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quinta-feira, 10 de maio de 2012

Análise de conjuntura eclesial – Assembleia da CNBB - 2012 – Aparecida-SP – 18/04/12

09.05.12 - Mundo
 
Frei Luiz Carlos Susin
Secretário Executivo do Fórum
Adital
A Igreja a cinquenta anos da abertura do Concílio Vaticano II
Introdução
a)A atualidade da análise de conjuntura. As costumeiras análises de conjuntura são parte de um método de conhecimento em contexto de um paradigma que sublinha a consciência histórica, crítica e forte para o discernimento. Este paradigma adquiriu grande força na Igreja em torno do Concílio Vaticano II, mas agora está debilitado por diversas razões: seja pela natural fadiga do método, seja pela entrada da pós-modernidade em nosso atual contexto cultural, que facilita mais o fundamentalismo sem consciência histórica e crítica. Além disso, a exacerbação da subjetividade em questões de valores e avaliações provoca fragmentação de análises. Finalmente, a impossibilidade de neutralidade e os interesses diversos guiam os juízos de valor para direções diferentes. Evidentemente a Igreja tem contexto e interesse explicitamente pastoral e evangelizador, mas também em pastoral há contextos e interesses diversos. A leitura da realidade –em nosso caso, eclesial – nunca é neutra ou totalmente objetiva. Por isso esta leitura é apenas uma introdução para um debate que pode dar conta de forma mais adequada de nossa complexa realidade eclesial.
b)Globalização e catolicidade. Pode-se constatar um paralelismo entre a globalização e a catolicidade. A globalização derruba as fronteiras nacionais, seja negativamente por uma forma neoliberal devastadora de todo tipo de fronteiras, seja positivamente pela percepção, facilitada pela cultura de comunicação, de que somos "uma grande família humana”. No estado atual da Igreja, como das religiões e dos povos há uma percepção crescente de que estamos também todos juntos numa "grande família”, todos no mesmo barco, portanto um crescimento de "catolicidade”.Por paradoxal que pareça, a globalização do cristianismo e da catolicidade vem acompanhada de uma "desterritorizalização” do catolicismo e, mais amplamente, do cristianismo. Por exemplo, uma superação de "países católicos” através da entrada da secularidade ou laicidade do Estado e da neutralidade do espaço público em que diferentes formas de religião tem liberdade de se expressar. Por um lado, é como se a dimensão de catolicidade desbordasse as paredes da Igreja denominada "Católica”. E, por outro lado, internamente à Igreja Católica, se redesenham as tensões quase tão antigas como sua história entre um governo centralizado e a vida das Igrejas locais e regionais com sua diversidade de culturas, sensibilidades, línguas, etc., diversidade que compõe a catolicidade e, hoje, também a globalização. Em consequência, é mais difícil distinguir, em nossos dias, os níveis globais, nacionais e locais, tal é a comunicação e a interdependência intensificadas pela globalização. Por isso, nesta análise não faremos propriamente distinções, mas interrelações dos planos.
1.A Igreja a cinquenta anos do Concílio Vaticano II. A pluralidade de interpretações
O aniversário de meio século do início do Concílio veio precedido de um conflito de interpretação que teve seu foco na Itália, e o próprio Bento XVI tomou a palavra inclusive como um dos peritos do Concílio. Mas o conflito de interpretações, como em ondas, chegou até nós e as posições vêm acompanhadas pelos interesses e preocupações que tencionaram o pós-concílio. Acorre-se ao Concílio da mesma forma com que se acorre ao Novo Testamento para legitimar ou fundamentar reclamos atuais. Teria se abusado na compreensão e abertura conciliar? Ou se teria estancado ou inclusive boicotado o dinamismo renovador do Concílio? O conflito polarizado ganhou títulos: a hermenêutica da ruptura e a hermenêutica da continuidade. Sobre isso, convêm três palavras:
i. A ruptura cultural e a queda de paradigma. É claramente equivocado, como fazem os tradicionalistas radicais, acusar o Concílio de provocar ruptura com a tradição da Igreja. O Concílio não é a causa, mas a busca de resposta às rupturas e, mais ainda, ao desmoronamento de um paradigma cultural em que aconteceu a dissociação entre fé e cultura, que Paulo VI colocou em relevo como algo dramático na Evangelii Nuntiandi - e que foi vivido e sentido pela grande maioria dos bispos aqui presentes. O Concílio nos ajudou a sairmos do gueto cultural já insustentável, foi ponte e não ruptura.
A década de sessenta, de fato, testemunhou uma queda de paradigma também na totalidade da vida eclesial: ficamos órfãos de livros para rezar, sem cantos para cantar, sem livros para estudar, sem roupa adequada para vestir, sem linguagem adequada para nossas homilias, sem referências de autoridade canônica estável para obedecer. Como em toda queda de paradigma, que não se dá por partes, mas em sua totalidade, foi necessário ser criativo até para sobreviver eclesialmente. Isso foi vivido no marco da queda de um paradigma mais amplo e dramático da cultura moderna para a pós-moderna, cujo simbolismo é o ano de 1968 e os que se seguiram.
