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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

(Um balanço do pontificado de João Paulo II - alguns textos de 2005)



(...)Cumpre observar que o Papa João Paulo II, um dos mais populares líderes mundiais que surgiram no século XX, embora tenha sido uma pessoa de virtudes irrepreensíveis, legou-nos um pontificado de resultados questionáveis, conforme se pode verificar de escritos recentes que têm tratado da morte do Papa, a exemplo, entre outros artigos que seguem abaixo, do pronunciamento do eminente teólogo suíço HANS KÜNG, que, tendo sido assessor do então Arcebispo Karol Josef Wojtyla (antes de sua ascensão ao trono da Igraja) havia sido proscrito pelo Vaticano já no início do pontificado recém concluído, haja vista que, no dia 18 de dezembro de 1979, a Congregação da Fé do Vaticano cassou a licença de lecionar do teólogo em apreço, residente em Tübingen, no sul da Alemanha. 
HANS KÜNG arrebatara o ódio do Vaticano ao questionar por várias vezes o dogma da infalibilidade do Papa.
Relata-se que o cardeal de Colônia, Joseph Höffner, havia convocado uma entrevista coletiva para a tarde de 18 de dezembro de 1979, sem anunciar o assunto. Pouco antes do encontro com os jornalistas, um emissário da embaixada do Vaticano entregou em Tübingen uma carta da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício). "O professor Hans Küng - declarou o cardeal Höffner - diverge da integridade da fé católica em seus escritos. Por isso, ele não pode ser considerado teólogo católico nem continuar lecionando como tal".

Era o desfecho de uma briga de dez anos entre KÜNG e o Vaticano. O teólogo suíço, radicado na Alemanha, foi proibido de lecionar teologia em nome da Igreja. "Acredito que o importante para um teólogo é expressar as preocupações e esperanças atuais do povo à luz do Evangelho. Assim ele também será levado a sério em Roma", disse HANS KÜNG, numa entrevista à Deutsche Welle em meados dos anos 1970, quando o conflito parecia ter se acalmado.
Nascido em 1928, em Sursee, no cantão de Lucerna, ele começou a questionar a doutrina da Igreja depois de estudar em Roma. Duvidava que as antiquadas fórmulas de pregação católica ainda fossem assimiláveis pelo homem moderno. KÜNG argumentava que os ensinamentos da Igreja deveriam ser formulados de maneira irrefutável, mas numa linguagem adequada a cada época. Criticou o dogma da infalibilidade do Papa, aprovado sob circunstâncias peculiares, no Concílio Vaticano I, em 1871.

Já em 1957, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora da Inquisição, havia elaborado um "Dossiê Küng" para analisar posições duvidosas de sua teologia. Apesar disso, o Papa João XXIII convocou o teólogo (professor da Universidade de Tübingen a partir de 1960) para ser consultor oficial durante o Concílio Vaticano II, que pretendia modernizar a Igreja. Logo após a conclusão do Concílio pelo Papa Paulo VI, a Sagrada Congregação retomou o dossiê, abriu secretamente um processo para cassar a cátedra de KÜNG e tentou impedir a publicação de seus livros. KÜNG queria, ao menos, que o processo fosse justo. Reivindicava o direito de ver os documentos e à assistência jurídica. "Um processo que não respeite esses direitos básicos é contra o Evangelho", disse. O teólogo, porém, não teve possibilidade de se defender em Roma e, pouco antes do Natal de 1979, o Vaticano lhe cassou, unilateralmente, a licença de lecionar.
Pela lei alemã, KÜNG não podia ser demitido como professor e foi transferido para a cadeira de Teologia Ecumênica na Universidade de Tübingen. Longe de ficar reduzido ao silêncio, prosseguiu sua tarefa esclarecedora, empreendendo dois grandes projetos: tratar da situação religiosa atual e de uma ética global. Realizou estudos sobre as tradições cristã, judaica, islâmica, hinduísta e budista e publicou obras sobre a questão da ética mundial ("Weltethos"). "A globalização requer uma ética mundial que supere as linhas de conflito entre nações, povos e religiões. Se a globalização for apenas um instrumento para a maximização dos lucros, preparem-se para uma séria crise social", advertiu no Fórum Econômico Mundial de 1997, em Davos, na Suíça.
