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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Dom Demétrio Valentini: Revisitar o Concílio, renovar as esperanças e retomar a renovação eclesial

24.10.11 - Adital


Agradeço o convite que me fizeram, para participar destas Jornadas Teológicas Andinas, em vista da celebração dos 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II.
Neste momento de conversa com vocês, me proponho, simplesmente, reviver alguns lances deste vasto acontecimento que foi o Concílio Vaticano II. Mais em forma de depoimento pessoal, do que propriamente de reflexões teológicas em torno das vastas questões que este concílio levanta.
Passados 50 anos da realização do Vaticano II, já são muito poucos os bispos ainda vivos, que participaram das quatro sessões conciliares. No dia 24 de agosto passado, morria no Brasil Dom Clemente Isnard, um dos baluartes da renovação litúrgica. Ainda está vivo D. José Maria Pires, com 93 anos de idade.
Dá para dizer que a geração dos bispos conciliares já se foi. Agora, somos herdeiros de um acontecimento que envolveu profundamente a Igreja, cujo impulso de renovação cabe a nós agora sustentar.
Pessoalmente, me sinto na obrigação de dar o meu testemunho do contexto em que se realizou este Concílio. Tive a sorte de viver muito de perto o Vaticano II, como estudante de teologia em Roma, no tempo em que se realizava o Concílio.
Lembro de modo muito especial a sorte que eu tive no dia 11 de outubro de 1962, no dia da abertura do Concílio. Tinha ido muito cedo à Praça São Pedro, para ver a procissão de bispos que devia passar pela praça e entrar na Basílica. Estava lá, muito consciente da importância histórica daquele momento.
Aí fui surpreendido com a inesperada oferta que o Frei Boaventura Kloppenburg me fez. Ele era encarregado das credenciais de jornalistas de língua portuguesa. E como não tivesse aparecido nenhum, me perguntou se eu não queria uma credencial de jornalista. Mais do que depressa aceitei. Guardei no bolso a faixa verde e amarela de seminarista brasileiro, continuei na praça até a entrada dos bispos e do Papa, e então me apresentei à porta central da Basílica, munido com minha credencial de jornalista! Me olharam desconfiados, mas me deixaram entrar. Fui me achegando, até ficar bem próximo ao Papa, mais perto do que todos os cardeais, arcebispos e bispos.
Assim, pude ver de perto, com meus próprios olhos, e ouvir da própria boca de João XXIII seu famoso discurso de abertura do Vaticano II, afirmando enfaticamente que este não seria um concílio para repetir anátemas, nem para proclamar novos dogmas. Mas seria para apresentar de maneira nova e acessível aos homens de hoje as grandes verdades que compõem o rico patrimônio que a Igreja precisa testemunhar a todas as gerações.
De modo que me sinto, também eu, responsável agora para testemunhar o que foi este concílio. Há tempos vinha carregando uma inquietação na consciência, até que resolvi escrever um pequeno livro, ao qual dei o título de "Revisitar o Concílio Vaticano II”, onde procurei recordar o intenso processo de preparação, realização e recepção deste grande concilio. O livro está publicado pelas Edições Paulinas, e seria uma boa obra traduzi-lo para o espanhol, dado que foi escrito por um repórter de língua portuguesa!
O que me proponho fazer hoje, é um pouco o que fiz com o pequeno livro. Mas prometo que não vou ler todas as suas páginas, não! Pois não quero matar a curiosidade de vocês a respeito dele.
Ainda a título de introdução, é bom dar-nos conta que agora somos desafiados a olhar o concílio a partir dos 50 anos de sua realização. Para responder a inquietantes perguntas:
-até que ponto o Concílio Vaticano II ainda é válido?
-Seus documentos ainda continuam vigentes?
-Seu processo já se encerrou, ou ainda estamos vivendo as conseqüências do Vaticano II?
