, depois os príncipes. Não o contrário. A insurgência de Müller Continuamente, Müller se insurgiu, empregou o resto de autoridade que lhe restava como prefeito tardiamente chamado, nomeado pelo papa bávaro no seu declínio. Quantas coisas Müller tentou a partir do conclave: antes o abraço, depois a arrogância, no fim a intriga. Assim, ele reconheceu a Francisco, de cima a baixo, o seu talento "pastoral" – o que significa algo como: o novo homem é um bom pastor, mas, contra os lobos deste mundo, deixem que a tarefa cabe a mim. Mas o homem que vem de Buenos Aires, mais corajoso do que se esperava, não quer que o mundo seja envenenado por alguém que fareja ao redor apenas por inimigos. E assim continuam se chocando, de um lado o "papa do tango e do cinema", e de outro o guardião da fé da equipe de Ratzinger, um osso duro de aperto de mão mole. O protegido de Ratzinger insiste quase desesperadamente na observância das regras. Se Francisco apenas deixa escapar que a misericórdia pelos divorciados em segunda união é um desejo seu, Müller responde disparando uma intervenção sua no L'Osservatore Romano, o Pravda do Vaticano: está absolutamente excluído que os divorciados em segunda união jamais possam receber a comunhão. Roma locuta, causa finita: uma vez que Roma falou, o caso está encerrado. Em anos anteriores, tal anátema teria cortado qualquer protesto. Agora, ao invés, o protesto vem de cima. E alguns cardeais, que se situam logo abaixo daquele que está acima, põem em dúvida o poder de Müller. O primeiro a reagir foi o cardeal Reinhard Marx, de Munique. Nenhuma misericórdia pelos divorciados em segunda união? "O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não pode pôr fim ao debate". Pouco depois, alguns luminares um pouco menores ousaram se pronunciar, como o bispo de Trier, com declarações semelhantes. Nessa perestroika da Igreja, não está totalmente claro quem é apenas um eloquente vira-casacas e quem agora diz livremente aquilo de que estava convencido há anos. O que está claro é que assim andam as coisas quando um reino está indo à ruína. O ''governo suplementar'' de Francisco Enquanto o inquisidor Müller ainda luta pela sua influência sobre o curso da Igreja, Francisco criou há muito tempo um "governo suplementar" ou, melhor, um "governíssimo". Ele é formado por diversas comissões recém-formadas. Regularmente, ele reúne oito cardeais provenientes todos os continentes, um G8 católico, apenas um pouco menos internacional do que a cúpula de chefes de governo de todo o mundo. Nesta semana, justamente, ocorre a segunda reunião. O cardeal Marx, único alemão do grupo, teve que atualizar em tempo recorde o seu rudimentar italiano. Não há nenhum tradutor simultâneo e nem mesmo um secretário ao redor da mesa com os cardeais.Os assuntos abordados são explosivos demais. O cenário tem a aparência de uma conspiração, só que o chefe também faz parte. Em algum lugar no Vaticano, há uma mesa, ao redor da qual se sentam os hóspedes e o anfitrião da casa. Nove cabeças parece que não são suficientes para governar um bilhão de católicos. O que era impensável no quartel general do governo vaticano com todos os seus dicastérios, eminências, excelências, prelados com títulos honoríficos e protonotários, aqui ocorre facilmente. A constituição absolutista do Estado da Igreja – com o papa como poder legislativo, executivo e judiciário reunidos em uma pessoa só – sempre foi considerada a encarnação da negação do progresso: um novo começo no absolutismo pode ser extremamente corroborante e simples. O arcebispo Müller – é quase desnecessário dizer – não faz parte do grupo. Enquanto o papa planeja a sua mudança, só resta a Müller o passeio ao longo da Via della Conciliazione até o Hotel Columbus. Essa rua é uma pista aberta na cidade, que leva da Praça de São Pedro até o Tibre, por 500 metros, uma imagem que ficou famosa pelas câmeras de televisão. Caminhando, Müller tenta convencer os jornalistas que confiam na sua própria visão das coisas e na sua obstinação. Em nenhum outro lugar do mundo é possível encontrar amigos e inimigos em luta pelo poder em uma organização mundial reunidos em poucos metros quadrados. É isso que torna tudo tão apaixonante para os espectadores. E tão perigoso para os combatentes. Gänswein, um servidor dividido entre dois senhores As poltronas do Palácio Apostólico ainda têm encostos e braços dourados, e as paredes exibem um damasco vermelho. Mas o homem que recebe aqui fala de uma vida que o divide em dois. Georg Gänswein leva uma vida que era inimaginável até a retirada do Papa Bento XVI, e que hoje lhe parece dilacerante. Durante o dia, ele serve o novo papa; à noite, o antigo; e são dois senhores tão diferentes que um servidor nunca conseguiria imaginar. Para ele, a retirada de Bento XVI foi como uma amputação, diz. E também em outras descrições escorre sangue, como quando Georg Gänswein descreve como a sua vida mudou desde que o seu chefe anterior se aposentou. Durante oito anos, Georg Gänswein foi o monsenhor mais famoso do Palácio Apostólico. Como secretário do papa, ele regulava pessoalmente o acesso das pessoas a Bento XVI e aos seus negócios. Admiradores e escarnecedores o chamavam de "o George Clooney do Vaticano". A combinação de traços masculinos e olhar malicioso lhe valeu uma capa da edição italiana da revista Vanity Fair. Acima de tudo, porém, Gänswein era o intendente da comitiva de Bento XVI. Joseph Ratzinger, com a ajuda de Gänswein, tinha que levar o papado a um novo florescimento intelectual e estético – justamente o oposto do igualitarismo e do relativismo. De 2005 a 2013, Gänswein deu tudo – e recebeu muito: "Ich habe acht Jahre Blut gelassen und auch Blut geleckt, manchmal". In vita et in morte: Georg Gänswein jurou fidelidade a Ratzinger na vida e na morte. Agora diz: "Eu tenho a impressão de viver em dois mundos. Tenho que ser sincero comigo mesmo: é realmente doloroso me adaptar ao novo papel". O novo papel: trata-se também de questões problemáticas. Os opositores de Georg Gänswein dizem que o próprio secretário enfraqueceu ao máximo Bento XVI, indo além das suas competências, e decidiu "segundo o pensamento do papa", sem esperar a sua aprovação formal. Que absurdo: as coisas já estavam muito caóticas no Vaticano quando ele ainda estava sendo conduzido com firmeza. Protecionismo, intrigas, lutas de poder