No livro “Uma ética global para a política e economia mundiais” (Editora Vozes, Petrópolis, 1998), KÜNG afirma que "uma nova ética mundial passa pela paz religiosa, sem a qual não haverá paz mundial, e esta exigirá interpretações mais humanas de leis sacras ultrapassadas e anti-humanistas, fundadas na intolerância e na mentira". Outro livro de sua autoria foi “Os grandes pensadores do cristianismo – Paulo de Tarso, Orígenes, Agostinho, Tomás de Aquino, Martinho Lutero, Friedrich Schleiermacher, Karl Barth”, lançado em português pela Editorial Presença, de Lisboa, em 1999. Abaixo vai um artigo escrito por HANS KÜNG na data em que João Paulo II faleceu, publicado pelo jornal “O Estado de S. Paulo” em 03 de abril de 2005:
 
AS CONTRADIÇÕES DE UM PONTIFICADO
HANS KÜNG
Aparentemente, o papa João Paulo II, que esteve ativamente envolvido no combate à guerra e à repressão, era um farol de esperança para aqueles que anseiam por liberdade. Internamente, porém, seu mandato anti-reformista mergulhou a Igreja Católica Romana em uma crise de credibilidade sem precedentes.
A Igreja está em apuros, mas deve continuar seu caminho e, à luz da seleção de um novo papa, vai precisar de um diagnóstico, uma análise interna objetiva. O tratamento será discutido mais tarde.
Muitos se surpreenderam com a permanência no poder deste frágil e parcialmente paralisado chefe da Igreja, um homem que, apesar de todos os medicamentos, mal conseguia falar. Outros se sentiram desprezados por um homem que viam como um mandatário que, ao invés de azeitar o caminho cristão em direção à própria eternidade, usava todos os meios à disposição para se manter no poder em um sistema amplamente antidemocrático. Até para muitos católicos, esse papa no limite de suas forças físicas, recusando-se a entregar o poder, era o símbolo de uma igreja fraudulenta e calcificada.
O clima festivo que prevaleceu durante o Concílio Vaticano II ( 1962 a 1965), ou Vaticano II, desapareceu. A aparência de renovação, entendimento ecumênico e abertura geral do mundo do Vaticano II agora parece superada e o futuro, sombrio. Muitos se resignaram ou até se afastaram por causa da frustração com essa hierarquia auto-imposta. Como resultado, muitas pessoas foram confrontadas com uma impossível variedade de alternativas: 'Jogue o jogo ou saia da Igreja.' A nova esperança só vai começar a criar raízes quando funcionários da Igreja em Roma e no episcopado se reorientarem na direção do Evangelho.
Um dos poucos brilhos de esperança foi a atitude do papa contra a guerra do Iraque e a guerra em geral. O papel do papa polonês na ajuda à queda da União Soviética também foi enfatizada e com razão. Mas foi pesadamente exagerada pelos propagandistas papais.
Além do mais, o regime soviético não fracassou por causa do papa (antes da chegada de Mikhail Gorbachev, o papa estava conquistando tão pouco quanto conquistou atualmente na China), mas implodiu por causa da estrutura do sistema econômico e das contradições sociais soviéticas.
Karol Wojtyla não foi o maior, mas certamente o mais contraditório papa do século 20. Um papa de grandes dons e muitas decisões erradas. Sua política externa exigia a conversão do resto do mundo. Mas isso foi fortemente contradito por sua 'política interna', orientada para a restauração do status quo pré-concílio, obstruindo a reforma, negando o diálogo dentro da Igreja e impondo o domínio romano absoluto. Essa inconsistência é evidente em muitas áreas. Apesar de reconhecer os lados positivos deste pontificado, gostaria de centrar o foco nas nove contradições mais evidentes.
 DIREITOS HUMANOS
Aparentemente, João Paulo II apoiou os direitos humanos, apesar de afastá-los dos bispos, teólogos e especialmente das mulheres. O Vaticano ainda tem de assinar a Declaração de Direitos Humanos, mas muitos cânones da lei da Igreja absolutista da Idade Média teriam de ser corrigidos antes. O conceito da separação de poderes, o marco de toda a prática legal, é desconhecido na Igreja. Nas disputas, uma única agência do Vaticano funciona como legislador, promotor e juiz.