Para responder a estas perguntas, nada melhor do que recordar as palavras do Papa João Paulo II, na Tertio Millenio Ineunte, onde ele afirmou:
"Sinto ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça que beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa”.
Feita na passagem do milênio, esta afirmação sinaliza com muita clareza a importância que o Concílio ainda tem.
Ao mesmo tempo, precisamos nos dar conta que vivemos agora um momento de forte refluxo do conservadorismo, que se manifesta de muitas maneiras, e que em alguns grupos eclesiais se expressa explicitamente como contestação diante do processo conciliar.
Este é um fenômeno com precisa ser analisado com calma, e compreendido com muito discernimento. Ele certamente nos apresenta um sério desafio, para a exata compreensão do concílio, e para o alcance de suas propostas de renovação eclesial.
Isto não deixa de causar uma forte perplexidade.50 anos atrás ninguém poderia imaginar que chegássemos à situação que vivemos hoje, com este refluxo conservadorista, cujo símbolo maior se identificar no retorno da celebração eucarística nos moldes anteriores ao Concílio.
Somos chamados a refletir melhor sobre o que está em jogo com este fenômeno. Para isto, certamente, pode ajudar o conhecimento do contexto histórico, seja do tempo da realização do Vaticano II, como da realidade vivida hoje, sobretudo com as profundas mudanças em andamento, de ordem social, religiosa e cultural.
Para isto, vamos aqui nos propor uma rápida consideração sobre como surgiu o Concílio, as reações suscitadas, o contexto histórico daqueles anos, a preparação do Concílio, seus momentos decisivos, suas grandes intuições, a recepção do concílio, as resistências ao processo conciliar, e as perspectivas que se apresentam pela frente.
Tudo muito simples e breve!
1) Como surgiu o Vaticano II
Uma primeira constatação a fazer, para compreender o Concílio, é perceber quanto ele dependeu do Papa João XXIII. Nunca um concílio esteve tão ligado à figura de um papa, como o Vaticano II esteve ligado a João XXIII
Sem João XXIII, não teria acontecido este concílio. Sem nenhum exagero, dá para dizer que este é o Concílio do Papa João XXIII
A dinâmica dos fatos que levaram ao anúncio de um concílio ecumênico, começou já com a eleição de João XXIII. Ninguém esperava que o Cardeal Ângelo Giuseppe Roncalli fosse eleito papa.
Com a morte de Pio II em outubro de 1958, todos se perguntavam quem iria substituir um papa da estatura intelectual de Pio XII.
O próprio andamento do conclave demonstrava a dificuldade de encontrar um bom sucessor de Pio XII. Iam se sucedendo as votações, com a insistente fumaça preta a demonstrar a dificuldade de chegarem a um consenso.
Quando finalmente apareceu a fumaça branca, depois de quatro dias,, foi anunciado o nome de Ângelo Roncalli. A grande maioria não sabia quem era o novo papa. Ao constatar que já tinha 77 anos de idade, foi se difundindo rapidamente a versão de um "papa de transição”, que viveria breves anos, até que aparecesse alguém em condições de levar em frente o pontificado de Pio II.
Portanto, João XXIII começou sob o estigma de "papa de transição”, que ele mesmo assumiu,e colocou a serviço dos seus planos, que ninguém suspeitava quanto seriam arrojados, e dignos de um papa, que ao contrário das expectativas, iria ficar na história como um dos papas de maior influência sobre a Igreja do seu tempo. Ele surpreendeu a todos, e soube muito bem usar a oportunidade que a história lhe oferecia.
Começou a surpreender com a data da posse, escolhida por ele mesmo: 04 de novembro! Era o dia de São Carlos Borromeu, um dos bispos que mais tinha colocado em prática o Concílio de Trento. O novo Papa entendia de concílio!
Mas João XXIII soube conquistar muito rapidamente a estima de todos Em poucas semanas, foi logo identificado como o "Papa bom”, o "Papa da bondade”.