culminaram em tal desordem a ponto de privar Bento XVI de suas últimas forças. E, com a sua retirada, ele assinalou: até mesmo um papa pode capitular. Talvez desse modo ele abriu a porta para a mudança. Pouco tempo antes de se retirar, Bento XVI promoveu o seu monsenhor Georg Gänswein a arcebispo e prefeito da Casa Pontifícia. Francisco pediu-lhe para continuar na sua função relativa ao cerimonial, o que lhe dá a possibilidade de aparecer ao lado do papa. "Se essa é a sua vontade, eu aceito em obediência", respondeu Georg Gänswein. Agora, ele ocupa duas funções, mas não tem mais uma situação estável. Nenhum título pode iludi-lo, nem consolá-lo pela perda da posição no centro do reino mundial romano-católico. A sua vida "não está mais constantemente em sintonia com a batida do seu coração". "Aquele novo" agora à frente da casa faz principalmente muitas coisas novas. Gänswein não pode gostar disso. Talvez ainda mais do que o seu chefe, o secretário era o sumo sacerdote da tradição, via nela não uma imposição formal, mas sim uma condensação de sabedoria eclesial. O fato de Francisco não querer deixar a todo o custo o hotel pelo palácio apostólico, porque quer viver "entre as pessoas" e porque o escuro corredor que leva aos quartos pontifícios lhe gera melancolia, tudo isso irritou muito Gänswein. Ele não viu só uma ruptura da tradição, mas também uma afronta ao antecessor, a todos os antecessores. Bento XVI não era um homem modesto? Ele não reivindicou o apartamento papal por egoísmo, mas só porque ele expressa a posição do Santo Padre na Igreja. Mas agora a polêmica está resolvida, diz Georg Gänswein. Às vezes, o novo papa e o ex-secretário brincam sobre os motivos psíquicos que Francisco adotou para evitar ocupar o prédio. Um pouco de inquietação, no entanto, ainda domina a relação entre os dois. "Todos os dias eu espero do novo (papa) algo diferente, e me pergunto o que haverá de diferente naquele dia", diz Georg Gänswein. O secretário se sente ligado à sua antiga promessa: ele está do lado de Bento XVI. Depois das 21 horas, Gänswein cuida dele, do correio, das coisas pendentes, está lá para aquele idoso que Gänswein continua chamando de "Santo Padre". "Há um só papa", diz Gänswein. É uma afirmação que ressoa como um chamado à ordem que ele faz a si mesmo. Invadindo a casa do novo papa Pietro Zander, o arqueólogo-chefe da "fábrica da catedral", também tem uma recordação positiva do papa emérito. Diante dos jornalistas, ele não quer expressar estimativas precisas do recente e notável aumento de visitantes nas audiências gerais na Praça de São Pedro. Mas, neste momento, as multidões são o maior problema de Zander. Os fiéis invadem a casa do novo papa! Antes, a Praça de São Pedro estava pela metade; hoje, as pessoas lotam até mesmo atrás, até a Via della Conciliazione. A rua é uma espécie de canal de escoamento para pessoas mais ou menos religiosas que querem dar uma olhada no papa. Eles chegam até a frente da casa do arcebispo Müller. Lá, lhe viram as costas. A audiência geral ocorre sempre às quartas-feiras. Os empregados de Zander impedem o acesso dos carros já na terça-feira à noite e já nem tiram as barreiras na praça. Quando Zander fala de "fundamentos abalados", ele se refere precisamente a pedras, e não a "certezas". A sua preocupação se relaciona com as massas que, depois das audiências, se reúnem em São Pedro. A basílica suporta no máximo 30 mil pessoas por dia. Já a sua respiração é uma "catástrofe para a conservação", diz Zander. Mas ele não pode fechar o portal da igreja sobre o túmulo de Pedro. Uma basílica trancada seria um sinal fatal. O que fazer então? Zander sorri. Eles chegaram a considerar a ideia de deslocar as audiências gerais para outro lugar, talvez em um estádio, mas logo desistiram da ideia. Ao invés, introduziram uma segunda audiência, aos sábados. Provavelmente, já estão rezando para que isso seja suficiente. A cúpula que ouve as bases O povo da Igreja ama Francisco, e ele retribui. Desde que decidiu questionar os seus fiéis, justamente sobre casamento, família e moral sexual, o seu zelo reformador chegou até o mais pequeno vilarejo. Um desejo do povo da Igreja promovido do lato – nunca houve um plebiscito assim. O papa quer saber, por exemplo, o que os fiéis em situações familiares difíceis esperam da Igreja, que atenção pastoral poderia ser possível para as pessoas coabitantes do mesmo sexo, se alguém se sente "ferido" pela Igreja. Diversas centenas de homens castos irão discutir sobre as respostas das perguntas de Francisco, no outono do próximo ano, em um sínodo dos bispos. Nos ordinariatos episcopais alemães, os superiores já reclamam, pois a ideia gera manchetes para o papa, certamente, mas apenas trabalho para as dioceses. Quem vai apresentar, e de que lugar da Igreja, e que opiniões? Quem deve subdividir e revisar as respostas? Como a conferência episcopal pode chegar a um resultado unitário? A maior parte das dioceses alemãs colocou na internet, sem entusiasmo, o que se exigia de Roma. O prazo para as respostas já está fixado para esta ou para a próxima semana. A Igreja Católica regulamenta até agora quando é permitido fazer sexo, com quem e com que propósito com muita precisão. Os mais altos membros da hierarquia, papas e prefeitos trabalharam muito sobre o "baixo ventre" do seu povo. Mas tudo isso não serviu para nada: as pesquisas mostram que na Alemanha 90% dos católicos vivem de modo diferente do permitido pelo Vaticano. Representantes daqueles 10% que admitem se ater às regras são convidados aos programas de entrevista como seres exóticos. Até mesmo o papa se impôs a castidade, mas claramente ele duvida que homens que vivem como célibes sejam os melhores conselheiros para todas as situações existenciais, particularmente em matéria de amor. É improvável que Francisco irá alinhar a sua doutrina de acordo com os resultados do questionário – o que esconde um potencial de decepção à la Obama. Um papa não é alguém que presta serviços, e o cristianismo não é um menu que podemos compor sozinhos. Mas a pesquisa de Francisco mostra que ele tem alta consideração pelo povo, e pouca pelo alto clero. Uma vez ele definiu a Cúria como "lepra". Nos documentos da Congregação para a Doutrina da Fé, raramente aparecem as pessoas de carne e osso. Ao invés, nas suas pregações, Francisco elogia as pessoas simples do