Conseqüência: um episcopado servil e condições legais intoleráveis.
O PAPEL DAS MULHERES
O grande devoto da Virgem Maria pregava um conceito nobre de feminilidade, mas proibia mulheres de praticar controle de natalidade e de ser ordenadas.
Conseqüência: uma diferença entre conformismo externo e autonomia de consciência interna. Isso leva a um êxodo crescente entre essas mulheres que até então tinham se mantido fiéis à Igreja.
MORAL SEXUAL
Este papa, apesar de pregar contra a pobreza e a indigência, tornouse parcialmente responsável por essa indigência com suas atitudes em relação ao controle de natalidade e ao crescimento demográfico.
Durante suas muitas viagens e na Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, João Paulo II declarou sua oposição à pílula e à camisinha. Mais que qualquer outro estadista, o papa pode ser considerado parcialmente responsável pelo crescimento populacional descontrolado em alguns países e a disseminação da aids na África.
Conseqüência: Mesmo em países tradicionalmente católicos, o papa e a rigorosa moral sexual da Igreja são rejeitadas.
CELIBATO DOS PADRES
Ao propagar a tradicional imagem do celibato no sacerdócio, Wojtyla pode ser responsabilizado pela catastrófica falta de padres, o colapso do bem-estar espiritual em muitos países e os vários escândalos de pedofilia que a Igreja não consegue mais esconder.
O casamento ainda é proibido para os homens que concordaram em se devotar à vida religiosa. Esse é apenas um exemplo de como o papa ignorou os ensinamentos da Bíblia e a grande tradição católica do primeiro milênio, que não exigia que os padres fizessem voto de celibato. Se alguém é obrigado a passar sua vida sem mulher e filhos, há grande risco de que a saudável integração da sexualidade vá falhar, o que pode levar a atos de pedofilia, por exemplo. Conseqüência: Em breve, quase dois terços das paróquias vão ficar sem sacerdotes e celebrações regulares da eucaristia. 
MOVIMENTO ECUMÊNICO
O papa gostava de ser visto como um porta-voz do movimento ecumênico. Prejudicou, porém, as relações do Vaticano com igrejas ortodoxas e protestantes e se recusou a reconhecer seus escritórios eclesiásticos e serviços de comunhão.
O papa podia ter atendido ao conselho de várias comissões de estudos ecumênicos e seguir a prática de muitos sacerdotes locais reconhecendo a comunhão nas igrejas não católicas. Ele podia ter amenizado a atitude totalitária e medieval do Vaticano em relação às igrejas do Leste Europeu e às protestantes e podia ter suspendido a política de enviar bispos católicos romanos a regiões dominadas pela Igreja Russa Ortodoxa.
O papa podia ter feito essas coisas, mas não quis. Quis preservar e até expandir o sistema de poder romano. E recorreu a expedientes duvidosos: a política de poder e prestígio de Roma foi dissimulada por discursos ecumênicos grandiloqüentes e gestos vazios.
Conseqüência: o entendimento ecumênico foi obstruído depois do Vaticano II e as relações com as igrejas ortodoxa e protestante foram oneradas numa extensão estarrecedora. Esse papado, como seus predecessores nos séculos 11 e 16, mostrou ser o maior obstáculo à unidade entre as igrejas cristãs na liberdade e diversidade.
POLÍTICA PESSOAL
Como um bispo sufragâneo (subordinado a um arcebispo) e mais tarde arcebispo da Cracóvia, Wojtyla participou do Concílio Vaticano II. Mas, como papa, com suas 'políticas internas', traiu o concílio numerosas vezes. Em vez de usar as palavras do programa conciliatório 'atualização, diálogo e colegialidade', o que é válido agora na doutrina e na prática é 'restauração, magistério, obediência, re-romanização'. Os critérios para nomear um bispo não são o espírito do Evangelho nem a abertura de mente pastoral, mas sim ser absolutamente leal a Roma.