Quando cai um paradigma, como analisam os especialistas, tudo volta a zero, e todos necessitamos aprender novamente, precisamos ser novamente alfabetizados. (Basta o exemplo da passagem das máquinas para a informática: os pais precisam reaprender ao lado dos filhos). A geração pós-conciliar, da qual faço parte, lutou desde jovem ao descampado na esperança de uma primavera. E, como afirmou o grande observador da Igreja Católica Antônio Gramsci, as crises se produzem quando o velho mundo demora a desaparecer e o mundo novo demora a nascer. Neste claro-escuro, acrescentava ele, monstros podem aparecer. Voltar ao paradigma anterior para se proteger de ameaças e sombras é inviável e patético. Atualmente, com o agravamento da crise ambiental, monstros do passado recente se tornam menores e monstros ainda maiores nos rondam.
ii. "Ruptura”, palavra non grata? Ela foi cunhada na área da teoria do conhecimento como "ruptura epistemológica”, significando que contextos novos não podem ser conhecidos por meio de categorias de conhecimento tradicionais, e somente uma ruptura epistemológica prepara uma nova compreensão com uma epistemologia nova. Nesse sentido, ruptura não é uma negação, mas uma colocação em perspectiva histórica. Por exemplo, uma liturgia barroca ou uma igreja barroca fazem parte do tesouro histórico da Igreja, e paramentos barrocos tecidos em fios dourados podem ser apreciados em nossos museus para compreendermos uma época de nossa história. Mas insistir numa missa barroca é ir vivo para o museu. Assim também certas categorias de linguagem, certas leis canônicas que fizeram história, etc.
Mas como a palavra "ruptura” ganhou um sentido diabólico em alguns segmentos da Igreja, talvez seja mais sábio não utilizar a palavra. A palavra adequada é "renovação”, como enfatizou Bento XVI. Segundo ele, trata-se da "reforma na continuidade do mesmo sujeito Igreja”. Os que utilizam a hermenêutica da continuidade dão ênfase à continuidade mais do que à reforma. Mas a palavra chave para entender um Concílio que quer introduzir uma reforma é, de fato, "renovação”, pois esta é a história do cristianismo desde o evangelho: novidade, e, portanto, renovação. Importa mais o futuro do que o passado, e a memória só tem sentido enquanto reforça a esperança.
iii. A nova geração "não conciliar”. Tanto no clero como entre os católicos que estão inseridos em movimentos e organismos eclesiais, a cinquenta anos do começo do Concílio, temos uma geração naturalmente afastada da experiência do Concílio e do seu contexto. É uma geração que, em caso positivo, escuta ou estuda um acontecimento do passado. Que importância conseguem dar à recepção do Concílio, por exemplo, no Pacto da Catacumba ou em Medellín? Há uma dificuldade que agrava a consciência da relevância do Concílio e da sua recepção, já mencionada na introdução: a menor importância que se dá, hoje, na cultura, à consciência histórica e crítica. Quando, por exemplo, um grupo de jovens se organiza para reivindicar uma liturgia anterior ao Concílio, fazendo a afirmação equivocada de que se batem pela liturgia "que sempre foi e sempre será!”, estamos diante de um conflito por falta de interesse por informações de ordem histórica.
A formação, tanto inicial como permanente, e tanto do clero jovem e seminaristas como dos católicos engajados em todo tipo de movimentos será absolutamente importante, nesse caso. Podemos entender aqui a insistência de Bento XVI no conhecimento da doutrina, na catequese. Hoje não se pode estudar dogma, liturgia, direito, ética, etc., sem a sua necessária dimensão histórica e seus contextos culturais. Sem história e sem contexto, a tendência é se tornar absolutista. Absoluto é só Deus, e a verdade absoluta se mantém na reserva escatológica, quando veremos Deus e todas as coisas como são. A historicidade ajuda a manter a humildade do caminho e a evitar o absolutismo, próximo das ideologias totalitárias e violentas. No entanto, os métodos histórico-críticos se mostraram também limitados, sobretudo por sua capacidade desconstrutiva mas nem sempre reconstrutiva. Por isso pode ser precioso, para a retomada do Concílio, o que Bento XVI advoga para a interpretação bíblica: a hermenêutica da fé. Que, em nossa experiência, pode ser comparável à Leitura Orante ou Palavra-Vida, a que pretendo voltar no item seguinte. De qualquer forma, a imobilidade de quem não ousa renovação revela falta de fé.
2.A Palavra de Deus como "volta às fontes” e inspiração criativa (DV).
A Dei Verbum, atualizada na Verbum Domini, significa um dos veios mais preciosos do Concílio, a melhor forma de realizar a volta às fontes e às raízes, ou, como diz a instrução pós-sinodal, ao "coração” da vida cristã. O tsunami do método histórico crítico foi integrado de forma equilibrada entre nós pelo método Palavra-Vida, agora Leitura Orante. Os passos do método, com espiritualidade e confrontação dos contextos atual e bíblico, e finalizando com um engajamento prático, além de ser uma leitura comunitária, é uma hermenêutica de fé viva e operante, compartilhada comunitariamente e criadora de comunidade em torno da Palavra. A Leitura Orante, de fato, é a nossa melhor commodityde exportação, nossa obra mais genuína após o Concílio como oferta para as demais Igrejas de outras regiões do planeta!
Além da fonte bíblica, retomamos as águas do comentário patrístico, de tal forma que sabemos hoje por experiência que não somente a Igreja é a casa da Palavra, mas, antes mesmo, que a Palavra é a casa da Igreja: a Igreja habita na Palavra de Deus, é constituída por ela como é constituída pela Eucaristia. A Escritura não é somente alma da teologia, mas de toda a Igreja. Os últimos cinquenta anos renovaram a atitude da Igreja em relação às suas fontes. Mesmo admitindo a tese de Pierre Legendre (L’autre Bible de l’Occident) de que as sociedades do Ocidente se constituíram fundadas numa espécie de segunda bíblia, dogmático-canônica, que atravessou séculos, e que se serviu da Escritura mais como ilustração e verniz legitimador - um edifício que agora estaria se inclinando em ruínas - a sabedoria consiste em voltar ao alicerce quando as paredes se mostram seriamente atingidas. É importante sublinhar o quanto a Igreja vem fazendo a sua lição de casa. Não é mais estranho que católicos andem com a Bíblia na mão.