povo. Raramente ele se esquece de citar a sua avó Rosa. Se ele fala de misericórdia, conta sobre pessoas misericordiosas que encontrou pessoalmente. Geralmente são mães. Esse homem não tem só uma carreira eclesiástica, também tem uma biografia. E não tem medo das mulheres, muito menos das jovens e bonitas. Invenção revolucionária A sua invenção mais revolucionária é um grupo de conselheiros, composto por sete leigos e um padre, que trabalha constantemente com ele. Os conselheiros distantes do clero são aqueles que devem reorganizar as finanças do Vaticano e restabelecer a credibilidade depois do escândalo Vatileaks. Falta de transparência e lutas de poder tinham provocado o escândalo que, no fim, levou à retirada do antigo papa. Documentos secretos haviam sido roubados diretamente da escrivaninha de Bento XVI. Agora é necessário tornar tudo transparente. Aqueles que começam a se ocupar com esse trabalho acabam se deparando com questões de poder: acima de tudo, decidir se a Igreja deve ser rica ou pobre, se deve receber ou dar. E também: é lícito fazer o bem com dinheiro sujo? As origens da riqueza católica, às vezes, são pouco claras. A condução dos negócios do banco vaticano não é nada santa. Fazem parte do grupo de peritos financeiros de Francisco um auditor espanhol, um especialista de seguros alemão, um administrador francês, um ex-ministro das Relações Exteriores de Singapura e uma jovem mulher: a italiana Francesca Immacolata Chaouqui, especialista em comunicação, emprestada pela empresa de consultoria empresarial Ernst & Young. O fato de que nem na hierarquia da Igreja se saiba exatamente o que Francesca está procurando nos orçamentos do Estado da Igreja e também o fato de ela ter um aspecto sedutor deram origem a intervenções depreciativas de todas as espécies na internet e na imprensa. Antes, as mulheres que se aproximavam do papa, na melhor das hipóteses, eram cozinheiras ou secretárias. Chaouqui, 30 anos, é advogada formada e tem responsabilidades diretivas no governo-sombra do papa. A sua tarefa, assim como a dos outros leigos, é esclarecer ao papa o capitalismo das suas instituições. Francesca certamente é competente nessa área. Durante a crise financeira, ela foi consultora, como especialista em comunicação da empresa de consultoria Orrick, Herrington & Sutcliffe, do banco Lehman Brothers. Tempos atrás, para fazer carreira no Vaticano, eram menos necessárias as competências e mais uma obediência cega. Agora, leigos que se qualificam pela sua competência controlam os antigos poderosos. Francisco expôs os seus projetos revolucionários ainda no conclave. Por isso foi eleito. Envenenamento? Inquietos, os seus defensores se perguntam agora: quanto tempo resta para esse papa? Francisco tem apenas um pulmão. Antes do Natal, vai completar 77 anos. Há alguns personagens nos seus inoperantes escritórios no Vaticano que esperam apenas que lhe falta de ar. Os tradicionalistas zombam dele pelo fato de que, em Lampedusa, ele transformou um barco velho em altar – mas, ao mesmo tempo, o temem. Ele criticou o catolicismo pintado de dourado. Agora, os amantes da pompa e da glória esperam nos seus nichos que chegue a sua hora. Imediatamente circularam em Roma rumores que afirmam que Francisco vive perigosamente. Ele corre muito risco, diz-se, ao se preocupar mais com grupos de esquerda do que com círculos de direita em Roma. E que ele é realmente um temerário se quiser fazer limpeza no banco vaticano. Ele será encontrado um dia envenenado na Casa Santa Marta? Ou morto no Tibre? Fala-se surpreendentemente muito sobre o possível fim não natural do papa nestes dias no Vaticano – embora em geral de forma negativa: "Eu não digo que amanhã alguém possa colocar algo no seu chá...", diz um religioso do alto escalão, para falar longamente em seguida dos inúmeros opositores que se sentiram abandonados ou postos em segundo plano. E também não irrompem paralelos com João Paulo I? Aquele pontífice não dogmático, seguindo o rígido Paulo VI, foi chamado de "o papa sorridente". João Paulo I – recém-eleito, mas sem uma presença midiática e totalmente indefeso – também tinha se proposto a fazer limpeza na Cúria e no banco vaticano, quando tudo acabou de repente. Trinta e três dias depois de assumir o cargo, o novo papa estava morto. Trinta e cinco anos depois, um novo papa com a inocência de um sonâmbulo se move através desse aparato de corte. No entanto, um "insider" do Vaticano diz: "O envenenamento não é mais necessário. Depois da retirada de Bento XVI, também se pode recomendar a retirada de um papa...". Solidariedade Francisco ainda exala a energia do "novo começo", nenhum traço de cansaço na função. No entanto, até agora, ele não conseguiu criar nada de durável. O papa instaurou um vínculo de ternura com o seu povo de Igreja, mas em tempos de impaciência tal atitude gentil poderia em breve ser suspeita de pura aparência. Em breve, não lhe bastará mais fazer perguntas. Ele terá que dar respostas, impor inovações. Chega de discriminação contra as mulheres, os homossexuais e os protestantes! Se ele não ousar nada nessa direção, um grande sentimento se reduz rapidamente a muito pouco. O papa já deu início a alguns projetos práticos. Por exemplo, ele criou um fundo de solidariedade pelas vítimas de catástrofes, que se chamará "Misericórdia". Francisco quer que a Igreja não seja o último, mas sim o primeiro refúgio para os pobres. As igrejas e os conventos devem abrir as suas portas aos refugiados, conceder a sua proteção – mesmo diante do direito de asilo europeu. E para um homem chamado Konrad Krajewski o papa inventou uma tarefa. Krajewski é o novo esmoleiro papal, um alto funcionário. O seu escritório está na sombra da Basílica de São Pedro. Os antecessores de Krajewski alocaram fundos para pessoas carentes permanecendo sentados nas suas escrivaninhas. Agora, no entanto, o polonês de 50 anos não deverá esperar dentro, porque a vida está fora, a pobreza está fora. À noite, os sem teto de Roma dormem sob a colunata recentemente restaurada que circunda a Praça de São Pedro. À noite, assim quer o papa, Krajewski gira pela cidade com um pequeno Fiat branco para ir ao encontro dos pobres e desabrigados, acompanhado por quatro guardas suíços, que falam quatro línguas. E distribui o dinheiro do papa. E como Roma é muito grande para percorrer com um único carro todas as