Conseqüência: Um episcopado em grande parte medíocre, ultraconservador e servil é possivelmente o mais grave legado desse pontificado excessivamente longo. As multidões de católicos que o aplaudem nas manifestações mais bem encenadas não devem dar margem a enganos: milhões abandonaram a Igreja sob este pontificado ou se retiraram da vida religiosa contrariados.
CLERICALISMO
O papa polonês passava a imagem de um representante profundamente religioso da Europa cristã, mas suas aparições triunfantes e suas políticas reacionárias promoveram hostilidade à Igreja e até aversão ao cristianismo.
Na campanha de evangelização papal, centralizada numa moralidade sexual em descompasso com a época, as mulheres, em particular, que não compartilham da posição do Vaticano em questões controversas, como controle da natalidade, aborto, divórcio e inseminação artificial, são desmerecidas como promotoras de uma 'cultura da morte'. Como resultado de suas intervenções, a Cúria Romana passou a impressão de que tem pouco respeito pela separação entre Igreja e Estado. De fato, o Vaticano também tentou exercer pressão sobre o Parlamento Europeu, exigindo a nomeação de especialistas em questões relacionadas à legislação sobre o aborto que sejam especialmente leais a Roma, por exemplo. Em vez de entrar na corrente central social e apoiar soluções razoáveis, a Cúria alimentou a polarização entre os movimentos pró-vida e pró-escolha, entre moralistas e livre-pensadores.
Conseqüência: A política clericalista de Roma fortaleceu a posição dos anticlericalistas dogmáticos e ateus fundamentalistas.
JOVENS NA IGREJA
Na qualidade de comunicador carismático e astro da mídia, este papa foi atraente para os jovens, mesmo em sua idade avançada. Mas ele obteve isso recorrendo em grande parte aos 'novos movimentos' conservadores de origem italiana, o movimento Opus Dei espanhol e um público fiel acrítico.
Tudo isso era sintomático da abordagem do papa ao lidar com o público leigo e de sua incapacidade de conversar com seus críticos.
Os grandes eventos juvenis patrocinados pelos novos movimentos leigos e supervisionados pela hierarquia da Igreja atraem centenas de milhares de jovens, muitos bem-intencionados, mas poucos críticos. Numa época em que carecem de figuras de liderança convincentes, o magnetismo pessoal de 'João Paulo Superstar' era mais importante que seus discursos.
Seguindo seu ideal de uma Igreja uniforme e obediente, o papa via o futuro da instituição quase exclusivamente nesses movimentos leigos facilmente controláveis e conservadores. Isso incluiu o distanciamento do Vaticano da ordem jesuíta, voltada para as doutrinas do Vaticano II. Preferidos por outros papas, os jesuítas, por causa de suas qualidades intelectuais, de sua teologia crítica e de suas opções teológicas liberais, passaram a ser vistos como um obstáculo à política da restauração papal.
No lugar deles, Karol Wojtyla depositou sua total confiança no movimento Opus Dei, grupo financeiramente poderoso e influente, mas antidemocrático e fechado. De fato, conferindo status legal especial ao Opus Dei, o papa até mesmo tornou a organização isenta da supervisão dos bispos.
Conseqüência: jovens de igrejas e congregações (à exceção dos coroinhas) normalmente ficam longe dos grande encontros juvenis. Organizações juvenis católicas que divergem do Vaticano são enfraquecidas quando bispos locais, sob ordens de Roma, suspendem seu financiamento.
PECADOS DO PASSADO

Apesar de ter se obrigado, em 2000, a fazer uma confissão pública das transgressões históricas da Igreja, João Paulo II não levou a iniciativa a quase nenhuma conseqüência prática. A confissão bombástica dos erros da Igreja, encenada com cardeais na Catedral de São Pedro, permaneceu vaga e ambígua. O papa apenas pediu perdão pelas erros dos 'filhos e filhas' da Igreja, mas não pelos erros dos 'Santos Padres' e da 'própria Igreja'.
O papa nunca comentou as relações da Cúria com a Máfia e na verdade contribuiu mais para esconder do que para revelar escândalos e crimes. O Vaticano também tem sido extremamente lento para processar escândalos de pedofilia envolvendo o clero.