O texto bíblico, evangélico, fonte da qual nascem sempre águas novas e revigorantes, desborda as paredes da Igreja, não somente do magistério. Por um lado, e em primeiro lugar, porque a Palavra de Deus é palavra dada à humanidade. Um budista ou um guarani podem não sentir necessidade de pedir licença à Igreja para ler o evangelho. Assim, afirmar que a Palavra foi confiada à Igreja e que esta tem o dever ministerial de proclamá-la é correto. Mas afirmar que só a Igreja tem poder de interpretar corretamente a Palavra não tem plausibilidade em nosso mundo rico de hermenêutica.
No entanto, como sabemos, a compreensão inadequada leva às distorções de toda sorte de fundamentalismo, inclusive científico. O papel da Igreja é, segundo o modelo dos Atos, o de Filipe no caminho do oficial da rainha Candace (Cf Atos 8, 26-27): ajudar na interpretação com o tesouro de seus recursos. Para este papel de intérprete da relação Palavra e Vida em termos de Escritura, nós encontramos por toda parte, Brasil e mundo afora, uma multidão exuberante de pregadores, televangelistas, líderes de megachurchs, mensageiros, pessoas cuja autoestima e missão estão colocadas nos Evangelhos. Se eles, fora da Igreja Católica, também realizam milagres e libertações, isso deve alegrar a nós também. Se há interpretação correta ou distorções, discernidas pelos frutos, o trabalho decisivo a realizar é o de preparar intensamente e de forma adequada, bons intérpretes da Palavra de Deus. O clero sozinho não dá conta, evidentemente, da evangelização. Formação bíblica para os católicos é uma prioridade, uma urgência, uma esperança essencial.
O método de Leitura Orante, outra denominação do já experimentado e amadurecido Palavra-Vida, inclui a busca de informações históricas e contextuais, mas isso não é nem o seu começo e nem o seu final. Os passos do método engajam uma leitura em comunidade de fé e de compromisso de vida. E dá garantia de superar os diversos tipos de fundamentalismo e de uso abusivo da Escritura. De qualquer forma, está claro que a palavra de Deus na Escritura é o coração da catequese, da ética, do diálogo com as religiões e inclusive com a ciência, além de ser a substancia de fecundidade e renovação da própria Igreja. Nunca é demais insistir nisso.
3.Colegiado e participação na Igreja (LG)
a)O colegiado episcopal. Se o Vaticano I fortaleceu o primado petrino do bispo de Roma, o Vaticano II complementou o ensinamento sobre a hierarquia sublinhando o papel do colegiado dos bispos e das Igrejas locais. O colegiado exercido nas Conferências introduziu o que Dom Boaventura Klopenburg chamou de "novo gênero literário” do magistério. Cinquenta anos depois se pode encontrar nos sites das Conferências os resultados de tal exercício. O CELAM e a CNBB tiveram momentos antológicos que repercutiram no conjunto da Igreja. Recentemente um fórum de católicos do Quebec se dirigiu aos seus bispos pedindo que evitassem la peur de Rome, para que fosse o debate com Roma e não a subserviência a marca do exercício da colegialidade.
b)Colegiado em sentido lato. Ao lado do colegiado episcopal multiplicaram-se as instâncias colegiadas na área diocesana, presbiteral, paroquial, com participação de leigos. As Comunidades Eclesiais de Base foram e continuam sendo um excelente laboratório de colegiado, distribuição de responsabilidades e autoestima de pertença à Igreja. Nelas os pobres não são apenas socorridos e acolhidos, mas se tornam sujeitos por suas formas de participação ativa e colegiada, com assembleias e decisões conjuntas. Sobretudo com o sentimento de dignidade por participar e fazer algo na sua Igreja.
c)Mais democracia ou participação na Igreja? Escuta-se com frequência discussões em torno do exercício de democracia na Igreja. A Igreja, sobretudo em suas origens, tomou palavras da política e da sociedade em que ela se estruturou. Inclusive a palavra mesma "Igreja”. A palavra democraciadiz respeito à participação aberta a todos no governo. Por um lado, as democracias reais, de modo geral, são mais formais do que verdadeiras porque outros mecanismos manipulam a democracia. Por outro lado, o debate público e transparente é um dos exercícios mais interessantes da democracia. É a ordem moderna de saída do infantilismo e das diversas corrupções que afetam a vida em sociedade. Este exercício não ganhou cidadania suficiente na Igreja, ainda que a palavra democracia possa não ser tão adequada para usar sem mais na estruturação do governo da Igreja.
No entanto, por diversos caminhos, a palavra "participação” é decisiva na eclesiologia pós-conciliar. Um dos elementos que deixam a situação nervosa é a maior participação das Igrejas locais na nomeação de seus bispos. As consultas secretas sub grave tem suas razões, mas sobram duas perguntas: Esta forma consegue evitar a endogenia interna à hierarquia da Igreja? Ela evita as pressões e eventuais corrupções locais, mas não fere a sensibilidade de participação também nas responsabilidades maiores da Igreja, selando um abismo entre leigos e hierarquia, e às vezes também entre clero e seus bispos? Tal situação se replica também nas comunidades paroquiais.
