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terça-feira, 16 de julho de 2013

Fé cristã e compromisso político

Víctor Codina sj//////// Adital////// Tradução: ADITAL//////// Palavras de Víctor Codina SJ na apresentação do livro "Gregorio Iriarte ¿Quién fuiste y que dicen de ti?”/////// 1. Entendemos por fé cristã a adesão pessoal a Jesus na Igreja e entendemos por compromisso político, não só e nem principalmente o compromisso partidário com a "polis”, com a sociedade política, com a cidadania; em última instância, o compromisso com a justiça e com a humanidade. O binômio fé cristã e compromisso político não é tão simples e óbvio como possa parecer, pois, muitas vezes, a fé cristã e o compromisso político estiveram e estão separados e, às vezes, contrapostos. Existiu e existe ainda um divórcio entre fé cristã e compromisso político. Ditadores latino-americanos que se diziam cristãos, comungavam e assistiam à procissão de Corpus Christi, torturavam e assassinavam seus inimigos políticos; políticos que se dizem cristãos são corruptos. Há em muitos cristãos uma deformação teórica e prática da fé cristã que, muitas vezes, reduz a fé à profissão de umas verdades (o credo e o catecismo) e ao cumprimento de alguns ritos e devoções, sem que tudo isso tenha consequências morais e menos ainda no terreno da justiça social e do compromisso com a cidadania. Para muitos cristãos tradicionais, a moral se reduz à moral sexual e familiar, tudo o mais com algumas ações de beneficência e assistência caritativa. Uma fé individualista que não tem muito a ver com a vida, nem com a história, nem com a política. Nesse caso, a fé cristã se converte em um fato meramente cultural, um verniz para esconder uma atitude individualista, não solidária e injusta. É o que se denomina cristianismo burguês. Porém, além dessa deformação ideológica, existe uma visão negativa da política; para muitos cristãos existe um dualismo entre e Igreja e a política; entre a Igreja e a sociedade; entre a Igreja e o mundo; entre nós e eles; entre o correto e o incorreto, como se a Igreja se identificasse com o bem e a política com o mal; a Igreja com a cultura da vida e a sociedade com a cultura da morte; como se o cristão, para ir a Deus tivesse que fugir do mundo e refugiar-se nos muros da Igreja... Não é estranho que Puebla afirme que na América Latina existe um divórcio real entre a fé cristã e a justiça social, o que, como afirma Puebla, constitui um escândalo e uma contradição com o ser cristão (Puebla, 28). Tampouco é estranho que muitos pensem que a religião, a fé cristã e a própria Igreja são alienação e ópio do povo. Por outro lado, também constatamos como algo muito positivo a existência de muitas pessoas em todo o mundo que praticam a justiça e lutam pelos direitos humanos com um compromisso social e político, sem que adiram à fé cristã. Por exemplo, membros de religiões não cristãs, como Gandhi e Dalai Lama, como os atores da primavera africana, como muitos jovens voluntários, muitas vezes agnósticos ou ateus, que não querem saber de nada com a Igreja; porém, que, no entanto, são muito sensíveis aos direitos humanos, à luta pela justiça e ao compromisso político por uma sociedade mais justa. O compromisso político pela justiça não é algo exclusivo do cristão, mas constitui uma dimensão ética de toda autêntica existência humana. 2. Nada mais distante dessa caricatura do cristianismo alheio à história, à justiça e à sociedade que a visão bíblica da fé cristã. No Antigo Testamento, Yahvé se revela sobretudo através dos profetas, como o defensor do pobre, do órfão e da viúva; aquele que deseja que se pratique o direito e a justiça sobretudo com os mais débeis; o que se comove ante o sofrimento e o clamor do povo e busca sua libertação; ele não quer sacrifícios e nem oferendas; quer justiça e misericórdia; compromisso e solidariedade. Essa revelação alcança sua plenitude em Jesus de Nazaré, que anuncia o projeto do Reino de Deus, um projeto de vida plena e comunhão fraterna para toda a humanidade, para toda a sociedade, simbolizado no banquete messiânico no qual todos participam dos bens da criação e no qual os primeiros destinatários são os pobres e débeis aos quais a sociedade ordinariamente exclui e marginaliza. A esse Reino de Deus Jesus entrega toda a sua vida até a cruz e ao ser ressuscitado pelo Espírito, o Pai confirma a validade desse projeto solidário; projeto que desde o Pentecostes, a Igreja está encarregada de realizar no mundo; uma Igreja que deve ser um recinto de amor e de graça, onde todos encontrem razões para viver e ter esperança. 