semanas, ele agora envia mais de 100 cheques, no máximo de mil euros, para os párocos da cidade, para que eles também ajudem os pobres. "O papa quer que nós não fiquemos esperando as pessoas, mas que vamos ao seu encontro", diz Krajewski. "Ele me disse que a minha conta corrente está bem quando está vazia". Francisco quer tornar a Igreja novamente crível. A conta vazia – para o papa, esse é o seu capital. O cansaço do papa solitário Uma tontura de cabeça, um encontro cancelado, um comentário brusco sobre as escolhas do novo pontífice. Quarta-feira passada, no arco de poucas horas, soou um sinal de alerta pelo Papa Bergoglio. A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 06-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Depois da audiência geral na Praça de São Pedro – a temperatura estava fria – Francisco sentiu sua cabeça girar, e o leve mal-estar o obrigou a ir logo repousar, renunciando ao encontro com o cardeal Angelo Scola, que veio especialmente de Milão a lhe falar sobre uma futura visita à Expo 2015. Não é pouca coisa. Scola foi o principal antagonista de Bergoglio no conclave: não por motivos pessoais, naturalmente, mas como expoente de outra plataforma. Scola ainda é uma das personalidades mais renomadas entre os bispos italianos, e uma boa relação com ele é decisiva para orientar a Conferência Episcopal Italiana na linha de reforma que o papa tem em mente. Na realidade, Francisco está explorando exageradamente as suas forças. Aos 76 anos e com a responsabilidade de uma organização de mais de 1,1 bilhão de adeptos, o papa argentino não tirou um minuto de férias neste verão europeu. Ao contrário de João Paulo II, ele não se restaura com pequenas "fugas" na natureza e, ao contrário de Bento XVI, não se concede regularmente todos os dias uma hora de caminhada pelos jardins vaticanos. Aos jovens da paróquia de San Cirillo, em Roma, ele disse no domingo passado que tira apenas meia hora de repouso depois do almoço e, depois, "de novo ao trabalho, até a noite". Francisco espera muito das suas forças. Há um motivo. Bergoglio sente que não tem muito tempo à disposição. Uma dezena de anos, antes de decidir, provavelmente também ele, passar o bastão. E dez anos na história da Igreja são muito poucos. Na maré de elogios e de aplausos que o rodeia, o papa argentino está sozinho, muito solitário. Se ele se limitasse ao programa que muitos cardeais eleitores esperavam, não haveria problemas. Reorganizar o IOR e agilizar a Cúria são questões técnicas de uma realização nada difícil. Consultar os bispos mais frequentemente – como era pedido ao futuro pontífice durante as reuniões gerais antes do conclave – podia ser realizado com reuniões plenárias do Colégio Cardinalício mais frequentes e com uma ordem do dia precisa. Mas Francisco está fazendo muito mais do que muitos dos seus eleitores imaginavam. (Isso aconteceu com João XXIII). Ele quer remodelar a Cúria desde os fundamentos, reorganizar o Sínodo dos Bispos, dar forma a uma nova abordagem às temáticas sexuais, levar o clero a abandonar atitudes burocráticas e autorreferenciais, mudar o estilo do poder episcopal, inserir as mulheres em postos de governo, imprimir com uma nova comissão (anunciada nessa quinta-feira) um novo impulso à luta contra a pedofilia, protegendo as vítimas e dando indicação aos episcopados. Há uma pergunta que paira sobre o Palácio Apostólico: quem apoia Francisco? Com quais forças ele pode contar? A resposta é que um "partido" ou um "movimento" ativo entre clero e bispos pró-Francisco não existe. Não se reforma um aparato corpulento como o eclesiástico – milhares de bispos, centenas de milhares de padres e religiosos, uma rede de centros de poder grandes e pequenos – sem uma forte fileira de seguidores fiéis e comprometidos. Na Cúria, uma equipe bergogliana ainda não existe. O novo secretário de Estado, Dom Parolin, é o homem certo (também pela sua forte marca sacerdotal) para trabalhar com Bergoglio, mas a maioria dos cargos curiais são provisórios. Até agora, não se vê nos dicastérios curiais e no episcopado mundial uma patrulha compacta de cardeais, bispos e padres prontos para lutar pelas suas reformas como podiam ser os defensores da reforma gregoriana na Idade Média ou da reviravolta do Concílio de Trento. Os episcopados nacionais estão inertes. Muitos assistem passivamente às externalizações de Francisco. Muitos conservadores esperam em silêncio um passo em falso seu. Nas grandes organizações, o aparato sabe que é feito de borracha. Nesse clima, as declarações do secretário de Ratzinger, Dom Gänswein, ao semanário alemão Zeit, espalharam inquietação. A revista, embora não entre aspas, escreveu que, para o braço-direito de Bento XVI, a decisão de Francisco de não morar nos apartamentos papais foi sentida como uma "afronta". Além disso, Gänswein, embora reconhecendo que o papa é apenas um, exclama, desconsolado, textualmente: "A cada dia, eu espero de novo o que será diferente (do que antes)". Mais do que um encorajamento, uma rejeição ao novo curso. Francisco está sozinho, mesmo que o coração dos fiéis bata por ele. Segunda, 09 de dezembro de 2013 ''A reforma da Igreja terá um alto custo. Preparemo-nos!''. Artigo de Enzo Bianchi "Hoje, está novamente em curso, para a Igreja, uma primavera, inaugurada pelo Papa Francisco. O entusiasmo é muito: certamente eu não quero apagá-lo, mas, mais uma vez, sinto o dever de alertar a mim mesmo e os meus irmãos e irmãs na fé. Estamos dispostos a beber o cálice que Jesus bebeu (cf. Mc 10, 38; Mt 20, 22)?", pergunta o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado na revista mensal italiana Jesus, dezembro de 2013. Segundo ele, "toda reforma da Igreja, se for evangélica, tem um alto custo: para todos e também para o sucessor de Pedro, que não poderá esperar, ao menos de dentro da Igreja, dos seus, da sua casa, um fácil reconhecimento e uma fácil obediência. Será mais fácil que "publicanos e prostitutas" (cf. Mt 21, 2; Lc 7, 34, 15, 1), "samaritanos e estrangeiros" (cf. Lc 17, 38; Jo 4, 39-40) o escutem – como aconteceu com João Batista e Jesus" A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto. Eu não posso esquecer que uma das minhas primeiras intervenções públicas, com uma certa ressonância, ocorreu durante um congresso organizado pelo padre Balducci e pelo padre Turoldo em Florença, no primeiro