O verdadeiro poder, que evita tanto o caos como o autoritarismo, é, conforme refinada conceituação de Hannah Arendt, "capacidade de ação em conjunto”, portanto tecido por consensos desde a discussão até a decisão. Ainda que se advoguem razões de revelação e de direito divino para agir de modo diferente, o poder e a autoridade arriscam ficar sem plausibilidade e sem eficácia quando utiliza o mecanicismo "exteriorista” de tipo "manda quem tem o poder e obedece quem tem o dever”.
Examinando a realidade, há inúmeras comunidades paroquiais levadas nos ombros de grupos de leigos, frequentemente mais mulheres que homens, mas há também o fato sintomático de mulheres, inclusive da vida religiosa feminina mais consciente, que se distanciam de uma Igreja governada somente por homens. Não é o caso de entrada de mulheres no sacerdócio ministerial, mas de oportunidade de participação nas instâncias de governo da Igreja.
d)A teologia entre as comunidades eclesiais, o magistério e a academia. Um aspecto específico que terá consequências nos próximos anos é a produção teológica da Igreja. Novamente, se voltarmos aos tempos do Concílio e aos anos que o seguiram, houve um florescimento teológico que foi um dom à Igreja. Tanto para o sucesso do Concílio como de sua primeira recepção, teólogos foram decisivos. Não faltaram acalorados debates e divergências. Paulo VI tem, entre seus méritos, o de ter resistido a silenciar teólogos, permitindo o debate sem receio. Na América Latina a grande força dos teólogos veio de sua conexão com as comunidades vivas de fé engajada tanto eclesialmente como socialmente. O que temos hoje? De modo geral, os teólogos que já foram mais criativos estão absorvidos em programas universitários e suas agendas, muito próximos das ciências da religião. Certamente os bispos não se sentem bem com os assim chamados, desde os tempos de Eusébio de Cesaréia, "teólogos de corte”. Mas o aspecto crítico, eclesialmente autocrítico, da teologia, e portanto sua missão profética, pode perturbar o magistério pastoral. Ora, o magistério científico exige o trabalho árduo do estudo e a audácia como também a paciência de elaboração, e o diálogo com os segmentos científicos da sociedade depende da assessoria deste trabalho. Não se pode dialogar simplesmente apelando para o princípio de autoridade, citando o magistério. Como o magistério autêntico é um ministério específico de autentificação, ou seja, de oficialidade, é natural que seja um pouco mais conservador do que os trabalhos e ensaios dos teólogos, mas estes precisam de apoio e confiança para suas pesquisas e sua audácia criativa, sem que pese tacitamente a possibilidade de perda de missio canônica e outros incômodos. Francamente aqui fala um teólogo para os senhores bispos: há um clima de conformismo exagerado e temeroso. Embora tal clima não corresponda tanto ao Brasil como a outros países.
No entanto, quando a Soter (Associação de Teologia e Ciências da Religião) foi fundada no horizonte da teologia engajada com as comunidades eclesiais, com a opção preferencial pelos pobres e com o princípio evangélico de libertação, José Comblin chamava a atenção dos teólogos para a necessidade de nível acadêmico da teologia. Nos últimos tempos ele via os mesmos teólogos se refugiando na academia e sublinhava a urgência de voltar às raízes eclesiais de então, em meio às comunidades de fé, para voltar à energia criativa que já foi nossa.
4.A fé cristã como "religião”.
A distinção entre fé cristã e "religião cristã” é operacional, inclusive levando em conta a memória de Jesus, que viveu o sistema religioso judaico. A distinção não deveria levar a uma ruptura, mas a uma relação fecunda: a fé se expressa como sistema religioso coerente e se transmite como tradição religiosa. Pode-se falar em religião cristã, mas a distinção deveria nos ajudar a não reduzirmos a fé cristã a uma antropologia religiosa que, sob o verniz de cristianismo, na verdade alimenta substância religiosa pré-cristã e pré-bíblica, que nos reconduz a formas arcaicas e até violentas do sagrado.
a)Retorno ao sacro pré-cristão e ao dualismo entre religião e mundo?
O clima de pós-modernidade permite a volta ao irracional, ou a uma racionalidade arcaica própria do sacro pré-bíblico, por exemplo formas religiosas de xamanismo, detectáveis em práticas de curandeirismo e palavras visionárias. Pode-se imputar este retorno à incapacidade da racionalidade científica de dar conta da realidade experimentada. O sacro antropológico não pode ser desprezado, mas não é o essencial da fé cristã e, às vezes, pode encobrir e perverter o essencial da fé cristã. Nas Igrejas, tais sintomas estão em culto à personalidade e rituais desfocados. Permitam-me três exemplos, sintomas que causam ruído em nossa liturgia: em alguns casos, o neo-sacerdote, depois da unção das mãos, foi convidado a percorrer a igreja com as mãos levantadas sob o aplauso dos fiéis, reforçando assim a percepção de sua sacralidade e diferença. Ora, o óleo, que é do crisma, é o mesmo no qual são ungidos todos os cristãos para assumirem seus ministérios de vida cristã adulta. O testemunho da sacralidade dessas mãos será o seu próprio serviço, não o culto às mãos. O segundo exemplo é o costume recente, já corrigido com fadiga em algumas dioceses, de conduzir o Santíssimo exposto em ostensório para que o povo o toque com suas mãos ou outras manifestações de fervor, o que os liturgistas alertam como perda de foco da celebração eucarística, onde há comunhão, mais importante do que o toque fervoroso. É também incompreensão da reserva eucarística, sempre subordinada à participação na eucaristia. O que eu queria sublinhar é que esta exuberância típica do barroco leva a supervalorizar, por exemplo, o toque ou a adoração mais do que a comunhão, o que nos conduz diretamente para o sacro arcaico. Finalmente, o acento unilateral que, na celebração eucarística, ganhou ultimamente, tanto em termos de linguagem como na disposição do espaço e objetos litúrgicos, o aspecto de sacrifício centrado na cruz ou nos altares de queima da vítima animal. Ora, o memorial eucarístico abrange toda a vida, a morte e a ressurreição de Jesus, e a melhor forma da mesa é a ceia da comunidade em torno à mesa da comida. Novamente retorna a pergunta: é contaminação da volta do sacro arcaico também na Igreja?