No dia de natal, para surpresa de todos, João XXIII saiu do Vaticano, e foi visitar as crianças doentes no hospital de Roma. No dia seguinte, foi visitar os presos na cadeia da cidade!
Foi o suficiente para todos se sentirem muito felizes como o novo Papa, de 77 anos! Para o povo romano, não precisa outro papa! E de fato, a primeira missão do Papa é ser bispo do povo romano!
Foi neste contexto de admiração pelo papa, e de pronta adesão às suas atitudes, que foi anunciada a grande surpresa. O Papa iria convocar um concílio ecumênico.
Foi no dia 25 de janeiro, festa da conversão de São Paulo. Estava se concluindo a "Semana de orações pela unidade dos cristãos”, na Basílica de São Paulo em Roma. O Papa tinha convidado, e estava se preparando para ir.
Três dias antes, em depoimento ouvido com freqüência do próprio João XXIII, em conversa com seu secretário pessoal,Mons Capovilla, o Papa João XXIII confidenciou a ele que sentia a necessidade de, como papa, fazer alguma coisa pelaunidade dos cristãos. E perguntou ao secretário o que ele achava. E ao fazer a pergunta, lhe veio a resposta: um concílio?
A ideia não lhe saiu mais da mente.Três dias depois, nas dependências da Basílica São Paulo, no encerramento da "Semana de orações pela unidade dos cristãos”,João XXIII surpreendeu a Igreja e o mundo com o arrojado anúncio dos seus planos.
Brincando com o epíteto de "Papa de transição” que lhe tinham dado, ele afirmou que, apesar disto, ele também os seus planos para o pontificado. E aí foi dizendo quais eram estes planos:
-realizar um sínodo para a Igreja de Roma,
-atualizar o Código de Direito Canônico,
-e convocar um concílio ecumênico para toda a Igreja!
2. As reações suscitadas
A notícia se espalhou rapidamente, e foi acolhida com a mesma simpatia que já cercava a figura do papa.
No meio desta história, houve um episódio muito significativo, que mostra bem quanto o Papa João XXIII estava consciente do alcance de suas propostas, muito especialmente da realização de um concílio ecumênico.
Ele fez uma manobra muito interessante. Antes de ir para a reunião com os cardeais na Basílica São Paulo, João XXIII tinha pedido para a Rádio Vaticana anunciar a notícia do concilio diretamente, sem esperar o encerramento da cerimônia religiosa.
De modo que, quando os cardeais saíram, a notícia já tinha se espalhado pelo mundo, como grande manchete do dia! Os cardeais, que tinham ouvido com reservas e alguma desconfiança as ousadas propostas do novo Papa, de repente se encontraram com o entusiasmo do povo diante da difusão da notícia.
Assim, João XXIII conseguiu, estrategicamente, contornar as possíveis resistências que poderiam vir da Cúria Romana. Com o anúncio do concílio recebido com tanto entusiasmo, ninguém iria se opor esta a iniciativa. De tal modo que, desde o seu anúncio, o concílio foi aceito na Igreja com muito entusiasmo e esperança, sobretudo de ordem ecumênica, dada a circunstância da Semana.
As expectativas ecumênicas foram rapidamente se difundindo, a ponto do próprio João XXIII sentir a necessidade de moderá-las, explicando que o Concílio seria para a Igreja Católica. Mas o clima ecumênico ficou profundamente associado ao futuro concílio.
De modo que a idéia do concílio foi logo aceita com muito entusiasmo, e foi avalizada desde o começo pela figura do Papa João XXIII.
Mesmo antes de começar, o concílio mudou o clima eclesial, que rapidamente foi envolvendo a todos, suscitando especialmente muitas esperanças de participação e de profundas transformações eclesiais.
Olhando estes fatos a partir de agora, depois de 50 anos, é válido perguntar se a estratégia de João XXIII, foi de todo positiva. Agora nos damos conta quanto ela propiciou que as resistências se acumulassem, para depois se manifestarem na preparação dos documentos conciliares, e sobretudo ao longo do desenrolar do concílio, e mais ainda, depois de concluído o concílio.