pós-Concílio, e se tornou depois um artigo publicado na revista Rocca. Era a temporada do entusiasmo, devido à primavera inaugurada pelo Papa João XXIII e pelo Vaticano II: temporada da "vitória" de um novo modo de viver a Igreja e de edificá-la por parte de todos os cristãos; temporada de "reforma" marcada por uma atmosfera de fervor e de impaciência; temporada em que eu senti, porém, muita presunção acerca dos desenvolvimentos possíveis daquela extraordinária reviravolta. Surpreendendo muito os amigos com os quais se dialogava intensamente sobre reforma litúrgica, à época ainda em estudo, sobre vida eclesial em estado de conversão para uma conformidade mais profunda para a Igreja como o Senhor a quis e de diálogo na mansidão e na pobreza dos meios com a humanidade contemporânea, eu adverti contra um fácil otimismo. Se realmente tivesse sido tomado o caminho da reforma evangélica da Igreja e do seu ordenamento (papado, episcopado, laicato) – eu disse –, teríamos ido ao encontro de um tempo em que todo triunfalismo seria marcado por fadiga, por sofrimento e até por dilacerações porque há uma necessitas passionis da Igreja que se deve à necessitas passionis vivida pelo seu Senhor Jesus Cristo. Aconteceria para a Igreja o que aconteceu com Jesus: as potências postas contra o muro pela "lógica da cruz" (1Cor 1, 18) se desencadeariam e haveria também um "choque" com o mundo, já que, na vida eclesial, muitos teriam que sofrer (sim, é preciso dizer, penar!). Se de fato a conversão pessoal requer renúncia, fadiga, separações e, portanto, sofrimento, mais ainda a conversão das comunidades e das Igrejas. Acima de tudo, se viveria uma dupla tentação. Ou render-se ao mundo, mundanizando-se, não mostrando mais a diferença cristã, esvaziando a cruz, diluindo o Evangelho, curvando-se às exigências do mundo; ou enfrentar o mundo com intransigência e munir-se das suas próprias armas: presença gritada, vontade de contar e de ser contado, atitude de grupo de pressão, assunção de tarefas não atribuídas pelo Senhor. Em todo o caso, continuava sendo mais difícil o caminho de "uma Igreja pobre e de pobres", de uma Igreja que contasse apenas com o Senhor e não com os "poderosos deste mundo" (1Cor 2, 6.8; cf. Mt. 20, 25), de uma Igreja dialogante com os homens na mansidão e na liberdade, sem medo e sem a obsessão de ter que se defender e viver como fortaleza sitiada. As Igrejas são diferentes, e é possível dizer que todas essas escolhas foram feitas, ora aqui, ora acolá, e de forma diferente nas diversas Igrejas. Sabemos bem o que a Igreja italiana escolheu, esquecendo que a sua liberdade não pode ser vivida como as outras liberdades de que o mundo fala, porque a Igreja nunca é tão livre como quando o mundo a contradiz e a humilha. Sim, para a Igreja, há uma paz que é mais maléfica do que toda guerra, "pax gravior omni bello"! Hoje, está novamente em curso, para a Igreja, uma primavera, inaugurada pelo Papa Francisco. O entusiasmo é muito: certamente eu não quero apagá-lo, mas, mais uma vez, sinto o dever de alertar a mim mesmo e os meus irmãos e irmãs na fé. Estamos dispostos a beber o cálice que Jesus bebeu (cf. Mc 10, 38; Mt 20, 22)? Toda reforma da Igreja, se for evangélica, tem um alto custo: para todos e também para o sucessor de Pedro, que não poderá esperar, ao menos de dentro da Igreja, dos seus, da sua casa, um fácil reconhecimento e uma fácil obediência. Será mais fácil que "publicanos e prostitutas" (cf. Mt 21, 2; Lc 7, 34, 15, 1), "samaritanos e estrangeiros" (cf. Lc 17, 38; Jo 4, 39-40) o escutem – como aconteceu com João Batista e Jesus. Essas hipóteses perturbam, e não queremos ouvi-las. Porém, se aconteceu com Jesus, com o Senhor, há talvez um discípulo que seja maior do que o seu mestre (cf. Mt 10, 24; Lc 6, 40; Jo 15, 20)? Ou um sucessor de Pedro que não conheça a paixão e a tentação de fugir dela, renegando o Senhor e o Evangelho? Agora, mais do que nunca, é hora de rezar por Pedro, não por uma glória mundana que nunca pode ser sua, mas porque, consolado pelo seu Senhor, ele permaneça firme e possa confirmar a nós, seus irmãos (cf. Lc 22, 31-32), no árduo caminho rumo ao Reino. O papado de Francisco não é apenas questão de estilo, mas um novo começo'' O teólogo e padre alemão Wolfgang Beinert, ex-professor da Universidade de Regensburg, fala sobre o "programa de governo" do papa, sobre as ideias realistas e irrealistas de reforma e sobre o debate renovado sobre os divorciados em segunda união na Alemanha. A entrevista é de Michael Weiss, publicada no sítio Religion.orf.at, 04-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis a entrevista. Há poucos dias, o papa publicou o seu "programa de governo", a Evangelii gaudium. Como o senhor avalia esse documento? Acima de tudo, com grande entusiasmo, pois nele são ditas coisas pelas quais há apenas 20 anos se seria chamado a responder na Congregação para a Doutrina da Fé. Eu vejo um aspecto negativo, porém, no fato de que é um documento extremamente longo, em que foram enfiadas muitas coisas não relacionadas entre si. Por outro lado, o documento tem uma linguagem cheia de frescor, viva e – ousaria dizer – jovem. O cardeal Reinhard Marx disse que é raro que, ao ler um documento papal, também seja preciso rir, mas aqui era preciso e se podia – e ele tem razão. Por quais coisas há 20 anos se seria chamado à Congregação para a Doutrina da Fé? Por exemplo, a relativização do papado que ali é empreendida. Diz-se que o papa não tem a obrigação de dizer alguma coisa sobre tudo e que também pode dizer, às vezes, coisas que podem ser discutidas. Ou a promessa de realizar realmente a colegialidade dos bispos. É algo que já foi decretado há 50 anos pelo Concílio, mas muito pouco derivou daí – e isso também está escrito no documento. Francisco também se expressou claramente no documento contra o sacerdócio feminino. Foi uma surpresa para o senhor? Não. Mas o que isso significa precisamente? Recentemente, a esse respeito, ele disse que as portas estão fechadas, e agora, na Evangelii gaudium, escreveu que "não está em discussão". João Paulo II, no entanto, dissera que isso estava definitivamente excluído. São duas categorias diferentes de palavras que foram escolhidas. Se algo não está certo em um sentido definitivo, significa que justamente não está certo, e então devemos parar de falar sobre isso. Mas se eu