22.10.12 - Mundo
Maria Clara
Lucchetti BingemerTeóloga, professora
e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-RioAdital
Figura polêmica na
Igreja por suas posições ousadas e provocativas, o teólogo católico suíço Hans
Küng não deixa de ser uma das cabeças teológicas inteligentes dos dias de hoje.
A teologia deve a ele algumas obras importantes de seu acervo de pensamento,
muito concretamente no que diz respeito ao papel das religiões no mundo de hoje
e às propostas para uma ética global. Antes disso, Hans Küng se ocupou com
questões candentes de eclesiologia, tendo escrito inclusive um livro questionando
a infalibilidade papal.
Chamado à ordem e
advertido inúmeras vezes pelo Vaticano, Küng perdeu a "missio canônica”,
ou seja, a permissão eclesiástica para ensinar em qualquer faculdade de
teologia católica. No entanto, continuou a publicar e permaneceu ligado à
Universidade de Tübingen, Alemanha, até sua aposentadoria. Apesar da idade
(mais de 80 anos), continua produtivo e dá conferências e entrevistas em várias
partes do mundo.
É assim que caiu-nos
nas mãos e sob os olhos uma entrevista recente, por ele concedida à revista Le
Point, de 27 de setembro de 2012. Ali fala sobre seu último livro intitulado A
Igreja tem salvação?, no qual critica severamente a Igreja Católica que teria,
segundo ele, traído suas origens. Essas mostram uma comunidade democrática e
não monárquica, governada por homens que não desejavam ser senhores, mas
servidores do povo de Deus. Segundo o teólogo, a Igreja hoje é centralizadora,
absolutista e clerical, em nada parecida à comunidade primeva.
Após essa primeira
afirmação, Küng critica outros pontos delicados da disciplina católica, como o
lugar da mulher na comunidade eclesial, impedida de receber o sacramento da
ordem e assumir funções de maior destaque; o celibato dos padres etc. Pela
interpretação de Hans Küng, o fato de tais reformas ainda não terem se
efetivado na Igreja se deve a uma traição ao Concílio Vaticano II levada a cabo
pelos pontificados posteriores a Paulo VI.
Em 2005, Küng foi
recebido pelo atual Papa –seu antigo colega de docência e amigo em Tübingen- para
uma conversa de quatro horas, gesto que ele até hoje agradece. No entanto, se
confessa decepcionado porque não se seguiu a essa conversa nenhuma mudança
substancial na orientação do pontificado de Bento XVI em questões de fé e
moral.
O mais belo dessa entrevista,
dada por um homem brilhante e amargurado em muitos aspectos, porém, encontra-se
em sua confissão de fé situada na parte final da mesma. Arguido pelo repórter
sobre o porquê de permanecer católico, Hans Küng confessa desassombradamente
sua fé: "Não sou católico por causa do papa, mas pelo Evangelho e o povo
cristão... A Igreja Católica é minha pátria espiritual, na qual tive uma
história às vezes difícil, mas apesar disso muito feliz. Há milhões de
católicos que partilham de minhas convicções”.
Küng toca aí –talvez
apesar de si mesmo– no coração do mistério da Igreja. Santa e pecadora,
"casta meretriz” que o Cristo desposa a cada dia. A comunidade eclesial
sempre estará atravessada de ambiguidades e contradições. E estas serão do
tamanho e da proporção dos homens e mulheres que a compõem, seus membros e
chefes, filhos amados do Pai, que faz nascer seu sol e cair sua chuva sobre
todos e todas em toda ocasião.
A entrevista de Hans
Küng não é carente de esperança e amor pela Igreja. Se ele não amasse essa
Igreja que chama ternamente de sua pátria espiritual, sofreria tanto pelos
males que a afligem? Estaria tão angustiado pelo fato de ver seus efetivos
decrescerem, seus templos se esvaziarem e tantas pessoas debandarem de suas
fileiras?
Ao final, perguntado
se Jesus, vindo ao mundo hoje, reconheceria seus ensinamentos diante do atual
Papa, Küng responde com alguma acidez, mas deixando entrever uma abertura
afetuosa em relação ao atual Pontífice Bento XVI, seu antigo colega e amigo
Joseph Ratzinger. Responde que Jesus não se reconheceria na riqueza das vestes
e adereços papais, nem veria nisto algo adequado ao sucessor de seu apóstolo
Pedro. Igualmente não se encontraria refletido no Cristo que o Papa descreve em
seus livros. Porém, termina, "está persuadido que, se ele olhasse no
interior do coração de Joseph Ratzinger, encontraria traços de seu
ensinamento”.
Enquanto o coração
humano for fiel a Jesus de Nazaré, reconhecido e proclamado Cristo de Deus, a
Igreja terá salvação. Ainda que entre todos os seres humanos espalhados pelo
planeta existisse apenas o coração de Joseph Ratzinger..., ou o de Hans
Küng..., batendo ao ritmo do coração amante de Jesus, Verbo Encarnado e
salvador do mundo.
[Maria Clara Bingemer
é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e
poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
Copyright 2012 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
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