O fato é que se demorou demais para perceber a consistência da oposição ao concílio. Ele começou com muito entusiasmo, mas não levou suficientemente em conta o poder se reação de nichos de resistências, que infelizmente chegaram a assumir ares de cismas, e agora ameaçam contagiar a Igreja inteira, como cinzas de um vulcão dos Andes, que se espalham por todo o continente!
Nunca é demais a busca insistente do diálogo, e da superação de resistências, sobretudo quando assumem posturas fundamentalistas.
O próprio "Concílio de Jerusalém” mostra quanto são importantes as mútuas concessões para se garantir a unidade e a comunhão. Até "carnes imoladas aos ídolos”fizeram parte do compromisso entra as duas correntes de opinião!
3) O contexto histórico do Vaticano II
Para compreender o clima vivido com tanta intensidade durante o concílio, é necessário constatar o ambiente de otimismo que o mundo vivia naquele tempo.
Dá para dizer que as duas décadas, de 50 e de 60, foram as mais otimistas dos últimos séculos. A Europa estava se refazendo da guerra. Os países da África estavam em plena efervescência de sua independência, o desenvolvimento parecia estar prestes a chegar todos os países, a distensão entre leste e oeste estava se consolidando, e teve no episódio dos "mísseis de Cuba”, em 1962, o episódio símbolo, com a emergência do trio de personalidades que espelhavam a nova situação mundial: Kennedy, Kruschev e João XXIII, que iria escrever a "Pacem in terris”.
Parecia que a utopia da paz e do progresso universal estava chegando!
Este clima de euforia contagiou o ambiente do concílio, e se traduziu, especialmente, no documento conciliar Gaudium et Spes.
Ao mesmo tempo, é muito importante outra constatação. O clima de euforia mundial foi abruptamente rompido com a "revolução cultural de 1968”, com a revolta dos jovens, e com o desencadear do velocíssimo processo de secularização, que foi atingindo sobretudo os países da Europa Ocidental, onde mais de perto tinham se firmando as esperanças do concílio.
Se esta crise tivesse vindo antes, ou se o concílio tivesse sido feito depois, com certeza muitos enfoques teriam sido diferentes, seja nos documentos voltados para o interior da Igreja, como para os voltados para a sua missão no mundo.
Um fato que precisa ser anotado com muita clareza é o equívoco de interpretação histórica, usado com muita insistência pelos que combatem hoje o Vaticano II. Acusam o Concílio de ter sido a causa da secularização que atingiu profundamente a Europa e outros países. E´ um grave erro de interpretação histórica.
A secularização teria acontecido mesmo sem que o Concílio tivesse sido realizado.
Portanto, vivemos agora o incômodo de conviver com pressupostos equivocados, que possibilitam acusações gratuitas, atribuindo ao Concílio conseqüências, das quais ele não foi, absolutamente, sua causa.
Isto não nos dispensa de fazermos agora uma lúcida avaliação, para perceber como foi conduzido o processo de implementação do Concílio, e sobretudo como daqui para a frente precisamos proceder. A esperança é que a celebração séria e profunda do jubileu do concílio, nos ajude a perceber bem os valores importantes que podemos levar em conta e tomar como referência em nossa ação eclesial.
4) A preparação do concílio
Pela pronta adesão encontrada, dá para dizer que o processo do concílio começou no dia 25 de janeiro de 1959, com o anúncio de sua realização.
A convocação oficial, na verdade, foi feita no Natal de 1961, pela bula Humanae Salutis, quando João XXIII estabeleceu que o concílio seria aberto no ano seguinte, sem ainda precisar a data. Sua abertura oficial se deu, efetivamente, a 11 de outubro de 1962, data do encerramento do Concílio de Efeso, em 431, quando o povo aclamou Maria como Mãe de Deus. Aí percebemos de novo estilo de João XXIII. Sem ofender os "irmãos separados”, colocava o Concílio sob a proteção de Maria.