disser que não está em discussão, eu não estou dizendo como as coisas serão amanhã. E as portas fechadas também podem ser reabertas. Que reformas concretas o senhor considera que podem ser realisticamente implementadas com Francisco com relação ao papel da mulher? Diaconisas ou mesmo cardinalessas, como um abaixo-assinado suíço solicitou recentemente? Isso não seria um problema, de fato. Entre os cardeais do século XIX, seguramente havia leigos. O cardinalato é um título pessoal que é atribuído a uma pessoa específica, independentemente do seu status, consagrada ou não. É algo realista com esse papa? Não devemos colocar obstáculos a ninguém. Eu não teria nenhum problema com isso. Embora, naturalmente, não basta um título. Mas a liderança de uma Congregação [vaticana], por exemplo, como cardinalessa ou não, eu poderia imaginar. Não só como telefonista do Vaticano. E diaconisas? Pessoalmente, não acho grandes coisas. Nesse caso, a mulher voltaria a receber apenas o menor e mais baixo grau de consagração, que hoje ninguém sabe precisamente que significado pode ter. Portanto, se é preciso haver consagração, que sejam todos os graus, senão nada. É preciso ser consequente nisso. Sobre Francisco, as opiniões divergem um pouco. Enquanto alguns acreditam que haverá grandes mudanças em nível dogmático, outros são da opinião de que ele está em continuidade com os seus antecessores e que só mudou o estilo. O que o senhor acha? Eu acredito que não é apenas uma questão de estilo, mas que realmente houve um novo começo. Depois da Evangelii gaudium, pode-se dizer isso com certeza. Nesse documento, não se dizem coisas muito diferentes das que foram ditas até agora, mas agora as coisas foram escritas. Com grande prudência, ousaria dizer até dizer que, com Bento XVI, encerrou-se uma era papal, e agora é possível começar uma era completamente nova. Na sua opinião, quando começou a era que o senhor considera como encerrada? Não se pode estabelecer isso com uma data exata. Fundamentalmente, começa com a Reforma, quando a Igreja começa a ter medo. E se torna absolutamente claro com o século XVII e depois com o Iluminismo. Naquele período, a Igreja é sempre contra apenas. Ela reage apenas, mas não age mais. E agora o papa toma a iniciativa e diz: devemos mudar certas coisas. Se realmente alguma coisa vai mudar, veremos, mas ao menos ele tem essa intenção e também a estabeleceu incontestavelmente. Portanto, o senhor considera que o que está acontecendo agora é uma revolução ainda maior do que o Concílio Vaticano II? O Concílio Vaticano II, certamente, deu o início, mas foi mais uma andorinha, e uma andorinha só não faz verão. Além disso, também foi retraído muitas vezes, muito fortemente, por exemplo com Bento XVI... E agora claramente há uma nova abertura, que vai além do que o Concílio fez. Por exemplo, se o papa escreve que as as declarações papais podem ser criticadas e que não são necessariamente decisões de última instância, isso, na realidade, é uma revogação do Concílio Vaticano I, se o entendermos em sentido estrito. O que Francisco faz é a continuação da implementação do Concílio Vaticano II. O Concílio lançou os fundamentos com os seus documentos, mas que não foram realmente implementados. Como o senhor considera o modo pelo qual a mídia se comporta com o Papa Francisco? Como a ruptura com Bento XVI parece tão forte, ele é olhado, talvez, de uma forma totalmente acrítica? A imagem que transparece certamente já é muito eufórica. A esse respeito, eu sou um pouco mais atento, porque o papa, no fundo, não é apenas uma pessoa individual que tem todos os fios nas suas mãos, mas ele depende do trabalho dos seus colaboradores, assim como todo chefe. E eu tenho as minhas dúvidas de que todos colaboram com entusiasmo. Na Alemanha, há algumas semanas, discute-se novamente o problema dos divorciados em segunda união na Igreja Católica. Que mudanças o senhor considera realistas? Eu sou da opinião de que se desencadeou uma confusão que não se consegue mais controlar. Vê-se isso, por exemplo, pelo fato de que um cardeal [Reinhard Marx] disse ao prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que não se pode decidir algo desse modo. Há não muito tempo, tal coisa teria sido vista como uma monstruosidade. Portanto, alguma coisa vai acontecer. O senhor conhece o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Ludwig Müller, desde os tempos em que ele era bispo de Regensburg. O senhor acha que ele pensa que deve ser o guardião último da tradição? Suponho que sim. Eu o conheço desde a sua juventude e acredito que ele simplesmente não consegue entender isso. Ele sempre teve uma opinião forte, e o seu orientador de doutorado, o cardeal Lehmann, uma vez, na minha frente, o definiu como "insensível aos conselhos". Provavelmente, é terrivelmente difícil para ele admitir que opiniões diferentes também são católicas. O Papa Francisco é comunista? A opinião é de Robert Ellsberg, editor da Orbis Books, do movimento missionário católico Maryknoll. O artigo foi publicado no sítio da CNN, 03-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto. A personalidade do rádio Rush Limbaugh se declarou perplexo com as recentes declarações papais "sobre os males absolutos do capitalismo". Em seu comentário, intitulado It's Sad How Wrong Pope Francisco Is (Unless It's a Deliberate Mistranslation by Leftists) [É muito triste como o Papa Francisco está errado (a menos que seja um erro de tradução deliberado por esquerdistas)], Limbaugh disse que as observações remontam a "um puro marxismo apenas saindo da boca do papa". De fato, isso seria realmente notável, se fosse verdade. E é? Limbaugh se refere à nova exortação apostólica Evangelii Gaudium, ou "A alegria do Evangelho", na qual o Papa Francisco expõe a sua visão sobre a proclamação do evangelho por parte da Igreja. Para os católicos, entusiasmados com o estilo descuidado do papa, o documento oferece uma refrescante partida do tom tradicional: "Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa", lamenta o papa. "Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura". Ele denuncia uma espécie de "mundanismo espiritual", que "se esconde por detrás de aparências de religiosidade", adverte contra os "caras de vinagre" que substituiriam o amor de Jesus Cristo por um amor da Igreja, e rejeita uma derrotista "psicologia do túmulo", que