Conseqüência: a tímida confissão papal não teve conseqüências, pois não produziu ações, apenas palavras.
Para a Igreja Católica, este pontificado, apesar de seus aspectos positivos, no geral mostrou ser uma grande decepção e, no fim das contas, um desastre. Como resultado de suas contradições, este papa dividiu a Igreja, afastou-a de inúmeras pessoas e a mergulhou numa crise memorável - uma crise estrutural que, depois de um quarto de século, agora revela déficits fatais em termos de desenvolvimento e uma tremenda necessidade de reforma.
Contra todas as intenções do Concílio Vaticano II, o sistema romano medieval - caracterizado por traços totalitários - foi restaurado graças a uma política pessoal e doutrinal astuta e impiedosa: os bispos foram uniformizados; os padres espirituais, sobrecarregados; os teólogos, postos no cabresto; os leigos, privados dos seus direitos; as mulheres, discriminadas; as iniciativas populares dos sínodos nacionais e das igrejas, ignoradas. E a listagem continua: proibições de discussões, domínio litúrgico, proibição dos teólogos leigos de pregarem, exortação à denúncia, impedimento da eucaristia. De tudo isso será, porventura, culpado 'o mundo'? Se o próximo papa continuar as políticas deste pontificado, apenas reforçará um enorme acúmulo de problemas e transformará a atual crise estrutural da Igreja numa situação insolúvel. O novo papa precisa apoiar uma mudança de curso e inspirar a Igreja a tomar novos rumos - no espírito de João XXIII e de acordo com o ímpeto de reforma trazido pelo Concílio Vaticano II.


O teólogo brasileiro LEONARDO BOFF, um dos teóricos da Teologia da Libertação, foi outra vítima da implacável perseguição imposta por João Paulo II em seu pontificado, quando, cinco anos depois da cassação de HANS KÜNG, no dia 3 de setembro de 1984 receberia punição semelhante, por criticar a estrutura da igreja no livro “Igreja, Carisma e Poder”. Abaixo vai um artigo do teólogo publicado em 07 de abril de 2005 pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, em que também se verifica uma crítica severa ao pontificado de João Paulo II:
UM ATRASO NO AJUSTE DE CONTAS DA IGREJA
LEONARDO BOFF*
O pontificado de João Paulo II foi longo e complexo. Só lhe faremos justiça se o considerarmos dentro de um amplo marco de temas que desde há muito preocupam a Igreja.
 
Qual é a característica fundamental desse papado? A restauração e o retorno à grande disciplina. João Paulo II não se caracterizou pela reforma e sim pela contra-reforma. Representou a tentativa de deter um processo de modernização que irrompeu na Igreja desde os anos 1960 e que estava interessando a todo o cristianismo. Deste modo, atrasou o ajuste de contas que a Igreja está fazendo em relação a dois graves problemas que a martirizam há quatro séculos.
O primeiro está ligado ao surgimento de outras igrejas como conseqüência da Reforma Protestante do século 16, que fraturou a unidade da Igreja Católica Romana e a obrigou a tolerar outras igrejas que interpretava como cismáticas e heréticas.
A segunda grande questão deriva da modernidade das luzes, com o surgimento da razão, da ciência e da tecnologia, das liberdades civis e da democracia. Essa nova cultura colocava em xeque a revelação da qual a Igreja se sente portadora exclusiva e denunciava a forma em que a Igreja se organiza institucionalmente: como uma monarquia absolutista espiritual em contradição com a democracia e a vigência dos direitos humanos.
Com relação às igrejas evangélicas, a estratégia do Vaticano apontava para a reconversão a fim de restaurar a antiga unidade eclesiástica sob a autoridade do papa. Para com a sociedade moderna, a relação era de crítica e condenação de seu projeto de emancipação e secularização com vistas a recriar a unidade cultural sob a égide dos valores morais cristãos.
As duas estratégias fracassaram. As outras igrejas cresceram e se afirmaram em todos os continentes. A sociedade moderna com suas liberdades, sua ciência e sua técnica converteu-se no paradigma para o mundo inteiro. A Igreja Católica viu-se transformada num bastião de conservadorismo religioso e autoritarismo político.