Conjuntamente com este acento no sacro, ressurge também entre nós o risco de dualismo entre religião e mundo, sacro e profano, contrário à economia da encarnação e da transfiguração pascal cristã. Tais sintomas aparecem em movimentos eclesiais e em homilias catastróficas a respeito do mundo em seus diversos aspectos e onde a religião parece pairar acima do mundo degradado. O que leva a um docetismo eclesial que encobre um narcisismo e um gnosticismo elitista, um dos primeiros problemas internos da Igreja. Seguindo de perto a queixa recente do arcebispo de Berlim, o que deixa interrogação nas celebrações eucarísticas do Caminho Neocatecumenal não é tanto o fato de que põem um altar enorme no centro da comunidade, com comunhão sob duas espécies ou a ressonância dos participantes após a meditação da palavra de Deus. Tudo isso pode estar dentro do espírito da renovação litúrgica querida pelo Concílio e tal estilo de celebração ocorre sem traumas em inúmeras paróquias comuns dos Estados Unidos ou mesmo em pequenas comunidades de nossas periferias. O que perturba, segundo a queixa que vem de Berlim, é sua segregação, seu caráter gnóstico de elite, a sensação de serem católicos melhores que os outros católicos.
b)Igreja, transparência e sociedade do espetáculo e do consumo.
Mais do que a pós-modernidade com seu obscurecimento da razão crítica, é a "hipermodernidade” que, transformando a tecnologia de meio em ambiente onde respiramos, nos alimentamos, nos relacionamos, nos comunicamos, torna tudo mais transparente apesar de nós mesmos. As massas são o nosso Big Brother, um Big Brother que George Orwell sequer tinha imaginado, já que para ele se tratava de um controle global do Estado totalitário. O que está acontecendo é que até os segredos de nossos arquivos mais secretos vão parar na vitrine da Internet, diante de todos, a sociedade inteira, as massas. Isso está deixando todas as instituições mais transparentes, e saudamos como um meio democrático de baixar a corrupção na política. Mas temos também os nossos "vazamentos”, a Igreja vai se tornando mais transparente ainda que seja "apesar dela mesma” inclusive nos aspectos em que, por diversas razões, pensamos ser adequado o segredo.
A cultura que não se importa mais com segredo afeta até a confissão auricular: o recurso à terapia, à psicanálise inclusive em grupos, abre com grande facilidade as comportas da consciência diante de solteiros ou casados, de homens ou mulheres terapeutas, na expectativa de acolhimento e cura. O nosso ambiente é globalmente sem fronteiras para a comunicação e não há muros ou arquivos que resistam. A transparência se tornou uma exigência, mais do que uma virtude ou uma escolha, e o contrário soa a corrupção e crime.
Mas isso nos leva a um segundo fenômeno: se a sensação de que estamos sob o foco da luz incessantemente, não tanto do olho do Deus que me vê, mas dos olhares da plateia, então a vida se torna palco iluminado, show, passarela. Essa cultura é fascinante, e o mundo fashion pode passar rápido para a Igreja, que também no passado era às vezes o lugar do desfile de roupas sob os olhares dos outros. A liturgia como espetáculo, como epifania arrebatadora, que também tem uma história na Igreja, remete ao aspecto antropológico do arcaico tremendo e fascinante. Evidentemente, o Concílio reclamou para a liturgia o retorno aos três aspectos da genialidade romana: a simplicidade, a sobriedade e a funcionalidade. Estes três princípios permitem uma boa transparência, sólida e séria. Juntamente com a participação ativa e os ministérios, isso nos dá critério suficiente para discernirmos os eventuais excessos de entusiasmo pagão e a transformação da liturgia em performances de passarela e culto à personalidade.
c)Tempos pentecostais e patologias pentecostalistas.
Algumas estatísticas mais conservadoras apontam para meio bilhão de cristãos de coloração carismática e pentecostal. Esse sinal dos tempos pode ter outros nomes, porque tem um caráter transversal, com ventos carismáticos que atravessam as paredes das confissões e denominações, e inclusive das religiões: há sinais carismáticos inclusive entre judeus e muçulmanos. É, portanto, um sinal "ecumênico” no sentido mais amplo. Mas pode apresentar diversas patologias.
- Uma delas é a perda do peso da encarnação para voar nas asas leves do Espírito. Depois do esquecimento do Espírito, em tempos de "cristomonismo”, teríamos agora um "pneumatomonismo”com a liquidificação da carga de compromisso com a encarnação histórica que nos toca em nosso tempo.