A preparação do Concílio foi conduzida com muita firmeza pelo próprio João XXIII, deixando transparecer a preocupação com sua idade avançada, e a disposição de garantir a efetiva realização do seu grande sonho.
Lodo após o anúncio do concílio, nomeou uma "Comissão Central ante preparatória”,com a primeira tarefa de identificar os temas centrais que deveriam ser abordados pelo Concílio. Pois, pela primeira vez na história, um concílio era convocado sem um problema específico a resolver.
A Comissão teve a feliz idéia de pedir a opinião dos bispos, dos superiores das grandes congregações religiosas, e dos reitores de universidades católicas. A resposta foi surpreendente. As sugestões recolhidas preencheram doze grossos volumes, que serviram então de fonte para a elaboração dos 75 esquemas de documentos, já na fase preparatória do Concílio.
fato é que o concílio se constituiu numa forte experiência de participação eclesial, já pela sua realização. Antes de declarar que a Igreja é o povo de Deus, o Concílio propiciou aos cristãos que se sentissem, de verdade, como povo de Deus consciente e participante.
Por isto, a melhor maneira de reviver o concílio não é tanto estudar seus documentos, mas reviver sua experiência de participação eclesial.
5) Momentos decisivos do Concílio
O discurso de abertura, no dia 11 de outubro, se constituiu em referência muito importante para todo o processo conciliar. Na declaração enfática de João XXIII, seria um concílio para fazer o grande "aggiornamento” da Igreja Católica, com os conseqüentes desdobramentos que esta "atualização” comportava.
Outro momento decisivo se deu na primeira reunião ordinária, após a abertura do Concílio. Era a sessão destinada a eleger as dez Comissões de trabalho. Cada bispo devia apresentar 16 nomes para cada Comissão. O impasse era evidente. Quem teria na cabeça 160 nomes de bispos para indicar?
Esta situação proporcionou uma esperta manobra da Cúria Romana. Na entrada da aula conciliar, os bispos receberam dez listas, cada qual com 16 nomes de bispos. A intenção era clara. Colocar nas comissões os nomes indicados pela Cúria.
Foi então o que o Cardeal Lienard, de Lille, propôs suspender a sessão, e dar três dias para os bispos poderem fazer as consultas adequadas para, em cada episcopado, encontrar os nomes mais adequados para cada comissão.
A ideia contou com o apoio de diversos outros bispos, e acabou sendo aceita.
Assim ficou comprovada a importância que teria, neste concílio, a articulação episcopal para sustentar e apoiar o processo conciliar. E ficou afirmada a autonomia dos bispos como sujeitos do processo conciliar.
Alguns bispos se destacaram nesta função. Entre eles emergiu com muita evidência e eficácia, D. Helder Câmara, do Brasil e Mons Larrain, do Chile.
Outro momento importante se deu por ocasião da primeira rejeição de um esquema preparatório. Era o esquema sobre a Palavra de Deus, onde entravam os assuntos polêmicos da Revelação, da Tradição e do Magistério da Igreja. O texto tinha sido redigido de maneira bastante polêmica, e muitos bispos começaram a pedir sua rejeição. Posto em votação, a expressiva maioria se declarou contra o esquema, mas não em número suficiente de dois terços, para rejeitá-lo. Foi então que interveio João XXIII, e por decisão própria mandou retirar o esquema, para que fosse redigido outro em linguagem mais ecumênica.
Isto fortaleceu nos bispos a impressão que os autores do concilio eram eles, e os próprios esquemas preparados com antecedência podiam ser substituídos por outros.
No intervalo entre a primeira e a segunda sessão, antes de vir a falecer, o Papa João XXIII determinou uma drástica diminuição do número de esquemas preparatórios. Pois o concílio já tinha identificado que o tema central seria a Igreja, e muitos assuntos menores podiam ser integrados neste tema maior.