Foi obra do bom senso e da ousadia de um papa, João XXIII, a convocação de um Concílio Ecumênico para enfrentar valentemente aquelas duas questões não resolvidas. Efetivamente, o Concílio Vaticano II (1962-65) assumiu como lema não mais o anátema, mas a compreensão, não mais a condenação, mas o diálogo. Com respeito às outras igrejas, inaugurou o diálogo ecumênico que pressupõe a aceitação da existência de outras igrejas. Com respeito ao mundo moderno, colocou-se uma reconciliação com as esferas do trabalho, da ciência, da técnica, das liberdades e da tolerância religiosa.
Mas ainda faltava o terceiro ajuste de contas: com os pobres, que são a grande maioria da humanidade. Foi mérito da Igreja latino-americana recordar que não existe somente um mundo moderno desenvolvido, mas também um mundo subdesenvolvido que suscita uma pergunta incômoda: como anunciar Deus como Pai num mundo de miseráveis? Só tem sentido anunciar Deus como Pai se formos capazes de tirar os pobres da miséria, se convertermos essa realidade má em boa. É precisamente o que fizeram os setores mais dinâmicos na América Latina, animados por alguns profetas, como Hélder Câmara. A ordem era a opção pelos pobres e contra a pobreza. A virada incentivou muitos cristãos a ingressar nos movimentos sociais de libertação e até em frentes armadas, enquanto numerosos bispos e cardeais assumiram um papel destacado no combate às ditaduras militares e na defesa dos direitos humanos, entendidos principalmente como direitos dos pobres.
João Paulo II foi eleito papa quando estava em curso esse processo. Seu pontificado se situou desde o começo na contracorrente dessas tendências que eram dominantes. Seguramente foram determinantes em sua postura sua origem polonesa e os círculos da Cúria Romana, marginalizados, mas não derrotados pelo Concilio Vaticano II. Em Roma, o novo papa se encontrou com a burocracia vaticana, conservadora por natureza, que pensava o mesmo que ele. Estabeleceu-se assim um bloqueio histórico poderoso papacúria com a meta de impor a restauração da identidade e a antiga disciplina.
As condições pessoais de João Paulo II conseguiram realizar da melhor maneira esse projeto, graças à sua figura carismática, à sua inegável irradiação, à sua habilidade de dramatização midiática.
Para realizar seu desígnio de restauração, dotou-se de instrumentos adequados. Reescreveu o direito canônico para que enquadrasse toda a vida da Igreja, fez publicar o Catecismo Universal da Igreja Católica e com isso oficializou o pensamento único dentro da Igreja. Tirou poder de decisão do Sínodo de Bispos, submetendo-o totalmente ao poder papal, assim como limitou o poder das conferências continentais de bispos, das conferências nacionais episcopais, das conferências de religiosos nos níveis nacional e internacional, marginalizou o poder de participação decisória dos leigos e negou plena cidadania eclesial às mulheres, relegadas a funções secundárias, sempre longe do altar e do púlpito.
Junto com seu principal assessor, o cardeal Joseph Ratzinger, o papa professava uma visão agostiniana da historia, para a qual o que realmente conta é somente o que passa pela mediação da Igreja, portadora da salvação sobrenatural. Segundo essa visão, o que passa pela mediação dos homens e da história não alcança a altura divina e é insuficiente perante Deus.
Essa postura o induziu a uma fundamental incompreensão da teologia latino-americana da libertação. Esta afirma que a libertação deve ser obra dos próprios pobres. A Igreja é somente uma aliada que reforça e legitima a luta dos pobres. Para o cardeal Ratzinger, essa libertação é meramente humana e carente de relevância sobrenatural. É preciso destacar que o papa teve uma visão curta e simplista desse tipo de teologia, que interpretou com a lógica de seus detratores e, hoje o sabemos, a partir das informações que a CIA lhe entregava, particularmente sobre a influência dos teólogos da libertação na América Central. A interpretou como um cavalo de Tróia do marxismo que ele era obrigado a denunciar, em razão da experiência adquirida sobre o comunismo em sua Polônia natal. Convenceu-se de que o perigo na América Latina era o marxismo, quando o verdadeiro perigo sempre foi o capitalismo selvagem e colonialista com suas elites antipopulares e retrógradas.