- Outra anomalia é sua conjunção com a exacerbação da subjetividade: a experiência voltada para dentro do indivíduo, que se traduz na linguagem singularizada: "tu que estás sofrendo... põe a mão no teu coração... tu tens um problema...mas eu tenho a solução!” Aqui não há "nós”, e corresponde à experiência dos indivíduos urbanos, já 80% da população no Brasil ou nos EUA e crescente em todas as partes do mundo, onde os indivíduos flutuam em massas e em conexões temporárias ou casuais, mesmo em concentrações de culto e de liturgia. Seria pastoralmente equivocado desvalorizar as experiências profundamente singulares e individuais do mistério e da mística. Mas também seria pastoralmente imprudente desconsiderar os seus limites. Esta energia clama por um processo pedagógico de introdução e aprofundamento na comunidade.
Há novos estilos de comunidades, no Brasil bem pesquisadas pelo grupo da antropóloga Brenda Carranza da Puc de Campinas. Há dois perfis nessas novas comunidades, algumas de estilo soft, pertença leve e pouca institucionalidade, mais de acordo com os ares pentecostais que respiramos. Mas as mais notáveis são as de pertença hard,dura e total, buscando uma plataforma firme num mundo movediço e meteorológico. Esses grupos tendem a ser restauracionistas, e em seus sites, sobretudo em blogs com comentários, seguem um tom bastante agressivo em relação aos que são católicos de outra forma. Sem adequada formação podem terminar em fanatismo e violência verbal. Algumas ocorrências de excesso de basismo nas comunidades de base, em décadas passadas, parecem quase inócuas diante da crescente agressividade de grupos tradicionalistas que se pode detectar na Internet a nível internacional e nacional.
Embora o clima pentecostal favoreça uma sensibilidade mais ecumênica, a mídia de algumas denominações pentecostais tem contrastado o nome de católicos com o nome de cristãos, que, nesse caso, substitui a palavra "crente” e suas conotações pejorativas vindas dos católicos. Ficamos assim reclassificados por eles: os cristãos são os que seguem Jesus, e os católicos são os que seguem o Papa. Como estamos em tempos de desapropriação de símbolos e especialmente da linguagem, fica muito difícil desfazer este sofisma. O único instrumento sem retaliações indignas é o de utilizarmos também com abundância o nome de cristãos. (Embora seja verdade que inúmeros grupos católicos utilizem as assim chamadas "três brancuras” – a hóstia, Maria e o Papa – para caracterizar a identidade católica que, de resto, usa muita linguagem comum desses tempos pentecostais. Se por hóstia entendemos os sacramentos, por Papa entendemos magistério e clero, e por Maria toda uma forma de devoção e fervor, é certo que dizem muito do que é a identidade católica que de fato é percebida. Mas se desenvolvermos as formas indicadas pelo Concílio Vaticano II, tudo ganha maturidade).
Em última análise, os tempos pentecostais, carismáticos e místicos, que estamos testemunhando são um sinal bastante importante de esperança, mesmo que deem trabalho para os pastores que devem orientar o discernimento.
d)Percepção de Igreja "falível” e novo testemunho: opção pelos pobres e que sofrem.
Ainda é sentida a dolorosa situação de crime infame nos abusos por pedofilia, conjugados ao abuso de poder sacro e de traição da confiança, que teve como consequência a percepção de falibilidade da Igreja e a diminuição de autoridade pública como perita em humanidade. Em termos eclesiológicos já se confessava antes disso sermos Igreja santa e pecadora, mas o cultivo da sacralidade do clero e a repugnância pelo tipo de crime foram um choque incomparável a outros casos de pedofilia: corruptio optima péssima. (A falta de verbo nos faz traduzir frequentemente pelo lado da consequência: a corrupção do melhor o torna o pior. Mas pode ser traduzido de forma mais contundente ao se referir à sacralidade: a corrupção do melhor engendra o pior. É o "anticristo” que se pode surgir em meio cristão, quando se perverte, segundo João.) Ou seja, foi a própria sacralidade do poder, considerado inatingível exatamente por sua sacralidade, que gerou o pior tipo de pedofilia, justamente aquela vinda de pessoas consideradas sacras. Nesse caso, além de tudo o que se aprendeu e se providenciou com muita dor e vergonha, não há como fazer apologia diante dos que se aproveitam para fazer disso um trunfo contra a Igreja Católica, (como faz sistematicamente a Igreja Universal do Reino de Deus). Não há outra maneira de ir curando a ferida senão a de mostrar um testemunho diferente de sacralidade e de uso do poder: o de serviço aos que sofrem, aos pobres e aos indefesos e inocentes. É tempo de buscar esta cura, que não é algo marginal para a Igreja.
As estatísticas dão esperança, uma vez que a concentração de casos de abuso está em clérigos cuja formação se situou exatamente no paradigma pré-conciliar que já não se sustentava mais. Não voltar para as condições de formação daquele tempo já é um ganho. Mas este é só o lado negativo. O lado positivo da cura é, insisto, o testemunho do contrário do escândalo: o socorro aos pequeninos, a opção preferencial pelos pobres e pelos que sofrem, seguindo o começo da Gaudium et Spes e a grande tradição latino-americana.
5.Os "sinais dos tempos” (GS/NA/DH)
Com o Concílio retomamos a atenção ao contexto histórico e aos sinais dos tempos para discernir por onde passa o Espírito e o apelo de fidelidade à evangelização. Os sinais se apresentam normalmente em meio a ambiguidades que exigem discernimento, mas que devem em primeiro lugar ser acolhidos para ser bem compreendidos.
a.A Igreja no espaço secular e em meio ao pluralismo religioso.