transformaria os cristãos em "múmias de museu". E, no entanto, a imprensa certamente se focou naquelas várias páginas – em um documento de 50 mil palavras – que oferecem uma crítica vívida do sistema econômico global, que o Papa Francisco define como uma "economia da exclusão e da desigualdade". Aqui, critica Limbaugh, "o papa já foi muito além do catolicismo, e isso é pura política". Mais "entristecido" do que indignado, Limbaugh afirma que "é muito claro que o papa não sabe do que está falando quando se trata de capitalismo e socialismo, e assim por diante". Na verdade, as palavras "capitalismo" e "socialismo" não aparecem no documento. Mas não é difícil discernir o sentido do papa: "Assim como o mandamento 'não matar' põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer 'não a uma economia da exclusão e da desigualdade social'. Esta economia mata". Como primeiro papa do hemisfério Sul, como alguém que experimentou o colapso financeiro da economia argentina, como um bispo que encorajou seus padres a trabalharem nas favelas, o Papa Francisco conhece a economia mundial a partir da perspectiva dos que estão embaixo. Condenando a idolatria do dinheiro, ele se posiciona firmemente contra um "mercado divinizado", em que as massas de seres humanos tornam-se espectadores impotentes, se não "sobras" descartáveis. Limbaugh, que admite não ser católico, embora diga que foi "tentado várias vezes a buscar isso", no entanto, afirma: "Conheço o suficiente para saber que seria impensável para um papa acreditar ou dizer isso há apenas alguns anos". Mas pouco distingue o Papa Francisco das declarações proféticas dos seus antecessores. O que ele oferece não é "marxismo", como diz Limbaugh, mas sim a sólida doutrina social católica que remonta há mais de um século. Tanto o Papa João Paulo II quanto Bento XVI foram explícitos nas suas advertências contra o capitalismo liberal e a ditadura do mercado, produzindo encíclicas que, pela sua ênfase na justiça social e na "opção pelos pobres", certamente se qualificariam para Rush Limbaugh como o próprio elixir do "marxismo". No entanto, o Papa Francisco pode ter tocado uma ferida específica. No parágrafo mais citado do seu documento, ele observa: "Neste contexto, alguns ainda defendem as teorias da 'recaída favorável' [trickle down] que pressupõem que todo crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Essa opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e os mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam esperando". Aqui, você pode dizer que ele está indo para o lado pessoal, dando um passo para além dos apelos familiares pelos pobres para confrontar um artigo central da fé entre os beneficiários de elite da nossa economia: a noção de que tudo o que beneficia os mais ricos – cortes de impostos ou desregulamentação financeira – inevitavelmente irá beneficiar os de baixo. Independentemente se isso é confirmado pelos fatos, o Papa Francisco ataca os efeitos corrosivos de tal ideologia sobre a nossa capacidade de compaixão e de preocupação pelos outros. "A cultura do bem-estar nos anestesia, a ponto de perdermos a calma se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas essas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma". Limbaugh acha essa declaração em particular tão desconcertante que ele a repete três vezes. Os comentaristas de negócios pode se levantar em defesa do mercado. Mas o Papa Francisco não está interessado principalmente em um debate sobre a "criação de riqueza". Ele se posiciona em uma tradição que remonta aos profetas de Israel, cujo decisivo teste moral era o bem-estar dos últimos e mais vulneráveis membros da sociedade. O Papa Francisco assumiu para si a tarefa de falar por aqueles que não têm voz, de despertar a consciência dos cristãos e de contribuir por uma cultura da solidariedade. Ele anseia por uma "Igreja pobre para os pobres". Talvez o que o distingue dos seus antecessores é simplesmente que ele identificou isso como um foco central e evidentemente tem a intenção de manter a Igreja responsável por essa missão. Claro que ninguém se preocupa com um papa que abraça os doentes e ama os pobres. Mas quando ele se atreve a refletir sobre as causas morais e estruturais da pobreza, essa é outra questão. Como Dom Hélder Câmara, outro arcebispo profético da América Latina, observou notoriamente, "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista". Certas coisas nunca mudam. Papa Francisco é socialista? O tópico econômico da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, publicada no dia 25 de novembro, causou controvérsias. A reportagem é de Laurence Desjoyaux e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 29-11-2013. A tradução é de André Langer. “Desta vez, é certo: o Papa Francisco é socialista”, diz a manchete triunfalista do sítio francês de informação Rue 89, num artigo consagrado à Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, primeiro texto integralmente escrito por Francisco. Em se acreditando no sítio, “depois da Exortação Apostólica publicada pelo Vaticano, podemos afirmar sem medo que o Papa Francisco é ferozmente antiliberal e até mesmo... socialista”. Precisando: “O Papa Francisco ainda não é marxista, mesmo que tenha declarado pouco tempo atrás que os homens eram escravos que terão que “se libertar das estruturas econômicas e sociais que nos reduzem à escravidão”. Entre outras passagens da Exortação Apostólica adiantadas pelo Rue 89 encontra-se a seguinte: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata”. Não ao dinheiro que governa em vez de servir A revista americana The Atlantic avança mais na análise, propondo uma analogia entre o pensamento do Papa Francisco e do economista húngaro Karl Polanyi, crítico da economia do mercado auto-regulado. “Karl Polanyi é conhecido por seu livro A Grande Transformação, e em particular por uma ideia explicada nesse livro, lembra Heather Horn: a distinção entre uma ‘economia que está incorporada nas relações sociais’ e ‘relações sociais que estão incorporadas no sistema econômico’”. É o que a jornalista resume numa frase: “A economia deve servir à sociedade e não o contrário”. Para ela, é nesta linha que se inscreve o Papa Francisco. “O Papa Francisco, na sua exortação, notavelmente não pede uma completa revisão da economia – pondera ela. Ele não fala de revolução, e certamente não há nenhum discurso marxista sobre inexoráveis forças históricas. Ao contrário, Francisco denuncia, especificamente, o domínio absoluto do mercado sobre os seres humanos. Ele não denuncia a existência do mercado, mas a sua dominação”. Denunciando a primazia do mercado, do consumo e do dinheiro sobre o ser humano, o Papa não tem efetivamente papas na língua: “Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. [...] O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. [...] Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo. [...] Não ao dinheiro que governa em vez de servir”. Dito com outras palavras: a crise financeira se dá não somente por uma falta de regulação – dizer isso não é propriamente uma novidade –, mas também e, sobretudo, por ter subtraído o homem do centro da atividade econômica. No que diz respeito às soluções para remediar esta crise, The Atlantic persegue o paralelo entre Francisco e Karl Polanyi: “Polanyi apostava num socialismo democrático, desde que os governos trabalhassem juntos internacionalmente”, explica Heather Horn. “E você sabe o quê? Isso se aproxima muito daquilo que o papa também propõe. Ele não acha que isso possa ser resolvido com a caridade pessoal”. Para fundamentar suas ideias, ela cita a Exortação Apostólica: “Temos de nos convencer que a caridade é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos. (Francisco cita aqui a Encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI, ndlr) [...] Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar econômico a todos os países e não apenas a alguns”. O Papa entende de economia? Mas, o que pensam os defensores do liberalismo sobre esta visão de um Francisco “social-polanyiano”? “Eu fico poli dizendo que a comparação não é das mais inteligentes, tanto mais que ela subentende que aqueles que tomam o partido dos pobres são, de fato, socialistas. Eu diria, por outro lado, que muitos cometem um erro acreditando que essas declarações supõem uma suposta revolução dentro da Igreja”, assegura o economista liberal Philippe Chalmin ao reagir, pelo sítio Atlantico, ao artigo do Rue 89. Para ele, as palavras do Papa são um clássico do gênero, sem grande envergadura: “Diria que fazem parte de uma postura, no final das contas, muito tradicional da Igreja contra as finanças, mas que não é, na minha opinião, a mais esclarecida se olharmos a Doutrina Social da Igreja. Nós estamos aqui exatamente no domínio da exortação, cujas consequências práticas permanecerão relativamente limitadas”, explica. E mais adiante diz: “Alguns dirão que eu sou um liberal horroroso, mas penso, sem tirar do Papa o direito de fazer tais declarações, que estas críticas necessitarão de um conhecimento bem mais aprofundado sobre um fenômeno complexo”. O Papa é competente em economia? Esta é a pergunta que fazem no outro lado do Atlântico outros economistas liberais que se aplicam a desmontar ponto por ponto a crítica da economia de mercado. Para o mais virulento deles, Tim Worstall, colaborador da revista econômica americana Forbes, que se descreve, por outro lado, como “um bom cavalheiro católico bem educado pelos beneditinos”, o Papa “não compreendeu o mundo no qual vivemos”. “As desigualdades diminuem à medida que as pessoas encontram sociedades fundadas sobre a economia de mercado, a pobreza diminuiu nos últimos 30 anos no ritmo mais rápido que a espécie humana já conheceu. Tudo isto aconteceu porque bilhões de pessoas foram libertadas das exigências das versões mais bizarras do coletivismo e foram capazes de encontrar a melhor máquina para produzir riqueza jamais criada, um certo grau de livre mercado”. Neste mesmo sentido, descontada a condescendência, Samuel Gregg, da National Review americana, estima que os predicados sobre os quais o Papa funda sua crítica não são justificados. Para ele, não há nenhum país do mundo no qual o mercado seja absolutamente autônomo, e as regras e sistemas de regulação aplicados à economia já são numerosos. Ouvir a mensagem Este pleito em incompetência é verdadeiro? Michael Sin Winters, do National Catholic Reporter lembra: “O Papa Francisco não é um economista, mas um pastor. (...) Ele enfatiza o perigo para a fé do libertarianismo e do neoliberalismo de mercado. Esses sistemas econômicos não apenas fracassaram na sua tentativa de realizar o bem comum, mas também tornaram as pessoas escravas e impediram sua plena realização exatamente porque não deixam lugar para Deus”. Heidi Moore, do jornal The Guardian, de esquerda, estima que “o Papa Francisco compreende melhor a economia do que a maioria dos políticos”, e que “está na vanguarda do movimento Occupy Wal-Street [movimento de contestação pacífica americano que denunciou as derivas do capitalismo financeiro, ndlr]. “O ponto crucial, que o Papa Francisco perfeitamente identificou é que as desigualdades sociais são o maior desafio econômico do nosso tempo, não apenas para os pobres, mas para todo o mundo (...). As desigualdades de rendas são um elemento determinante para a retomada econômica. É também o problema que vai estar no centro das eleições americanas de 2014 [para o Senado e a Câmara dos Deputados, ndlr]”. Para ela “a visão do Papa sobre ‘a economia da exclusão e das desigualdades’ vai decepcionar aqueles que se consideram capitalistas liberais, mas que fariam bem em ouvir sua mensagem. (...) É hora de evoluir na nossa abordagem sobre o capitalismo. Não se trata de se livrar do capitalismo, ou de cair na ojeriza ao dinheiro ou ao lucro; trata-se de buscar o lucro de uma maneira ética e de rejeitar o predicado segundo o qual a exploração está no centro do lucro”. Pascal-Emmanuel Gobry, empresário e católico francês que comenta regularmente a conjuntura econômica, vai na mesma direção. Ele, que se descreve como um católico liberal (“pro free-market”), avalia, ao final de uma reflexão sobre a posição da Igreja e dos católicos sobre a crise financeira, que “há (na Igreja) lugar para o discernimento e o debate. Mas penso que, como católicos, somos convocados a levar a mensagem do Papa a sério, humildemente, a nos deixar questionar e a integrar essa mensagem na nossa maneira de pensar, sob a conduta do Espírito Santo”. Resta saber que outra forma de capitalismo ou qual outro modelo econômico inventar. Noticias do papa. 29 nov a 7 dez 13

Nenhum comentário:

Postar um comentário