Em João Paulo II prevalecia a missão religiosa da Igreja e não sua missão social. Se tivesse dito 'vamos apoiar os pobres e comprometer a Igreja com as reformas em nome do Evangelho e da tradição profética', outro teria sido o destino político da América Latina. Pelo contrário, organizou a restauração conservadora em todo o continente: afastou bispos proféticos e designou bispos distanciados da vida do povo, fechou instituições teológicas e sancionou seus docentes.
Houve uma grande contradição entre as atitudes do papa e seus ensinamentos. Para fora, se apresentava como um paladino do diálogo, das liberdades, da tolerância, da paz e do ecumenismo; pediu perdão em várias ocasiões pelos erros e condenações eclesiásticas no passado; reuniu-se com líderes de outras religiões para rezar, unidos, pela paz mundial. Mas, dentro da Igreja, calou o direito de expressão, proibiu o diálogo e produziu uma teologia com fortes tons fundamentalistas.
O projeto político-eclesiástico assumido pelo papa não resolveu os problemas que se havia colocado com relação à Reforma, à modernidade e à pobreza. Antes os agravou, atrasando um verdadeiro ajuste de contas.
As limitações de seu estilo de governo da Igreja não impediram que João Paulo II alcançasse a santidade pessoal em um grau eminente. Assim foi, no marco de uma religião 'à antiga' com grande devoção aos santos e, em especial, à Nossa Senhora, às relíquias e aos lugares de peregrinação. Foi homem de profunda oração. Às vezes, ao orar, se transfigurava e empalidecia, outras vezes gemia e vertia lágrimas. Uma vez o surpreenderam em sua capela particular estendido no solo em forma de cruz, como em êxtase, à semelhança dos iluminados espanhóis do século 16.
A quem cabe a última palavra? À história e a Deus. Nós só poderemos aceder à história, que nos dirá qual foi seu real significado para o cristianismo e para o mundo nesta fase de mudança de paradigmas e de mudança de milênio.
*Leonardo Boff, teólogo da libertação, em 1985 foi punido com um ano de 'silêncio obsequioso' e deposto de suas funções editoriais e acadêmicas no campo religioso pelas autoridades doutrinais do Vaticano. Texto retirado do site da Agencia de Información Fray Tito para América Latina (Adital), de 4 de abril de 2005.
Por fim, segue abaixo um artigo publicado pelo “The New York Times” em que seu autor, Thomas Cahill, em tom desolador, chega a afirmar que João Paulo II destruiu a Igreja:
ELE FOI QUASE O PÓLO OPOSTO DE JOÃO XXIII
Thomas Cahill*
Com a mídia mergulhada em homenagens à grandeza do papa João Paulo II, não é hora de perguntar a que tradição ele pertencia? Partidários não familiarizados com a história cristã podem achar a pergunta estranha, já que ele pertencia à tradição católica. Mas não há uma única tradição católica; há, ao contrário, tradições católicas, que vão da pobreza voluntária de São Francisco de Assis à ambição dos papas de Avignon, da tolerância pela diversidade do papa Gregório, o Grande, no século 6.º, à arrogância do papa Pio IX, no século 19, da clandestinidade e dos complôs da Opus Dei à abertura da comunidade de Santo Egídio. Em seus 2 mil anos de história, o catolicismo foi terreno fértil para uma variedade de tradições papais.
Apesar de sua escolha de nome, João Paulo II pouco tinha em comum com seus predecessores. João Paulo I durou pouco mais de um mês, mas nesse período fomos apresentados a um italiano de tendências moderadas, alguém que, antes de sua eleição, parabenizou os pais do primeiro bebê de proveta do mundo - um gesto que não repercutiu bem entre os fundamentalistas da Igreja, que ainda insistem em combater tudo o que vá de encontro à natureza.