A efervescência das religiões e a sua recolocação na atual globalização continua e afeta também a Igreja Católica. A volta do religioso recalcado em algumas regiões do planeta levanta a dúvida sobre a relação entre modernidade, democracia e secularidade. Essa tese de que quanto mais moderno e democrático mais secular seria um povo nunca foi bem o caso dos Estados Unidos. Lá ocorreu justamente o contrário: quanto mais democracia e modernidade, mais religião. A condição de free religion que está nas origens do espaço americano fez com que não houvesse confissões territoriais como na Europa, onde se misturavam intrigas políticas com intrigas religiosas. Nos EUA, ao invés das confissões territoriais se impuseram as denominações: cada indivíduo e cada comunidade se autodenominava o que era religiosamente, e isso permitiu manter a desterritorialização. Esta forma criou uma autoestima de pertença por livre adesão, e por isso a pertença religiosa aumentou com o exercício da democracia e com a modernização. Hoje é uma tendência mundial, inclusive no Brasil antes territorialmente católico. No Brasil, se somos ainda a denominação majoritária, não podemos mais dizer simplesmente "Brasil católico” como os americanos não dizem "América protestante”. Sociólogos da religião como José Casanova, da Universidade Georgetown de Washington, veem nisso nova fase da secularização se pensarmos o processo de secularização na Europa. A secularização tem uma história que está chegando a um ponto "neutro” em muitos lugares, e nesse sentido também Bento XVI manifestou que o espaço secular é o melhor espaço para a convivência das religiões e para a organização política. Mas vemos ainda estertores de secularização em conflito com a religião justamente nos territórios considerados mais católicos da Europa, como Espanha, Bélgica, Irlanda, Polônia, algo também em Portugal, Itália e Áustria. É a última fronteira da desterritorialização, o desaparecimento de países de confissão religiosa. Na área muçulmana há sinais em países de maioria muçulmana que se tornaram democráticos, como a Turquia, a Indonésia, o Senegal, e hoje é a tendência da primavera árabe.
A França foi pioneira em expulsar a religião do espaço político por considerar a religião um estorvo e não uma contribuição para o progresso. As elites políticas e intelectuais brasileiras imitaram a França, e hoje é uma postura conservadora, incapaz de perceber que as tradições religiosas são uma energia atômica na organização das sociedades. Isso não dispensa a vigilância no uso desta energia atômica, pois o fundamentalismo se torna energia desagregadora. Mas as religiões, por seu caráter de transcendência, dão energia para os sacrifícios necessários à vida em sociedade, inspiram generosidade e sabedoria para a boa convivência, portanto para a formação ética, segundo a expressão de Habermas no diálogo com o então Cardeal Ratzinger. Ele era completado pela posição do Cardeal: a relação de religião e política no espaço secular requer uma analogia com o diálogo de fé e razão. A mesma postura de diálogo franco é requerida para a convivência das religiões no mesmo território.
b.Igreja e autonomia dos sujeitos.
A lenta conquista do valor do indivíduo, da singularidade de cada pessoa, da sacralidade da consciência, fundamento da liberdade responsável e instância última da moral, deve muito à fermentação do evangelho. A autonomia do sujeito tem a última palavra inclusive quando aceita obedecer a autoridade e reconhece o ensinamento como vindo de revelação divina. Uma das maneiras de saber o que se passa em meio aos católicos, nesse tempo de medidas científicas, é a estatística. Ou, como dizia um empresário ao seu bispo nos EUA, se há sintoma de um problema como a diminuição da participação, ele faria uma enquete para saber, assim como faria em sua empresa se seu produto não está tendo grande aceitação. Ou ainda, preventivamente, faria uma enquete para saber a melhor forma de colocar o seu produto. Este é um pensamento muito americano, muito prático e com sabor de mercado onde o cliente é majestade. Mas é revelador de uma questão que nos afeta como Igreja diante do leigo adulto: ele tem a última palavra desde a sua consciência. Assim como tivemos uma ruptura entre fé e cultura, estamos tendo um distanciamento entre magistério, sobretudo em questões morais, e recepção dos católicos enquanto sujeitos de sua consciência. Evidentemente, é necessário formar a consciência, uma complexidade que não depende somente da Igreja, e o processo de aproximação, sobretudo de reaproximação entre magistério e consciência dos fiéis, começa pelo diálogo franco sem invocação ao princípio de autoridade sacra. O princípio de autoridade não pode ser imposto, a autoridade deve ser ganha, conquistada, e isso através do testemunho e da palavra. Isso nos leva ao ponto seguinte.
c.Igreja, ciência e moral. Entre ética de valores e ética de benefícios.
Questões delicadas de ordem moral como a recente votação do STF sobre anencefálicos e sua argumentação nos remetem para questões de fundo que viemos enfrentando e continuaremos enfrentando: o uso da ciência para a constituição e o aperfeiçoamento da ética, e os diferentes modelos de argumentação que guiam a moral.
- Por um lado, Bento XVI é um exemplo do exercício do diálogo entre fé e razão e do apoio na razoabilidade dos elementos da fé para apresentá-la no espaço secular e pluralista da sociedade em que se pode contar com um entendimento comum no bom uso da razão. De fato, toda a história da Igreja Católica testemunha a busca de boas relações entre fé e razão, censurando os extremismos de ambos os lados. Por isso também descartamos a teoria das "verdades paralelas”, como se fosse possível ser verdade numa ordem de conhecimento o que não seria verdade em outra ordem de conhecimento, o que positivamente diz o preâmbulo da Fides et Ratio: a fé e a razão são como duas asas para nos elevarmos à contemplação da verdade – no singular.