3. Porém, seríamos injustos se não reconhecêssemos que ao longo da história da Igreja não só houve deformações da vida cristã, divórcio entre fé e justiça, mas também autênticas expressões do evangelho, integrando fé e justiça, fé e compromisso solidário. Certamente, no começo da Igreja, realizou-se mais na linha da beneficência e do assistencialismo (esmolas, hospitais, asilos, restaurantes populares, atenção aos escravos e prisioneiros, proteção à mulheres...). Porém, desde que a sociologia e a economia modernas nos fizeram compreender que a pobreza não é casual, mas que tem causas estruturais, a fé cristã adquiriu uma dimensão mais clara de compromisso político com a justiça e de luta contra as estruturas injustas que produzem a morte do povo. A Doutrina Social da Igreja; Juan XXIII, com seu desejo de uma Igreja dos pobres e sua encíclica Pacem in terris; o Vaticano II, com seu ensinamento sobre os signos dos tempos abriram caminhos claros na conexão entre fé cristã e compromisso político pela justiça. Os gozos e esperanças, as tristezas e angústias do povo, sobretudo dos pobres são gozos, esperanças, angústias e tristezas da Igreja (GS 1). O Vaticano II não fala de Igreja "e” mundo; mas, de Igreja "no” mundo, na sociedade política; passa da anátema ao diálogo, sabendo que o Espírito não somente se acha presente na Igreja como também na sociedade, a qual a Igreja ajuda; porém, da qual também a Igreja recebe ajuda; sabendo que tanto na sociedade como na própria Igreja mesclam-se o trigo e cizânia, e que todos devemos caminhar unidos rumo ao Reino de Deus. Porém, também nas demais Igrejas cristãs, temos exemplos vivos da conexão entre fé e política. Pensemos em Dietrich Bonhoeffer, em Martin Luther King, Dorothe Sölle ou em Nelson Mandela. 4. Nesse caminho de relação entre Igreja e sociedade política situa-se a atual tradição latino-americana que em Medellín fez uma recepção criativa do Vaticano II ao escutar o clamor angustiado de um povo que pede justiça, pão, terras, saúde, educação, trabalho, teto, respeito a sua dignidade, a seus direitos humanos e a suas culturas. A partir de Medellín, a Igreja latino-americana volta a integrar fé e compromisso político pela justiça: surge uma ‘floração’ de bispos, verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres, que defendem ao povo das injustiças, comprometem-se com uma mudança das estruturas, como Helder Camara [Brasil], Proaño [Equador], Méndez Arceo [México], Pironio e Angelelli [Argentina], Óscar Romero [El Salvador], Samuel Ruiz [México, Chiapas], Aloisio Lorscheider e Mendes de Almeida [Brasil], Enrique Alvear [Chile] e, na Bolívia, Jorge Manrique, Manuel Eguiguren, para citar somente os já falecidos; nascem as Comunidades de Base lideradas, sobretudo por mulheres do povo com um compromisso social e político; a vida religiosa, sobretudo a feminina, se insere nos setores mais pobres e populares, entre mineradores, camponeses, indígenas, acompanhando ao povo em suas lutas e reivindicações; há muitos leigos cristãos comprometidos com a justiça e a política e nos processos de transformação política que buscam um mundo melhor, porque outro mundo é possível; surge a Teologia da Libertação que, com suas limitações e críticas, é uma força profética e evangélica que impulsiona ao compromisso político. A opção pelos pobres está implícita em nossa fé cristológica, tudo o que tem a ver com Cristo tem que ver com os pobres, como afirma Aparecida (Aparecida 393), tudo o que tem consequências sociais e políticas. Porém, tudo isso tem seu preço; há perseguição e martírio, desde bispos, como Romero e Angelelli, a sacerdotes e religiosas, como Mauricio Lefébvre, Luis Espinal, Ignacio Ellacuría, a Irmã Dorothy Stang e quantidade de homens e mulheres do povo, santos inocentes, assassinados pela fé e pela justiça, por seu compromisso com o povo e com a política; verdadeiros mártires jesuânicos... 5. Nesse contexto histórico latino-americano de compromisso cristão pela justiça e pela política, temos que situar a Gregorio Iriarte, sua vocação missionária a América Latina, sua estância na Argentina e no Uruguai; sua chegada a Bolívia, em 1964, às minas do Século XX e à radio Pio XII; sua experiência de impacto do massacre dos mineiros na noite de São João; sua defesa dos mineiros perseguidos; sua luta pela justiça e pelos direitos humanos em tempos de ditaduras; suas análises da realidade nacional; sua difusão da Doutrina Social da Igreja e do Magistério latino-americano; sua preocupação por fazer mudar a mentalidade de muitos cristãos conservadores (leigos, sacerdotes, bispos, religiosos); suas perseguições; todo seu trabalho de conferencista e escritor, sobretudo ultimamente desde Cochabamba. E tudo isso como consequência de sua fé cristã, em coerência com sua adesão e seguimento a Jesus, na Igreja e na vida religiosa, como fruto do evangelho lido no mundo de hoje, a partir do povo, unindo, assim, mística e profecia; amor à Igreja e serviço ao povo da Bolívia, a Bíblia e o diário. http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=76364

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