Paulo VI, embora cauteloso, permitiu a indicação de bispos que fossem o contrário de aduladores, defensores dos pobres e representantes das partes do mundo de onde vieram, como o cardeal Joseph Bernardin, de Chicago, que no fim de sua vida lutou por espaço em uma Igreja marcada pela divisão. Em compensação, o cardeal Bernard Law, de Boston, reprimiu Bernardin por esse esforço, uma vez que a Igreja sabe a verdade e, portanto, está isenta de algo indigno como o diálogo. Law, que se demitiu depois da revelação de que havia permitido que padres acusados de abuso sexual ficassem na Igreja, não informando o fato nem à polícia nem à comunidade, deve ser considerado o típico representante de João Paulo II - cioso da Igreja, mas muitas vezes negligente em relação às exigências morais para proteger e cuidar de seres humanos.
João Paulo II foi quase o oposto de João XXIII, que levou o catolicismo a confrontar as realidades do século 20 depois das políticas retrógradas de Pio IX, que impôs a infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, em 1870, e depois do reinado de terror imposto por Pio X aos teólogos no início do século 20. Infelizmente, este papa estava muito mais próximo das tradições de Pio IX e Pio X do que de seus homônimos.
Em vez de minimizar os absurdos da infalibilidade do Vaticano I, uma declaração que tinha origem na paranóia de Pio IX, João Paulo II tentou ir além com ela. Ao procurar impor conformidade de pensamento, ele intimou teólogos importantes como Hans Küng, Edward Schillebeeckx e Leonardo Boff ao protagonizar inquéritos espetaculares e fez seu grande inquisidor, o cardeal Joseph Ratzinger, divulgar condenações de seus trabalhos.
Mas o legado mais duradouro de João Paulo II ao catolicismo virá das suas indicações episcopais. Para ser indicado a bispo, um padre deve ser contrário a masturbação, sexo antes do casamento, controle de natalidade (incluindo as camisinhas usadas para prevenir a disseminação da aids), aborto, divórcio, relações homossexuais, padres casados, sacerdotes mulheres e qualquer sinal de marxismo. É quase impossível encontrar homens que concordem inteiramente com esse catálogo pleno de certezas; como resultado, os quadros do episcopado estão repletos de lacaios ignorantes e incompetentes intelectuais. Os bons padres foram relegados; e não foram poucos, em sua frustração com o pontificado de João Paulo II, a buscar preenchimento em outro lugar.
A situação é sombria. Qualquer um pode entrar em uma igreja no domingo e ver os bancos, antes repletos, hoje esparsamente ocupados por cabeças brancas. E não há outra solução a não ser começar de novo, como se fosse a Igreja das catacumbas, a seita minoritária em um mundo de crueldade que reuniu seguidores porque era muito diferente da sociedade em torno.
Naquela época, a Igreja chamava a si mesma pela palavra grega ekklesia, usada pelos gregos para sua assembléia aberta, a primeira democracia participativa do mundo. (O apóstolo Pedro, a quem o Vaticano concede o título de primeiro papa, era um dos muitos líderes da Igreja primitiva, tão distante de um monarca absolutista quanto podia ser, um homem cuja característica mais visível era a humilde confissão de que ele estava errado.) Ao usar a palavra, os primeiros cristãos queriam enfatizar que sua sociedade agia não movida pelo poder político, mas pelo poder do amor.
Mas eles foram muito além dos atenienses, por permitir que todos participassem sem restrições: cidadãos e não-cidadãos, gregos e não-gregos, patriarcas e mulheres submissas. Porque, como repetia São Paulo: 'Fomos todos batizados em Cristo para formar um só corpo: judeus e gregos, escravos e homens livres, homens e mulheres.' Tristemente, João Paulo II representou uma tradição diferente, de papado agressivo. Onde João XXIII queria mostrar a validade dos ensinamentos em vez de lançar condenações, João Paulo II foi um condenador entusiasmado. Sim, ele certamente será lembrado como uma das personalidades políticas de sua era, um homem de coragem física e moral mais responsável do que qualquer outro por trazer abaixo o opressivo comunismo do Leste Europeu. Mas ele não era uma grande personalidade religiosa.
Como poderia ser? Ele pode, no futuro, ser creditado como o homem que destruiu a Igreja.
* Thomas Cahill é autor de Como os Irlandeses Salvaram a Civilização, Papa João XXIII e O Desejo das Colinas Eternas, publicados no Brasil pela Objetiva

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