- Por outro lado, em tempos modernos tal relação de fé e razão se converteu em fé e ciência, com novos desafios. As ciências modernas tem uma metodologia indutiva, que passa pela experiência e pela verificação. A verdade se dá sempre em construção, provisória, um estágio. É inegável que as ciências ajudam a progredir no discernimento moral. Basta pensarmos no progresso da qualidade de nossos juízos sobre violência, suicídio, sexualidade, corporeidade, etc. depois dos conhecimentos acumulados pela psicologia e pelas ciências humanas em geral. Nesse sentido, a Igreja pode ser agradecida à ciência pela ajuda no progresso da consciência, um dos pilares da moral. Foi a ciência que, em meados do século XIX, permitiu à Igreja uma clara definição do começo da vida de um ser humano em sua concepção.
Mas a mentalidade positivista assume ainda que a ciência é o único caminho para a verdade, e quando se trata de um espaço laico, secular, como único instrumento político válido para decisões de ordem moral. A sua provisoriedade e a seus instrumentos tecnológicos aperfeiçoados mas também limitados, como os exames para diagnóstico e prognóstico na área da medicina, inclinam para o modelo ético que muitos chamam de "ética prática”, ou também "consequencialista”,de resultados, quando é necessário assumir riscos. Ela se presta para ir diretamente à questão do melhor benefício, ou seja, ao uso do princípio ético do benefício. E, negativamente, a evitar o maior mal, ou seja, o princípio ético do mal menor. Este último não é absolutamente de fácil aplicação, mas diante da inevitabilidade de algum mal, e diante de urgências, que os agentes da área de saúde enfrentam com maior frequência, torna-se um princípio prático guiado pelas consequências. Claro que a Igreja também aceita estes princípios, que tendem para uma ética teleológica, de fins e de consequências. Mas a Igreja parte de outro modelo, digamos "clássico”: a ética deontológica, que deriva de princípios estabelecidos previamente pela natureza mesma dos valores, da antropologia, e, no nosso caso, da criação divina, da revelação. Na área da filosofia, ela está próxima da ética de Aristóteles e de Kant, em que está suposto o conhecimento da natureza a ser realizada. A virtude e os processos tem em vista o que previamente está designado pela natureza ou pelo princípio, o que chamamos de lei natural. Diante de novos conhecimentos, este modelo costuma acionar o princípio de precaução e opta por uma postura mais conservadora. Tudo isso soa estranho, um idealismo inviável, para o positivismo científico, que, como vimos, é fascinante especialmente em meios acadêmicos. A ética de maior benefício e menor mal é útil para os que se guiam pela urgência e precisam assumir risco, como vimos na mídia, pois há uma economia de raciocínios, de tempo, e, pensa-se, de sofrimentos.
Muitos cientistas já desistiram de procurar onde está o começo de um ser humano no ventre materno, pois reconhecem que isso é de caráter filosófico e antropológico que escapa ao alcance da ciência. E a filosofia contemporânea já desistiu de uma natureza ou de um desígnio prévio sobre a realidade. Na ética das relações humanas – pense-se, por exemplo, no casamento e na família, nas questões em torno da sexualidade, de gênero, no debate sobre adoção de filhos por homossexuais em união estável – a ética do maior benefício ou do mal menor são os princípios mais vigentes. E isso contrasta com as tradições éticas que provém não só do ensinamento da Igreja, mas também de algumas outras tradições religiosas. Portanto, é uma questão crucial em que não basta manifestar nossa posição pontual cada vez, mas esclarecer o mais possível nossos pressupostos e os contrastes e conflitos assumidos. É notável como o princípio de precaução vem perigosamente diminuindo juntamente com o de uma natureza das coisas em que não somos os fabricantes da moral.
Na área da ecologia e da ética ambiental, no entanto, encontramos ambientalistas que voltam, ainda que através de um paradigma novo, à natureza das coisas e ao princípio de precaução. Basta pensar em transgênicos, sementes, transposição de rio e gigantescas hidrelétricas, etc.
d.Igreja e aquecimento global.
Importar-se por este grave sinal dos tempos que está aumentando também a temperatura de nossos medos com seus monstros e esfriando a temperatura da esperança, é crucial para testemunharmos de que, junto com toda a humanidade e agora também com todas as formas de vida na terra, somos "uma grande família”. O engajamento mais explícito da Igreja, como já vem ensaiando, por exemplo, nas Campanhas da Fraternidade ao menos em quatro ocasiões, é também um fator de diálogo e de credibilidade no espaço da sociedade secular e plural.
Nesse sentido, o Conselho Mundial das Igrejas tem um acúmulo de vinte anos de experiência com projetos de justiça ecológica e para com as vítimas climáticas, com migrantes climáticos, etc. Em nosso tempo, a justiça ecológica, a justiça social e a migração precisam ser tratadas juntas. A Cúpula da ONU sobre o ambiente, de junho próximo, chamada Rio+20, e a Cúpula dos Povos junto com a Rio+20, pode ser uma oportunidade, embora seja um momento de cúpula, mas há entidades da Igreja, como a Caritas de diferentes países, que tem experiências e que podem ser potencializadas para parcerias com um apoio mais oficial e explícito.

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