De tal modo que, antes de morrer, João XXIII podia ter a certeza de que o seu grande sonho já começava a se tornar realidade.
6) As grandes intuições do Concílio
Alguns dizem que este concílio não teve densidade teológica. Ou mesmo que não teve intenção de afirmar verdades. Teria sido um concílio meramente "pastoral”.
Nada mais equivocado do que esta afirmação.
O Vaticano II teve como grande tema de seus trabalhos e de seus documentos a Igreja, enfocando sua vocação e sua missão neste mundo. Foi um concílio claramente "eclesiológico”, como os primeiros concílios foram claramente "cristológicos”.
Não é o caso aqui de desdobrar as grandes afirmações eclesiais feitas pelo Concílio. Só vou lembrá-las, brevemente.
A mais estratégica, e a mais densa, foi a visão da Igreja como Povo de Deus, recuperando a dimensão bíblica da caminhada da Igreja.
Paralela a esta afirmação, podemos colocar a Colegialidade episcopal, afirmando a corresponsabilidade de todos os bispos no governo da Igreja, estabelecendo o equilibro entre o primado de Pedro e a colegialidade episcopal. Assim fica colocado o fundamento para uma visão de Igreja que ao mesmo tempo comporte a unidade e a diversidade.
Em íntima conexão com estas duas verdades, podemos perceber como nelas se encaixa bem a importância da Igreja Local, e o valor todo especial das comunidades eclesiais, como concretizações práticas da vida de Igreja.
E assim, a partir do Concílio, podemos ir desenhando uma visão de Igreja povo de Deus, conduzida por pastores que a convocam para a vivência da comunhão fraterna e da missão ao mundo, como "sacramento de salvação universal”.
7) A recepção do Concílio
Sabemos que a validade de um documento, ou evento eclesial, se mede pela recepção que ele .encontra.
Uma boa questão para se avaliar, no jubileu do concílio, é exatamente esta: conferir como foi a recepção do Concílio Vaticano II.
A celebração do jubileu de 50 anos do concílio traz consigo a esperança de que esta recepção positiva do Concílio possa ser retomada. Depois de diversas resistências encontradas, finalmente se abra um tempo de fecunda recepção do impulso renovador da Igreja, trazido pelo Concílio. Esta seria a intenção da celebração deste jubileu conciliar.
Em todo o caso, para nós aqui na América Latina, faz bem lembrar que nossa Igreja foi a única que deu ao Concílio uma acolhida continental, graças à atuação do CELAM, e às Conferências Gerais por ele realizadas, muito especialmente a Conferência de Medellín, na Colômbia, que foi uma espécie de concílio para a América Latina, fazendo repercutir entre nós o Vaticano II.
Ao mesmo tempo, é forçoso admitir que, infelizmente, neste tempo pós conciliar, se viveu por demais um clima de mútuas suspeitasentre a Cúria Romana e a Igreja na América Latina.
Estas suspeitas estiveram muito presentes em Puebla e em Santo Domingo, tendo quase desaparecida na Conferência de Aparecida.
Certamente, um diálogo maduro poderá contribuir para que as relações entre Roma e a Igreja da América Latina se façam sempre na plena confiança, que possibilite manter sempre a comunhão eclesial, sem impedir a implementação de opções pastorais adequadas à nossa realidade, para benefício do fortalecimento de toda a Igreja, na busca de abrir caminhos para a renovação eclesial sonhada pelo Concílio.
8) As resistências ao processo conciliar
Depois de 50 anos, dá para perceber melhor, como já foi observado, a importância do diálogo e de entendimento, sobretudo para impedir que as incompreensões se cristalizem, e descambem até para cismas abertos.
Agora se aprecia a grande estratégia de João XXIII, ao contornar as possíveis resistências à sua proposta de renovação eclesial através de um concílio. Mas ao mesmo tempo percebemos que estas resistências não foram superadas. Ao contrário, elas se aglutinaram durante o Concílio, e se manifestaram explicitamente depois do Concílio, chegando a rupturas que infelizmente ainda existem, e que se constituem em drama pessoal para o Bento XVI, no seu esforço de conseguir a plena comunhão com os poucos dissidentes, colocando quase em risco os avanços conciliares de toda a Igreja.
Esperamos que estas dificuldades, bem localizadas e identificadas, possam ser superadas, e não impeçam a continuidade da renovação conciliar proposta por este grande Concilio Ecumênico, que Deus concedeu como graça especial para a sua Igreja nestes tempos difíceis de mudanças históricas, que estamos vivendo.
Conclusão
Depois de 50 do Concílio Vaticano II, nos deparamos com um vasto panorama, que poderia levar a duas iniciativas que podem ser complementares.
De um lado, constamos quando foi válido o Vaticano II, e quanto ainda dá para caminhar à luz dos seus documentos e dos desdobramentos eclesiais que ele suscitou.
Com certeza, a Igreja pode continuar caminhando, sustentada pelas motivações conciliares do Vaticano II.
Por outro lado, a rica experiência dos tempos do concílio, fazem perguntar se não seria válido experimentar de novo um intenso processo conciliar, com a convocação de um novo concílio.
Esta segunda hipótese é confrontada muito mais claramente com as possibilidades concretas de sua realização. E então nos damos conta como seria difícil, e talvez arriscado demais, realizar um novo concílio no estado atual em que a Igreja se encontra.
Além da complexidade que seria organizar um novo concílio, as profundas mudanças acontecidas nas últimas décadas, faria com um novo concílio fosse também um concílio completamente novo na sua maneira de realização.
Na Espanha existe, até, uma pequena fundação, que se chama "proconcil”, que pode ser conhecida pela internet, dedicada a refletir sobre a conveniência de promover um novo concílio.
De maneira prudente, chegou à conclusão que, por enquanto, convém recuperar a dimensão de conciliaridade da Igreja, o que já não seria pouco, voltar a contar com a opinião dos bispos e do povo de Deus para decidir as questões da Igreja.
Em todo o caso, temos a ingente tarefa, nesses próximos anos, enquanto celebramos o jubileu do Vaticano II, constatar quanto podemos ainda nos motivar com suas propostas e seu sonhos!
Nesse contexto, vale a pena trazer aqui, brevemente, o sonho de um dos últimos cardeais sonhadores de renovação eclesial que ainda temos. E´ o sonho do Cardeal Martini, apresentado no Sínodo Especial para a Europa, na década de noventa, em preparação à passagem do novo milênio.
Permito-me citar de novo, aqui, seu sonho:
Sem dizer que estava propondo um novo concílio, ao propor que se deveria convocar "todos os bispos do mundo”, para abordar três assuntos:
-no interior da Igreja, que se repense o exercício dos ministérios, desde o petrino até os ministérios comunitários confiados aos leigos. Portanto, uma ampla mudança na estrutura ministerial da Igreja.
-No relacionamento com os outros cristãos, que se coloquem as bases de um amplo entendimento teológico, que possibilite a progressiva aproximação e finalmente a superação das divisões existentes.
-E diante do mundo de hoje, empreender uma ampla reflexão sobre a urgente necessidade da inculturação do Evangelho, para que a Igreja de Cristo possa assumir as feições das diversas culturas existentes neste mundo, e não se limite a uma só delas, no ocidente, sufocando a força do Evangelho, e impedindo que ele seja acolhido por todos os povos.
Se fosse convocado um concílio com estas intenções, todos nós, certamente, teríamos muitas opiniões a dar e posições a assumir. E o faríamos com muito entusiasmo.
Mas, por enquanto, com esta Jornada Teológica, só estamos convocados para celebrar os 50 anos do Vaticano II, e retomar suas generosas intenções de renovação eclesial.
O que, certamente, não será pouco!

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